O antropólogo do STF: o Gilmar está pra peixe? por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Malgrado meu desejo / De declarar-te irmão / E contigo fruir /Alegrias fraternas
Só tenho para dar-te / Em turvo condomínio / O pesadelo urbano / De fornos e fúrias.
(Carlos Drummond de Andrade – Kreen-Akorore, 1977)

Com os olhos rútilos e com a boca de arapapá espumando palavras em esguichos crepusculares, o ministro Gilmar Mendes proferiu seu voto na sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) da última quarta (16), na qual deu uma senhora aula de antropologia. Revelou os procedimentos que usa para entender os índios e que enriquecem a abreugrafia – método etnográfico criado por uma colega sua. Definiu critérios de indianidade. Questionou a etnogênese. Pontificou sobre demarcação de terras indígenas e lembrou sua infância em Diamantino (MT) quando jogava futebol com os Pareci.

Tudo isso aconteceu na presença de lideranças indígenas que lotaram o auditório do STF, a quem Gilmar ensinou o que é ser índio. Eles temiam que a Suprema Corte adotasse a tese do marco temporal, que restringe o acesso à terra a índios e quilombolas. No entanto, a questão foi adiada e foram julgadas apenas duas ações nas quais o estado do Mato Grosso reclamava indenização da União pelas terras do Parque Nacional do Xingu e dos territórios Nambikwára e Pareci, o que foi negado por unanimidade. Apesar disso, a temática indígena não podia ficar de fora.

A antropologia imóvel

Gilmar Mendes foi o último a votar, quando a matéria já estava decidida. Cada ministro que o precedeu justificou o voto e alguns valorizaram o papel da antropologia. Foi o caso de Luiz R. Barroso que destacou três planos: o fatual, o jurídico e o interpretativo. Ponderou que embora o Judiciário deva dar a última palavra, nem sempre é o árbitro mais qualificado, sobretudo em questões que exigem formação específica que um juiz não tem, devendo ele por isso ser cauteloso. Citou os antropólogos como capazes de iluminar o magistrado quando a ação trata de culturas indígenas.

Com ele concordou Ricardo Lewandowski, que criticou a desqualificação que se costuma fazer dos laudos antropológicos, elaborados “segundo cânones científicos, com critérios técnicos impecáveis, apoiados em observação no campo, em documentos e mapas”. Disse que a conversa com duas antropólogas o convenceram da justeza dos direitos dos índios e que ele próprio havia estudado antropologia.

Edson Fachin enfatizou que o território indígena não pode ser considerado “terra devoluta”, cuja discriminação obedece a um regulamento próprio. Citou a Lei de Terras de 1850 e demonstrou a fragilidade dos argumentos do estado do Mato Grosso que queria ser indenizado pelas terras indígenas demarcadas. Invocou, entre outros, os juristas Dalmo Dallari, Carlos Marés e Victor Nunes Leal, autor do clássico “Coronelismo, Enxada e Voto”.

Enquanto cada ministro falava, de vez em quando a câmera dava um close em Gilmar Mendes, cuja boca bufava impaciente. Um buldogue de focinho curvo e narinas dilatadas não seria tão feroz. Até que chegou sua vez. Com a autoridade libertária de quem, correndinho, concede habeas corpus a empresários presos, Gilmar se expressou no plenário com o jeito delicado que todos conhecem, como se estivesse “falando com os seus capangas do Mato Grosso”, segundo observações anteriores do ex-presidente do STF, Joaquim Barbosa.

Mendes não deixou passar em branco as menções de seus pares à antropologia. Cagou regras. Dissertou sobre – digamos assim – o método etnográfico de coleta e registro de dados, na linha de sua colega autora de “Uma Antropologia Imóvel” (Abreu 2012, FSP 17/11). Mas enquanto ela terceiriza e contrata entrevistadores, Gilmar reivindica o trabalho de campo que, para ele, consiste em visitar as sociedades nativas, sem necessidade dos incômodos da vivência prolongada e da aprendizagem da língua, como propõem autores antigos. Para um bom entendedor, um breve look basta.

Visitas etnográficas

– “É muito fácil palpitar sobre o tema sem conhecê-lo. Quando o STF julgou o caso Raposa Serra do Sol, eu visitei a região de Roraima para não ficar dando palpites a partir da praia” – disse Gilmar, contando que o mesmo aconteceu com os índios na Bahia, quando ele e o então ministro da Justiça Eduardo Cardozo estiveram em Ilhéus.

– “Quem quiser entender a realidade, visite uma aldeia. Eu falo com conhecimento de quem vai ao local e conhece” – insistiu Gilmar, lembrando que esteve recentemente no Amazonas e lá aprendeu in loco, conversando sobre os índios com um “nativo” que preside o Tribunal Regional Eleitoral.

E quais foram os conhecimentos que ele produziu com tal metodologia, que dispensa a teoria e as ferramentas conceituais para valorizar a visão do turista sobre a sociedade visitada? Quais pontos relevantes da etnografia foram registrados, mesmo sem vivência contínua entre os nativos e sem ter compartilhado sua cultura?

Na Bahia, bastaram algumas horas de observação não participante para Gilmar identificar falsos índios e desqualificar o registro feito “por uma antropóloga portuguesa” cujo nome cavalheirescamente não citou. Trata-se, na realidade, de Suzana Viegas que, em 1997, para sua tese de doutorado, apesar de ter convivido longo tempo com os Tupinambá de Olivença, não percebeu aquilo que o olhar percuciente de Gilmar observou:

– “Eu vivo em Brasília desde os anos 70 e nunca vi índio por aqui. Agora apareceram os índios do Noroeste. É razoável isso? Quem vai ao sul da Bahia sabe dos conflitos que lá se instalaram. Estive em Ilhéus. Fiquei impressionado com índios de variadas ordens, vi gente andando de motocicleta, alguns negros, brancos, louros, todos se autodeclarando índios. Na verdade são pessoas que sofrem de (inaudível) e que buscam algum tipo de abrigo. O que é mais conveniente: ser sem-terra ou ser índio? Tem que debater com seriedade e não estimular os engodos e os enganos”.

O dono da bola

“Virar índio”, para Gilmar, está proibido, porque índios têm a posse de terras cobiçadas pelo agronegócio. Mas se um índio andar de moto ou tiver o cabelo louro, aí sim ele “desvira” e “desvirando” perde o direito e libera as terras para aqueles, que quando presos, são libertados por Gilmar, cujo discurso omitiu que os índios não reivindicam a propriedade da terra indígena, que é da União, mas o usufruto. Quem quer a propriedade são os amigos de Gilmar. Com os olhos faiscando de cobiça e lambendo os beiços, ele falou:

– “Os Pareci vivem em área riquíssima, com valor da terra altíssimo, 500 sacas de soja por hectare, R$ 30 mil por cada hectare e veja o quadro de pobreza em que os índios estão inseridos. A simples outorga de terra aos índios, muitas vezes significa sonegar-lhes o acesso aos bens básicos. Não é um problema de terra, mas de articulação de normas de organização. Os índios precisam mudar, adotar procedimentos que os levem a outro estágio”.

O seu conceito de pobreza é límpido como as águas do rio Tietê. Pobre é quem não tem o que Gilmar tem, ele nem suspeita que existe gente que não quer ter o que ele tem, sobretudo pagando o preço que ele paga: permanentemente acocorado diante do poder e da grana como bem lembrou Egydio Schwade que foi professor no colégio jesuíta em Diamantino.

Foi justamente a lembrança desse fato que permitiu o antropólogo do STF dar o xeque-mate em seus colegas:

– “Convivi com esses índios [Pareci], Conheço bem a região, porque cresci nela, sou de Diamantino, fui educado pelos jesuítas que tinham uma base em Utiariti. Daniel Cabixi, liderança indígena, foi meu colega de sala de aula, joguei futebol com os índios, falo com conhecimento de causa e sobretudo com simpatia”.

Bota simpatia nisso. Parece que hoje o mar não está pra peixe ou, como quer o poeta André Valias, o Gilmar não está pra peixe. Gilmar só não contou que era o dono da bola, que precisa ser recuperada pela sociedade brasileira. A sua grande contribuição reside no fato de que ele aumenta a nossa sede de justiça.

1. Ver Katia Abreu, a antropóloga, criadora da abreugrafia. – http://www.taquiprati.com.br/cronica/1008-katia-a-antropologa-criadora-da-abreugrafia

2. Ver carta de Egydio Schwade a Gilmar Mendes. Aqui vai um pequeno trecho:

Caro GILMAR,

Já nos conhecemos há muitos anos. Cheguei ao seu município de Diamantino/MT em 1963. Na época Diamantino era do tamanho do meu Estado, Rio Grande do Sul. No mesmo ano de 1963 fui Mestre no internato de Utiariti e ajudei a criar o primeiro Ginásio do município.

Hoje, vejo e escuto as insistentes reclamações que colocam você como defensor de golpistas, a favor dos saqueadores das riquezas naturais do país, envolvido com o agronegócio e questionando a demarcação de áreas indígenas e quilombolas. As reclamações vem do movimento popular, de advogados… e até de juristas. E se dirigem contra a sua pessoa enquanto ocupante de um dos mais importantes cargos do Judiciário da República. Tudo isso me deixa profundamente triste e humilhado.

Sinceramente, Gilmar, não sei o que ocorreu com você. O menino alegre de Diamantino cheio de belos ideais, se transformou em uma personalidade ranzinza, triste, parcial, infeliz. Infeliz por dentro, preocupado em satisfazer agronegociantes, proteger gente fora da lei e violadores da justiça. Você tenta, parece, suprir esta infelicidade interior, com o dinheiro.   http://www.taquiprati.com.br/cronica/1324-o-judiciario-um-poder-que-e-politico-ate-o-tucupi-com-carta-a-gilmar-mendes-de-egydio-schwade

 

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