Este deserto já foi uma lagoa do tamanho de 10 campos de futebol

No Norte de Minas, a seca está para todo lado. Por causa da estiagem, 151 municípios já tiveram o decreto de situação de emergência reconhecido pela União

Por  Luiz Ribeiro , Renan Damasceno, no Estado de Minas

São Francisco/Urucuia/Montes Claros – Na experiência dos seus 81 anos, o produtor Antonio Pereira dos Santos caminha pelo chão esturricado. Por ali também passam cavalos e vacas. É algo que até há alguns anos parecia impossível. Na verdade, o local por onde, hoje, o agricultor anda com auxílio de cipó, que substitui uma bengala, sempre foi ocupado pela água, a “Lagoa Grande”, que se estendia por uma extensão de pelo menos 10 hectares (o equivalente a 10 campos de futebol) e que, pela primeira vez, secou completamente.

A mudança de cenário descrita acima, registrada na comunidade de Alto São João, a quatro quilômetros do barranco do Rio São Francisco (também com volume bastante reduzido), no município de São Francisco (Norte de Minas), ilustra a destruição provocada pela seca no interior de Minas. De acordo com o governo estadual, por causa da estiagem (uma das piores da história), 151 municípios já tiveram o decreto de situação de emergência reconhecido pela União.

O quadro é mais grave no Norte do estado, que acumula os estragos de cinco anos seguidos de falta de chuvas. De 700 rios e córregos da região, 550 já estão completamente vazios ou cortados, segundo relatório da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), divulgado pela Associação dos Municípios da Área Mineira da Sudene (Amams). A associação lembra que alguns dos rios maiores da região já foram perenes – como o Verde Grande e o Pardo – e aponta que cerca de 80 mil pessoas em comunidades rurais da região estão sofrendo com a falta d’água.

Dos 151 municípios em estado de emergência, 80 estão situados no Norte de Minas, onde, historicamente, os moradores sempre sofreram com as dificuldades climáticas, estando acostumados com ciclos que se repetem a cada ano. No período crítico da estiagem (normalmente, de abril a outubro), córregos e rios menores secam, com as grandes lagoas e mananciais mais caudalosos garantindo o abastecimento das famílias na fase de seca mais intensa até a chegada do período chuvoso (novembro a março) – quando os rios (grandes e pequenos) e demais reservatórios são recompostos.

Mas, como nos últimos cinco anos a região foi sucessivamente castigada por longas estiagens, não houve o ‘reabastecimento’ do período chuvoso. Resultado: as lagoas maiores, que eram perenes, secaram, agravando mais ainda o sofrimento e gerando uma situação desesperadora. Foi que ocorreu na Lagoa Grande, que antes garantia o abastecimento de 70 famílias da comunidade de Alto São João e pela manutenção dos animais dos pequenos agricultores na zona rural de São Francisco. O município está em situação de emergência desde janeiro, devido à escassez de chuvas.

“Essa lagoa sempre foi a lagoa-mãe. A água já diminuiu muito em outros anos, mas nunca secou”, afirma o agricultor Manoel Pereira dos Santos, de 75, lembrando que a lagoa marginal do Velho Chico já teve muito peixe e sempre foi o hábitat de aves aquáticas e de capivaras. Hoje, entristecido, Manoel anda a cavalo no terreno esturricado, no mesmo local que no passado era percorrido de barco por pescadores, testemunhando que o manancial, que era fonte de vida e fartura, virou literalmente uma terra morta. A situação se repete em outros mananciais da região, percorrida pela reportagem do Estado de Minas.

O vaqueiro Apolinário Gomes da Silva encontrou boi morto devido à falta de água. Foto: Alexandre Guzanshe /EM

Emergência

O agricultor Alcebíades da Silva Rocha, líder comunitário de Alto João, conta que, diante do secamento “inesperado” da Lagoa Grande, a Copasa montou um sistema emergencial para as 70 famílias da localidade, “puxando” água tratada (captada no Rio São Francisco) por uma tubulação do vizinho distrito de Retiro (seis quilômetros de distância).

Mas, o que fazer para salvar as criações? Como medida extrema, diante da situação de desespero dos pequenos agricultores da região, com o uso de um trator, a Prefeitura de São Francisco abriu um “cacimbão” (um buraco de 30 metros de extensão e 10 de largura e quatro metros de profundidade) no meio do leito esturricado do lago.

A falta de chuvas não é a única causa do secamento do reservatório. “O que ocorreu foi que, com o desmatamento, a enxurrada foi carregando terra para dentro da lagoa, que foi assoreada”, observa o agricultor José Carlos da Rocha, de 68, morador de Alto São João. Ele lembra que outras lagoas da região também secaram.

O aposentado Antonio Pereira dos Santos diz que se assusta com o cenário atual do lugar. “Essa lagoa tinha de oito a 10 metros de ‘fundura’ (profundidade). Em outros anos ela secou, mas não toda como agora”, afirma. “Se Deus quiser, nas próximas ‘águas’ (período das chuvas) a lagoa vai voltar como era antes. Se não voltar, nós todos vamos morrer, porque ela é a maior de todas as lagoas da nossa região.”

Venda de água

A Prefeitura de São Francisco informou que aproximadamente 17 mil pessoas em 90 comunidades da zona rural do município sofrem com a falta d’água devido à falta de chuvas e ao secamento de rios, córregos e lagoas. Os flagelados da seca são abastecidos por sete caminhões-pipas, sendo um da prefeitura e seis veículos da “Operação Pipa”, do Exército.

Em comunidades rurais de São Francisco, moradores estão sendo obrigados a comprar água. É a situação vivida pela família da agricultora Cleonice Aparecida Rodrigues Rocha, da localidade de Araçá. Na última quinta-feira, ela pagou R$ 150 por uma pipa de água (12 mil litros). “Esse dinheiro faz falta para outras coisas. Mas, não tem jeito, a gente não pode ficar sem água”, diz Cleonice. Ela conta que os 12 mil litros de água são suficientes para o consumo da casa durante 20 dias, mesmo assim, economizando muito. Os integrantes da família (quatro pessoas) recorrem ao “banho de caneca” e as necessidades são feitas no mato mesmo.

A Prefeitura de São Francisco informou que tem dificuldades para levar água para as 156 comunidades rurais do município castigadas pela seca – estão sendo atendidos 70% da demanda. Revelou também que as famílias de Araça ainda serão cadastradas para ser abastecidas pela Operação Pipa.

A reportagem do Estado de Minas percorreu a região e atravessou dezenas de córregos e rios secos. Na localidade de Tamburil, no município de Urucuia, repete a cena de um boi morto (por causa da falta de pasto e de água) próximo ao leito vazio do antigo córrego Borá, que parou de correr há anos. “É muito triste ver isso. Com a seca os bichos sofrem muito”, lamenta o agricultor Apolinário Gomes da Silva, de 29, cuja família tem uma pequena propriedade na região.

Segundo levantamento da Emater-MG, em um período de cinco anos, devido às estiagens prolongadas, o rebanho bovino norte-mineiro teve redução de 900 mil reses. A região tinha um rebanho de 3,3 milhões de cabeças em 2011, reduzido para 2,4 milhões em 2016. “Mas, com o secamento dos rios e lagoas, o agricultor familiar não consegue mais produzir e aumentou muito o êxodo rural. Em algumas regiões da zona rural, mais da metade das casas estão fechadas”, afirma o secretário-executivo da Amams, Ronaldo Mota Dias.

Caminhões-pipas são insuficientes

No Norte de Minas, cerca de 80 mil famílias sofrem com a falta de água. Desse total, 25 mil estão abastecidos por cerca de 80 caminhões-pipas, a grande maioria deles da própria prefeitura. Por outro lado, a demanda é de cerca de 55 mil famílias atingidas pela escassez hídrica, que aguardam o abastecimento. A informação é da Associação dos Municípios da Área Mineira da Sudene (Amams), que reclama da falta de apoio do governo federal aos flagelados da seca. O presidente da associação, José Reis, lembrou que os prefeitos já adotaram as medidas legais, ao decretar a situação de emergência, “mas que nenhuma ação prática foi implantada para atender às vítimas da seca”.

Entristecido, o agricultor Manoel Pereira dos Santos, de 75 anos, anda a cavalo no terreno esturricado, no mesmo local que no passado era percorrido de barco por pescadores. Foto: Alexandre Guzanshe /EM

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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