Dizem que as eleições de 2018 estão perto, mas estão muito longe: o crime é agora
Se discute muito 2018. Se Lula (PT) será candidato ou estará preso, se o político de Facebook João Doria (PSDB) vai dar o bote decisivo no padrinho Geraldo Alckmin(PSDB), se Jair Bolsonaro (PSC por enquanto) vai conseguir aumentar seu número de votos com o discurso de extrema-direita, se Marina Silva (Rede), a que não é mais novidade, conseguirá se recuperar. Como o PMDB e o DEM se articularão para continuar no poder. Mas discutimos menos do que deveríamos o que vivemos em 2017, neste exato momento. Agora. Neste momento em que um país inteiro foi transformado em refém. Não como metáfora, não como força de expressão. Refém é o nome do que somos.
Até então só as ditaduras, aquelas com tanques e com fuzis nas ruas, haviam conseguido isso. O que acontece no Brasil é mais insidioso. O Brasil inventou a democracia sem povo. Não aquela das retóricas ou dos textos acadêmicos, mas aquela que é. O povo, para aqueles que hoje detêm o poder no Brasil, não tem a menor importância. O povo é um nada.
Com 5% de aprovação, segundo o Ibope, a menor de um presidente desde a redemocratização do país, Michel Temer (PMDB) pode fazer – faz e fará – todas as maldades e concessões que precisar para continuar onde está. Sente-se livre para não precisar dar qualquer satisfação à população. Todo o seu cálculo é evitar ser arrancado do Planalto e em algum momento despachado para a cadeia pela aceitação pelo Congresso da próxima denúncia que virá, já que da primeira ele escapou. Havia uma conversa de conteúdo mais do que suspeito, fora da agenda, à noite, na residência do presidente, e uma mala de dinheiro nas mãos de um homem de confiança de Temer – e não foi suficiente. Por que não foi suficiente? Era mais do que suficiente. Mas a justiça não está em questão. E dizer isso é o óbvio ululante de Nelson Rodrigues, chega a ser constrangedor escrever algo tão óbvio.
A presidência do Brasil hoje está nas mãos de um homem que não tem nada a perder desagradando seus eleitores, porque sequer tem eleitores. E sabe que dificilmente recuperará qualquer capital eleitoral. Sua salvação está em outro lugar. Sua salvação está nas mãos daqueles que agrada distribuindo os recursos públicos que faltam para o que é essencial e tomando decisões que ferem profundamente o Brasil e afetarão a vida dos brasileiros por décadas.
Temer goza da liberdade desesperada – e perigosa – dos que já têm pouco a perder. O que ele tem a perder depende, neste momento, do Congresso e não da população. Assim como depende das forças econômicas promotoras do impeachment continuarem achando que ele ainda pode fazer o serviço sujo de implantar rapidamente um projeto não eleito, um projeto que provavelmente nunca seria eleito, tarefa que ele tem desempenhado com aplicação. Então, o povo que se lixe. O povo saiu da equação.
O Congresso – ou pelo menos significativa parte dele – não teme mais perder eleitores. Nem mesmo simular qualquer probidade para seus eleitores. Esse nível já foi ultrapassado. A reputação dos políticos e do Congresso chegou a um nível tão baixo, que também resta pouco, quase nada, a perder. Esta poderia ser uma preocupação, a de como recuperar a imagem, nem que seja pensando nas próximas eleições. Mas o rumo tomado foi outro. A oportunidade de saquear a nação a favor dos grupos que os sustentam e de sua própria locupletação foi tão atrativa diante de um presidente que sangra por todos os poros que para que se preocupar com o povo? Que se lixe o povo. A hora é agora.
O Congresso busca agradar àqueles a quem realmente servem – e, claro, a si mesmos. Para não deixar pontas soltas onde interessa, cuidam também de aprovar o que chamam de “reforma política”, mas uma que torne mais difícil renovar a Câmara com quem não pertença à turma. É o caso do tal “Distritão”, considerado pela maioria dos analistas a pior alternativa possível. Entre seus defeitos, está o de tornar ainda pior o que já é bem ruim: a representatividade do parlamento. Mas os deputados sabem bem por que fazem o que fazem – e o que buscam ao fazê-lo.
A Bancada Ruralista é o exemplo mais bem acabado deste momento do Congresso. Grande fiadora da permanência de Temer na presidência, com 200 deputados e 24 senadores, a também chamada “bancada do boi” coleciona vitórias numa velocidade atordoante. Quando se fala em ruralistas é preciso compreender que não está se falando dos agricultores que botam comida na mesa da população nem do agronegócio moderno, capaz de entender que a preservação do meio ambiente é um ativo fundamental para o setor.
Quem está dando as cartas no Congresso (e no Governo) é o que há de mais arcaico no setor agropecuário, um tipo que evoluiu muito pouco desde a República Velha. Essa espécie não se pauta por melhorar a produção pelo avanço tecnológico e pela recuperação das terras e pastos degradados, mas pelo que lhe parece mais fácil: avançando sobre as terras públicas, incluindo terras indígenas e unidades de preservação ambiental. O coronelismo parece já ter se infiltrado no DNA, seja herdado ou imitado.
Para avançar sobre as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as mais preservadas do país, os ruralistas têm cometido todo o tipo de atrocidades. Desde a posse de Temer, a bancada do boi conseguiu suspender demarcações cujos processos já estavam concluídos e se esforça para aprovar algo totalmente inconstitucional: o “marco temporal”. Por esse instrumento, só teriam direito às suas terras os povos indígenas que estavam sobre elas em 1988, quando a Constituição foi promulgada. Para ficar mais fácil de entender, é mais ou menos o seguinte: você foi expulso da sua casa por pistoleiros ou por projetos do Estado. Era, portanto, fugir ou morrer. Mas você perde o direito de voltar para a sua casa porque não estava lá naquela data. Não é só estapafúrdio. É perverso. O marco temporal deverá voltar ao STF em algum momento, mas para agradar aos amigos ruralistas, Temer já assinou um parecer tornando o marco temporal vinculante em toda a administração federal.
Na lista de mercadorias da fatura ruralista para a manutenção de Temer no poder já foram entregues ou podem ser em muito breve barbaridades de todo o tipo: o desmonte da Funai, hoje à míngua e nas mãos de um general; a regularização de terras griladas (roubadas do patrimônio público), legalizando a rapinagem, aumentando o desmatamento e os conflitos, especialmente na Amazônia; o parcelamento de dívidas de proprietários rurais com a previdência em até 176 vezes, com o mimo adicional da redução da alíquota de contribuição; a redução em curso da proteção de centenas de milhares de hectares de unidades de conservação; mudanças nas regras do licenciamento ambiental que, se aprovadas, na prática não só abrirão a porteira para os empreendimentos dos coronéis da bancada e seus financiadores, mas tornarão o licenciamento ambiental quase inexistente (vale lembrar que a lama da Samarco aconteceu com as regras atuais e o que querem é torná-las muito mais frouxas).
Não para por aí. Os ruralistas querem bem mais: querem até o fim deste ano conseguir a permissão da venda de terras para estrangeiros e também mudar as regras sobre os agrotóxicos, o que no Brasil já é uma farra com graves consequências para a saúde de trabalhadores e de toda a população, mas os coronéis acham que tá pouco. E o objetivo de sempre, sua bandeira mais querida: botar a mão nas terras públicas de usufruto dos índios com a abominação chamada PEC 215.
A eleição de 2018, esta que ainda é uma incógnita, está perto? Me parece que está muito longe. Enquanto ela não chega, os ruralistas estão transformando o país numa ação entre amigos. Estão fazendo, sem que ninguém os freie, algo muito, mas muito grave, que afetará gerações de brasileiros que ainda nem nasceram: estão mudando o mapa do Brasil. Quando 2018 chegar, já era. Porque já é.
Há muita vida até 2018. E muita gente morrendo pela democracia sem povo que aí está. A fome e a miséria aumentando, as chacinas no campo e na floresta aumentando, os moradores de rua multiplicando-se nas calçadas (e sendo atacados, quando não mortos), os faróis repletos de pessoas tentando desesperadamente sobreviver vendendo alguma coisa, e os direitos duramente conquistados por décadas sendo destruídos um a um. Qualquer um que viva a vida de quem trabalha para se sustentar sente no dia a dia que perde. E perde rapidamente. Perde objetivamente, perde subjetivamente. Os abusos de poder estão por toda parte. E a Polícia Militar assumiu sem disfarces a ideologia de defender os grupos no poder contra o povo violentado por estes grupos.
Parece que se vive como se “ok, por agora está tudo perdido mesmo, vamos tentar melhorar o xadrez para 2018”. Um xadrez que, pelo menos para a esquerda, não está fácil. E não está fácil nem mesmo para qualquer coisa que se possa chamar de uma direita de fato. Mas a vida acontece agora. E muito está acontecendo agora. Tudo o que se viverá até a eleição e a posse dos eleitos afeta e afetará de forma profunda e permanente a vida dos brasileiros.
Este momento não é um soluço no tempo. O ano de 2017 não pode ser um entretempos, porque não está sendo para quem tem o poder para saquear o Brasil e os direitos dos brasileiros. Para estes está sendo o melhor tempo. Poder usurpar de tal forma o poder e ainda chamar de democracia?
É um outro nível este a que o Brasil chegou depois do impeachment de Dilma Rousseff, este momento em que não é preciso mais sequer manter as aparências. Para o impeachment, havia multidões nas ruas. Pode se discordar da interpretação que estas pessoas faziam do momento do país, pode se suspeitar das reais intenções dos grupos que lideravam os protestos “anticorrupção” – hoje desmoralizados pelo silêncio diante das evidências muito mais eloquentes contra Michel Temer –, mas não se pode negar que havia milhões nas ruas. Havia aparência. Havia a aparência de que a voz de parte significativa da população estava sendo ouvida mesmo que as razões para o impeachment fossem claramente insuficientes para justificá-lo.
Hoje, a população sequer está nas ruas. E torna-se muito mais assustador quando aqueles que detêm o poder chegam à conclusão de que não precisam mais sequer convencer a população ou cortejar seus eleitores. Quando descobrem que não precisam sequer se dar ao trabalho. De que podem prescindir de fazer de conta. A tarefa que precisavam que a população desempenhasse era a de ir para as ruas pedir o impeachment de Dilma Rousseff. Milhões foram, vestidos de amarelo, sob a sombra do pato da Fiesp. E agora se tornaram dispensáveis. E a parcela da esquerda que ainda podia fazer um barulho nas ruas pelo impeachment de Temer parece ter também calculado que é melhor (para seu projeto eleitoral) deixar as coisas se esgarçarem ainda mais até 2018. Se houve algum barulho quando o Congresso decidiu rejeitar a denúncia contra Temer, ele foi sepultado por um silêncio de tumba.
Ter o país sob o comando de pessoas que distorcem e afirmam o contrário do que apontam os fatos é assustador. Mas alcançamos um outro tipo de perversão, aquela que dispensa até mesmo as aparências. Pessoas que sequer se preocupam em aparentarem fazer a coisa certa. Os encontros à noite, fora da agenda, entre Michel Temer agora até mesmo com a procuradora-geral que nem assumiu ainda, as confabulações de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, com pessoas que poderá julgar, Aécio Neves autoconvertido no novo Eduardo Cunha. Enfim, nada mais eloquente do que uma mala de dinheiro ligada a um presidente que não é impedido de presidir.
Se Temer ainda no Planalto é a materialização do cinismo vigente no país, o candidato a substituí-lo em caso de afastamento, Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara e também investigado da Lava Jato, é a troca para nada mudar, já devidamente acertada com os reais donos do poder. Mas ainda assim era preciso que isso acontecesse, para que algum limite existisse. Como não aconteceu, descemos a esse estranho mundo sem referências em que cada um está dando um jeito de se mimetizar e sobreviver.
A crise da palavra, esta que está no coração deste momento histórico, segue produzindo fantasmagorias. Como a “pacificação do país” de Michel Temer, em que a paz é só para ele e os que o mantêm no poder. Ou o argumento mais furado que uma peneira de que é melhor não tirar Temer agora por conta da “estabilidade”. Estabilidade para quem? Quem são os que estão se sentindo estáveis? Você está?
No segundo mandato interrompido de Dilma Rousseff, a palavra mais obscena era “governabilidade”. Em nome da “governabilidade”, traições profundas foram cometidas. Hoje, a obscenidade que enche a boca de tantos e consome muita tinta nos jornais é “estabilidade”. Há também os tais “sinais da economia”. Se há algo que atravessa a história do país, com especial ênfase a partir da ditadura civil-militar, é a mística dos economistas, com seus jargões, fazendo que pareça evidência científica o que seguidamente está mais próximo da astrologia.
Certa casta de economistas um dia terá uma categorização própria na história. Olhando com a necessária distância, é bem curioso o poder que exerce, ao ocupar largos espaços na mídia para legitimar o ilegitimável. Delfim Netto é talvez o personagem mais fascinante. Signatário do AI-5 e ministro de vários governos da ditadura civil-militar, inclusive liderando a pasta da Fazenda nos tempos de Médici, os mais brutais do regime, conseguiu a façanha de hoje opinar na imprensa de todos os espectros ideológicos, da direita à esquerda. Tornou-se um guru, sem que isso produza um mínimo de estranhamento ou perguntas incômodas sobre o fato de ter compactuado com uma ditadura que sequestrou, torturou e matou milhares de brasileiros. Está aí, bem tranquilo, ditando o que está certo e errado no país. Dando receitas para o momento como se estivesse num programa de culinária.
Os gritos nas redes sociais (quase) não produzem movimento. Servem mais para ilusão de que se protesta e de que se age. Uma espécie de descarga de energia que se exaure na própria bolha e nada causa. Servem, sim, para camuflar a paralisia. Nem mesmo a vergonha que se produzia com a imprensa estrangeira chamando o Brasil de “república de bananas” provoca hoje qualquer efeito concreto. Temer causa vexame em cima de vexame no exterior e já não importa. Já não há vergonha. Há uma espécie de aceitação de destino, do pior destino. E há uma desistência. E talvez algo ainda pior, que é a corrosão de qualquer sentimento de pertencer a uma comunidade. O imperativo parece ser o de cuidar da própria vida enquanto der. Mesmo sentindo que há muito já não está dando.
Fica a dica: 2018 está longe, embora muitos digam que é logo ali. Sem contar que não há nenhuma garantia de que vai melhorar depois da eleição. Mas agora, neste momento, pessoas estão morrendo mais do que antes, passando fome mais do que antes, sendo expulsas de suas casas mais do que antes, perdendo seus direitos mais do que antes. Nas periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estão matando mais, seguidamente com a farda do Estado. A floresta amazônica está sendo mais uma vez entregue ao que há de mais arcaico na história do Brasil e está sendo destruída de forma acelerada, comprometendo qualquer futuro possível. E você, isso que se convencionou chamar de “povo”, não importa para mais nada.
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Imagem: Michel temer no Palácio do Planalto. ADRIANO MACHADO – REUTERS