Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi
“Nós somos a raiz de vocês. Se morrermos, vocês também morrem porque nós somos a raiz”, dizia um cartaz empunhado por crianças Kaingang da Terra Indígena Ventarra, no Rio Grande do Sul. Os indígenas protestavam em trecho da RS-135, no início desta semana, contra a tese do marco temporal – principal argumento da Procuradoria do Estado do RS na Ação Civil Ordinária (ACO) 469 visando impugnar no Supremo Tribunal Federal (STF) a demarcação da TI Ventarra.
Junto aos Kaingang, a estimativa do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é de que cerca de 7 mil indígenas de ao menos 80 povos dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Brasília, Rondônia, Roraima, Maranhão, Ceará e Bahia foram às ruas e rodovias dizer não ao marco temporal. Confira aqui o mapa interativo das mobilizações Brasil afora.
Na última quarta-feira, 16, a ACO 469 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 3239, apresentada pelo Democratas (DEM) contra o decreto que regulamenta a demarcação de terras quilombolas, estavam na pauta do STF, mas acabaram retiradas sem nova data para a apreciação dos ministros. As matérias trazem consigo a tese do marco temporal como principal argumento e desde o Dia Internacional dos Povos Indígenas, 9 de agosto, até esta quinta-feira, 17, mobilizações tomaram conta do Brasil contra o marco temporal.
As ações fizeram parte da campanha Nossa História Não Começa em 1988! #MarcoTemporalNão!, que deverá continuar porque o marco temporal segue na pauta, mesmo depois do STF ter reafirmado nesta quarta, 16, o direito dos povos indígenas como originários – uma vitória importante e não definitiva – nas ACOs 362 e 366, movidas pelo Estado do Mato Grosso, exigindo indenizações pela demarcação de terras indígenas no estado. “Campanha importante pros povos indígenas porque a tese do marco temporal é autorizar o genocídio atual e esquecer o que ocorreu”, disse Elizeu Guarani e Kaiowá em uma intervenção dos povos indígenas no Congresso Nacional.
No Mato Grosso do Sul foram dezenas de protestos envolvendo cerca de mil indígenas. Segundo dados da Polícia Rodoviária Federal, segundo PRF houve ações de bloqueios de rodovias em Rio Brilhante (KM-304 da BR-163) com cerca de 50 Guarani Kaiowá, onde a pista era liberada periodicamente para os condutores. Em outro trecho da mesma estrada, o Km 307, os indígenas montaram bloqueio em que o fluxo ficou totalmente interditado. Em Mundo Novo, no Km 26 da BR-163, já na divisa com o Paraná cerca de 80 indígenas liberavam a pista a cada 30 minutos. Já 150 Terena, em Miranda, altura do Km 541 da BR-262, abriram a pista por cinco minutos a cada uma hora. Nioaque (Km 526 da BR-060) mobilizou 100 indígenas, Caarapó (Km 215 da BR-163) cerca de 50 índios e Itaquiraí (Km 60 da BR-163) perto de 30.
Nas estradas estaduais do MS também ocorreram protestos: MS-386, km 70, entre Amambai e Ponta Porã; MS-156, Km 231, entre Amambai e Tacuru; MS-295, entre Tacuru e Iguatemi; MS-384, entre Bela Vista e Antônio João; MS-156, Km 02, entre Dourados e Itaporã e na MS-379, entre o distrito de Panambi e Douradina – já na BR-163. Indígenas Guarani e Kaiowá dos tekohas – lugar onde se é – Sucury’i e Yvy Katu realizaram protestos em aldeias e escolas, além do trancamento de rodovias.
Cerca de 300 indígenas Terena da Terra Indígena Taunay Ipegue fecharam a BR-262, que liga os municípios de Aquidauana com Miranda. Todas as mobilizações do estado contaram com a participação de rezadores, mulheres e estudantes, sendo que em alguns casos as indígenas e os jovens realizaram as ações. “Esse marco temporal é um assassino para nós, povos indígenas. Por isso que estamos aqui, para pedir para os ministros para não aprovar isso”, afirma Leila Rocha Guarani Ñandeva.
Vigília da Justiça
Em Brasília, indígenas de diversos povos realizaram cantos e rezas na tarde de segunda-feira, dia 14. Teve início ali a Vigília da Justiça às portas do STF, na Praça dos Três Poderes. Os indígenas dos povos Kaingang, Xokleng, Guarani Mbya, Guarani Nhandeva, Guarani Kaiowá, Terena, entre outros, participarão amanhã da Vigília da Justiça, em conjunto com os quilombolas. A vigília se estendeu até quarta, 16, quando esteve na pauta de julgamento do STF ações referentes aos direitos dos povos indígenas e quilombolas. No Dia Internacional do Índio uma caminhada se encerrou no STF onde rezas e danças rituais foram feitas para “iluminar as ideias dos ministros”.
Ainda no Dia internacional dos Povos Indígenas, audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) na Câmara dos Deputados discutiu as recomendações recebidas pelo Brasil na Revisão Periódica Universal (RPU) da Organização das Nações Unidas (ONU), quando 29 países manifestaram preocupação com violações de direitos indígenas no país. Indígenas acompanharam a atividade.
Já os povos que participaram da VI Marcha dos Povos Indígenas de Roraima, em Boa Vista, divulgaram uma carta com reivindicações: “Somos os povos originários desse país, cidadãos brasileiros e guardiões desse território. Queremos respeito e dignidade!”, afirma o documento, que rechaça iniciativas anti-indígenas para a retirada de seus direitos constitucionais, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, a tese do marco temporal e o recente parecer do governo Temer sobre demarcações de terras.
Enquanto isso, país afora, os protestos seguiam. No Maranhão, da Terra indígena Rio Pindaré partiram cerca de 150 indígenas Guajajara/Tenetehar para interditar trecho da BR 316, na altura do município de Bom Jardim.
Luís Salvador Kaingang, cacique da Terra Indígena Rio dos Índios, participou do bloqueio da BR-163 realizado pelos Kaingang hoje, em Iraí (RS), na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. “Nossas terras indígenas foram roubadas. Antes de 1988 eles liberaram o espaço, tiraram a gente. A vida da população indígena está em risco porque esse marco temporal só beneficia os ruralistas, o agronegócio”, disse o cacique Kaingang. O trancamento da rodovia teve início logo pela manhã e durou até o início da noite.
Indígenas do povo Guarani e de vários outros povos que vivem em contexto urbano na capital paulista (Wassu Cocal, Pankararu, Pataxó, entre outros) participaram de um grande ato contra o marco temporal em São Paulo. Cerca de 500 pessoas, entre indígenas e apoiadores, ocuparam o vão do Masp e a Avenida Paulista em caminhada até o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3). Um grande faixa com a frase “Nossa história não começa em 1988” foi carregada pelos manifestantes, ecoando o grito originário pela maior metrópole do Brasil.
Na sexta-feira, 11, uma aula magna, além de um ato em defesa dos povos indígenas e quilombolas, foi realizada na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), como parte da programação em comemoração ao dia do advogado e da semana de recepção aos calouros. Indígenas e quilombolas participaram da atividade, que discutiu a ameaça do marco temporal e os julgamentos do STF marcados para o 16 de agosto. Organizações quilombolas e entidades de apoio movimentaram uma petição pública que reuniu mais de 60 mil assinaturas contra a ADIN 3239, nociva ao direito territorial quilombola.
O Ceará é um estado com 32 mil indígenas, oriundos de 14 povos e distribuídos em 23 terras indígenas, sendo que apenas uma teve o procedimento demarcatório concluído. A II Marcha da Terra dos Povos Indígenas do Ceará, tal contexto adensou uma semana de jornadas Brasil afora na campanha Nossa História Não Começa em 1988! #MarcoTemporalNão.
Eliane Tabajara, coordenadora regional da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), mandou um recado para Brasília em discurso inflamado: “Se o governo federal pretende retirar os direitos dos povos indígenas, saiba que já está em guerra. Não vamos aceitar. Hoje estamos na rua por nossos direitos e pela democracia”. Cerca de 2.500 indígenas estiveram nas ruas de Fortaleza, conforme as lideranças do movimento.
Durante o julgamento da liderança Pataxó Joel Brás pela Justiça Federal de Eunápolis (BA), na última quarta-feira, 16, os povos Pataxó e Tupinambá realizaram um ato em solidariedade ao indígena e aproveitaram para dizer não ao marco temporal. Joel foi absolvido pelo Júri Popular por 4 x 3 do crime de homicídio de um pistoleiro que havia armado emboscada contra o Pataxó, em 8 de dezembro de 2002.
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Foto: VI Marcha dos Povos Indígenas de Roraima. Crédito: Cimi Regional Norte I