Há limite para o crescimento do discurso racista e intolerante no Brasil?, por Leonardo Sakamoto

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Uma marcha contra o racismo, o preconceito e o neonazismo, em Boston, nos Estados Unidos, neste final de semana, reuniu cerca de 40 mil pessoas. Tornou irrelevante um outro ato convocado, na mesma cidade, em nome da ”liberdade de expressão”, reunindo grupos de extrema direita que demandam tolerância à intolerância.

Os eventos em Charlottesville, com homens brancos carregando tochas e entoando palavras de ordem contra negros, migrantes, população LGBT e judeus, que culminaram na morte por atropelamento de uma manifestante antifacismo, deram início a uma reação. Não se sabe qual sua extensão, mas certamente ela conta com a ajuda de Donald Trump que em suas catastróficas intervenções tentou equiparar manifestantes racistas com aqueles que eram contra o discurso de ódio.

Executivos de grandes empresas que participavam de conselhos de Estado deixaram seus postos em protestos às declarações de Trump, que foi obrigado a dissolver essas instâncias sob o risco da humilhação de uma debandada geral. A população passou a questionar marcas das empresas com relação estreita com o governo norte-americano por conta do ocorrido. Ameaçavam com um dos mais fortes instrumentos da democracia liberal: o boicote.

Capas de veículos de comunicação como a New Yorker, a Time e a Economist, esta última inglesa, mas com grande circulação nos EUA, afirmaram claramente que o país, sob Trump, estava ventilando grupos racistas e neonazistas. A maré negativa na mídia foi tão pesada que o presidente foi criticado até pela aliada e conservadora rede de televisão Fox News.

Se demonstra que a paciência da elite liberal norte-americana com Trump está cada vez menor (os progressistas de lá estão em guerra contra ele desde antes da posse), isso está longe de significar uma mudança estrutural na forma como o Estado norte-americano trata suas minorias em direitos. Vidas negras continuarão não importando e sendo alvo preferencial da violência policial, da mesma forma que trabalhadores migrantes ainda serão tratados como carne de segunda, com ou sem a ampliação do muro com o México.

Mas a reação de parte da sociedade, que não comunga com esses valores e nem cai no discurso fácil de culpar os ”outros” pelos problemas econômicos e sociais do país, é uma sinalização política importante. Lendo os relatos percebe-se que muitos foram os que deixaram de lado o ”ativismo de sofá” e marcharam para deixar claro sua insatisfação.

Ao mesmo tempo, uma parte da mídia tradicional deixou claro o seu posicionamento a respeito do tema sem a covardia de ficar em cima do muro. Deixando de lado a pretensão impossível da imparcialidade, veículos de comunicação não protegeram o discurso que fomenta o ódio e a violência sob a justificativa de estarem garantindo ”liberdade de expressão”.

Nos últimos anos no Brasil, ocorreram manifestações que pediram a intervenção militar na democracia brasileira – uma forma pouco rebuscada de defender um golpe militar. Seus defensores exigem, paradoxalmente, a liberdade para proferir um discurso intolerante, defendendo a volta a um tempo em que a tolerância e a liberdade eram proibidos.

Mas também protestos contra migrantes, usando discurso de ódio contra um grupo que está entre os mais vulneráveis da sociedade. Ações e discursos que empoderam malucos que vão, depois, atacam pessoas nas ruas. Como ocorreu com o refugiado sírio Mohamed Ali, agredido enquanto vendia esfihas em Copacabana, no Rio de Janeiro.

Após a repercussão do ocorrido, um evento em rede social foi criado para prestar solidariedade a ele e uma fila com centenas de pessoas se formou em frente à sua barraquinha para comprar seus produtos. Paralelamente, um grupo de cerca de 20 pessoas protestava contra pessoas de países de maioria islâmica a poucos quilômetros de lá, no Arpoador. Cartazes como ”Muçulmanos: assassinos, sequestradores, estupradores” eram ostentados sem pudor algum.

Quem faz o contraponto a manifestações que pregam o discurso de ódio nas ruas são, normalmente, grupos antifascistas aqui e nos EUA. Você pode concordar ou não com seus métodos, mas são, muitas vezes, a única coisa que os neonazistas temem, uma vez que policiais têm escolhido um lado quando esses grupos se encontram. E não é o lado que repudia o preconceito.

Considerando que nossa sociedade é mais violenta que a norte-americana sob qualquer ponto de vista; que aqui vidas negras importam muito pouco (dos quase 60 mil homicídios em 2015, as vítimas preferencias foram jovens negros e pobres); que homossexuais e transexuais são violentados e mortos de forma cruel ou tratados como cidadãos de segunda classe; que migrantes são atacados com frequência, inclusive com o uso de armas (como foi o caso de haitianos vítimas de projéteis perto de um centro de acolhimento na capital paulista); me pergunto qual seria o estopim para que parte da população brasileira fosse às ruas contra tudo isso.

Digo parte porque há um naco da sociedade que não se rebaixa a ponto gritar publicamente contra minorias, esfaquear gays ou chacinar jovens em favelas, mas se sente bastante confortável que alguém faça isso por eles. Pode até não estar entre aqueles que postaram comentários hediondos contra o fato de Monalysa Alcântara, negra e piauiense, ter sido escolhida miss Brasil, neste sábado (19), mas sorriu ao lê-los.

Pode-se afirmar, claro, que, no Brasil, marchas por direitos são maiores e mais frequentes que nos Estados Unidos. De manifestações e atos pelo direito da mulher ao seu próprio corpo, passando pela legalização da maconha, pela mobilidade urbana, por políticas de moradia, pelo orgulho LGBT até contra a Reforma da Previdência e o governo Temer.

Mas os discursos que defende racismo, machismo e homofobia e autoriza a violência contra grupos mais vulneráveis viraliza e segue ganhando forma na rede e nas ruas no Brasil. Enquanto não tivermos mobilizações grandes e contundentes contra isso, esse tumor tende a crescer. Com a ignorância sendo organizada pela internet, não sabemos o que pode acontecer.

Existe por aqui um estopim para desencadear uma reação ou o espaço que o conservadorismo violento tem para crescer no Brasil é infinitamente maior que nos EUA?

Talvez o ponto de virada sejam as consequências nefastas da eleição de uma versão nacional menos cosmopolita, menos preparada política e economicamente e mais tosca que Trump. Ou talvez nem isso.

O problema é que uma parte de nossa elite também é menos cosmopolita, menos preparada e mais tosca que a norte-americana. Lá existe uma direita liberal consistente e democrática, coisa que faz falta no debate público daqui. No Brasil, o pensamento dominante segue sendo o velho patrimonialismo e, diante da indistinção entre o que é público e o que é privado, trata-se o público como privado.

E considerando que há grandes empresários que não têm vergonha alguma em dizer que, por exemplo, trabalho escravo não existe (apesar de pertencerem ao agronegócio e ao setor de vestuário, com grande ocorrência de libertações de pessoas) e que defendem valores que fazem corar o Tea Party, movimento ultraconservador ligado ao partido republicano, talvez a eleição de uma figura apolítica seja tudo o que o Brasil precisa para se tornar uma grande Bangladesh ou Somália da desregulamentação do mercado de trabalho e do fim do ”peso” dos programas sociais.

Ao mesmo tempo, uma parte progressista homem e branca da sociedade permanece reclamando porque grupos historicamente vilipendiados resolveram deixar claro que estão assumindo um novo patamar na luta contra o racismo, o machismo, a homofobia, a humilhação. Essa ala progressista fica de mimimi ao invés de aceitar a autocrítica (que incomoda, eu sei, por isso é necessária), ouvir outros grupos sobre as formas de apoiá-los e ir às ruas ao seu lado, ao invés de subordiná-los à estrutura partidária, sindical ou de movimentos tradicionais ou à sua própria narrativa.

Talvez estejamos apenas esperando um país de terra arrasada para que os poucos que sobrarem superem as diferenças e marchem juntos sobre seus escombros.

Imagem: Cartazes contra muçulmanos carregados por grupo no Rio. Foto: Débora Garcia

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