Tribunal de Justiça legitima genocídio dos negros

“Quando um tribunal de justiça decide aplicar, como em uma humilhação pública no pelourinho, a desqualificação do ser humano não branco, se confirma a institucionalização do racismo e a legitimação do genocídio dos negros. É urgente se colocar visceralmente em oposição a este que tem sido o maior genocídio brasileiro. O qual, juntamente com o etnocídio e o feminicídio, é a estrutura central das formas de dominação e violência.”

Por Edson Teles – Blog da Boitempo

Em junho de 2013 era detido no Centro do Rio de Janeiro, em meio às manifestações contra o aumento das tarifas, Rafael Braga. Catador de material reciclável, Rafael estava próximo ao “local do crime”, apesar de não participar dos protestos, e carregava consigo duas garrafas de produtos de limpeza. Sob a alegação de porte de coquetéis molotov ele foi detido por policiais militares e a Justiça ordenou sua prisão provisória com posterior julgamento. Ao final (como se este tipo de acontecimento tivesse fim) foi condenado a 5 anos de detenção com sentença fundamentada no depoimento de um policial. As provas técnicas, favoráveis ao réu ou desqualificantes da acusação, foram desconsideradas nos laudos ajuntados ao processo. Rafael é negro, pobre, favelado. Como não poderia ser ele o criminoso?

No início de 2017, após um mês de regime semi-aberto (acabara de cumprir mais de 3 anos de privação de liberdade), foi novamente encarcerado. Pasmem: Rafael foi acusado de tráfico de drogas e associação criminosa por supostamente portar menos de um grama de maconha e 9 gramas de cocaína, além de um rojão. Apesar de testemunha corroborar a versão de Rafael de que teria sido uma detenção forjada, a versão aceita pela Justiça foi a do testemunho dos policiais. Afinal, ele é negro, favelado e pobre. Como não seria ele um traficante?

Recentemente, impetrado um habeas corpus por seus advogados em defesa de sua liberdade, desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negaram o pedido. Instância jurídica que legitima, com este ato, o genocídio do negro no Brasil.

Ao se negar habeas corpus a jovens pobres e negros não se trata necessariamente do cumprimento da lei. Porém, é a norma do ordenamento jurídico. São incontáveis as tentativas de liberdade, pedidas e negadas, pelas defensorias públicas em nome de adolescentes e jovens detidos sem direito à defesa e cujos encarceramentos se fundamentam somente em testemunhos de agentes de segurança. É clara a intenção dos juízes em manterem preso Rafael e outros jovens negros, com ou sem provas. São vários os casos em que indivíduos ricos que recebem a liberdade ou a troca de punição aos seus atos por internações, penas alternativas e, até mesmo, absolvição.

Mas por que manter um jovem negro na prisão sem provas seria um ato genocida, como afirma este texto?

Isto se deve ao racismo institucional, existente no judiciário, mas também nas polícias, nos sistemas educacionais e de saúde, nas universidades, no sistema de transporte público, nos partidos e nas organizações políticas. Assim como é difuso e disseminado nas práticas sociais e nas relações econômicas e culturais e nas mais enraizadas ocorrências do cotidiano.

Existe no país um racismo ao estilo brasileiro cuja fonte liberal discursiva são as ideias de “democracia racial” e “mestiçagem”, por muitos anos veiculadas como conhecimento inequívoco, inclusive nas principais universidades. Mas nada mais é do que uma política de embranquecimento e assimilação das “populações nativas”. Um processo “civilizatório” desenvolvimentista nacional.

Para uma criança negra e pobre nascer no país é preciso enfrentar um sistema de saúde racista. Segundo o Ministério da Saúde, através da campanha “Racismo faz mal à saúde” (2014), 66% das mortes em partos são de mulheres não brancas. As gestantes negras adentram ao SUS e, na maioria dos casos têm suas gestações mal acompanhadas, isto quando recebem este atendimento. Seus sofrimentos e reclamações, se ocorrem, são de modo geral desconsiderados. Diante de alguma gravidade, pouco é feito e alega-se sua condição de resistência à dor e ao sofrimento. Após o nascimento, enquanto 78% das mulheres brancas recebem orientação sobre amamentação, pouco mais da metade das mulheres negras recebem o mesmo tratamento. Se sobreviver ao nascimento, a criança negra (e também a indígena) tem o dobro de chance de falecer nos cinco primeiros anos de vida em relação à criança branca. Isto é genocídio.

As escolas destinadas aos pobres e negros, públicas e localizadas nas periferias, são cada vez mais de baixa qualidade e precárias, esquecidas pelo poder público. Segundo o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), uma em cada quatro crianças abandonam a escola ainda no ensino fundamental. Em sua ampla maioria crianças negras. A evasão escolar se dá pela pobreza destes indivíduos, que desde muito cedo têm que se envolver em alguma atividade econômica. Bem como é o resultado da discriminação racial intramuros escolares e da ausência de repertório próprio da cultura afrodescendente nos currículos.

Tal como no sistema escravocrata, às meninas negras é imposto, desde cedo, o trabalho doméstico. Segundo dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho), de 2013, 93% das crianças e adolescentes envolvidos em trabalho no país são meninas negras. Este é o genocídio da identidade e da dignidade desta população.

Na universidade, as recentes políticas afirmativas, tímidas diante do quadro de racismo existente, pouco transformaram a situação. Houve o acesso de indivíduos negros, em especial nas universidades públicas federais, mas mantendo uma proporção inegavelmente branca. O conteúdo dos currículos continua estudando metodologias e pensadores de uma tradição eurocêntrica, operando uma espécie de categorização da cultura e do pensamento negro como um saber menor, desqualificado e não autorizado. No quadro docente, assim como entre os pós graduandos, a presença de indivíduos não brancos atinge proporções ainda mais desiguais. Até hoje são quase nulos os programas de pesquisa acad6emica que possuem cotas raciais.

A violência policial tem sido o foco das campanhas e manifestações de movimentos negros e objetivamente nomeada por estes sujeitos de genocídio do negro brasileiro. Na idade de 21 anos, o jovem negro tem 147% maiores chances de ser assassinado do que um branco. E, infelizmente, no discurso de uma sociedade branca e masculinizada, de viés liberal, a instituição de proteção ao indivíduo é a que mais mata violentamente o jovem negro.

A designação de genocídio para o que ocorre no cotidiano da sociabilidade brasileira pode parecer, à primeira vista, um exagero emotivo e desproporcional. Afinal, o brasileiro nasceu e cresceu sob a ideia de que nestas terras se experimenta um sincretismo racial. O que vem ocorrendo com a população negra, desde sempre, mas agora com o incremento das máquinas políticas – suas tecnologias e estratégias de controle –, é um genocídio institucional e sistêmico. Justamente por seus aspectos cotidianos e discursivos se efetiva de modo silencioso e, para alguns, invisível, apesar de ser tão evidente como o cheiro do podre invadindo o olfato. Nos é tão próximo quanto um fenômeno que se encontra diante de nossos narizes.

Se faz urgente que sujeitos combatentes de genocídios outros, em momentos diversos, se coloquem visceralmente em oposição a este que tem sido o maior genocídio brasileiro. O qual, juntamente com o etnocídio e o feminicídio, é a estrutura central das formas de dominação e violência.

Quando um tribunal de justiça decide aplicar, como em uma humilhação pública no pelourinho, a desqualificação do ser humano não branco, se confirma a institucionalização do racismo e a legitimação do genocídio dos negros.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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