Xangô! Livre-nos do governo ilegítimo de Temer! O direito das comunidades quilombolas à mercê das conveniências do poder

Por Joaquim Shiraishi Neto(1), no Combate Racismo Ambiental

Ontem (16 de agosto), estava ansioso para acompanhar na TV Justiça o desfecho do julgamento no STF da ADI 3.239, que discute a constitucionalidade do Decreto 4.887/ 2003. O julgamento, iniciado em 2012, foi novamente adiado, tendo em vista o alegado problema de saúde do ministro Dias Toffoli, que não pôde comparecer à sessão. A longevidade da ação e a demora no julgamento bem expressam os “compromissos” do STF com questões relevantes do Brasil, sobretudo se essas estiverem relacionadas a dois temas caros à sociedade brasileira: raça e terra.

O governo ilegítimo de Temer, que tomou o poder, argumenta que os processos de titulação das terras das comunidades quilombolas estão paralisados a esperar o julgamento da ADI no STF. Na verdade, a disseminação desse discurso tem servido para encobrir o descaso e, sobretudo, as ilegalidades praticadas em torno de um direito fundamental expresso no texto constitucional (Art.68 ADCT), que sistematicamente é violado pelo governo.

A análise das medidas legais (Medidas Provisórias, Leis e Decretos) adotadas por esse governo ilegítimo em relação às questões quilombolas (e indígenas) é reveladora da afirmação, pois não se trata de um mero “desmonte”, como é denunciado, mas de usos do direito pela política. No caso, a questão da terra é central no debate, uma vez que tituladas ou demarcadas vão para fora do mercado de terras, impossibilitando que o agronegócio tenha acesso a elas.

A proposta é utilizar o direito (isto é, as “leis”) para ler e compreender os interesses e as forças secretas no jogo político, que bloqueiam a efetivação do direito das comunidades quilombolas, posto que ele se torna um lugar privilegiado para a observação dos processos políticos no país(2).

Em 12 de maio de 2016, foi editada a Medida Provisória 726, posteriormente convertida em Lei (Lei 13.341 de 2016), que “dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios”. Tal medida, convertida em Lei, extinguiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário (art.1°, inciso V), incorporando-o ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o que resultou no Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (art.2°, inciso V). O referido diploma legal mexeu também com as atribuições do Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares (FCP), que passou a ter a seguinte atribuição: “assistência e acompanhamento do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos.” (art. 12, inciso IV, letra d).

Após a Lei 13.341 de 2016, o governo ilegítimo continuou com o seu pacote de medidas, ao editar o Decreto 8.865, de 29 de setembro de 2016, o qual tratou, ainda, de transferir a competência da “reforma agrária” (art.3°, inciso I) e da “delimitação das terras das comunidades dos quilombos e determinação de suas demarcações, a serem homologadas por decreto” (art. 3°, inciso III), do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário para a Casa Civil da Presidência da República. Aqui também outra novidade a que se refere à “homologação por decreto”, já que os dispositivos anteriores não fazem alusão a tal procedimento.

Observem a gravidade do ato, lembrando que a Casa Civil é um ministério de articulação política, que envolve muita conversa, conchavo e barganha, além de não estar preparado institucionalmente, e nem operacionalmente, para tamanha atribuição que lhe foi conferida pelo Decreto.

O rearranjo institucional promovido deliberadamente subordina o direito fundamental das comunidades de quilombo (extensivamente aos agricultores tradicionais) aos interesses do governo e daqueles que o apoiam (especificamente, a “bancada ruralista” no Congresso Nacional e o capital financeiro). Em outras palavras, o direito fundamental de um grupo é transformado em objeto de barganha do jogo político. E isto tem servido para que um presidente ilegítimo promova “reformas”, extinguindo direitos sociais e trabalhistas, e se mantenha no cargo, mesmo que sobre ele recaiam gravíssimas acusações de corrupção e obstrução da justiça.

Do ponto de vista da execução do processo de titulação das terras das comunidades quilombolas, esse ato afronta os princípios da administração consagrados na CF de 1988 (art. 37), economia e eficiência administrativa. No caso das comunidades de quilombos, o direito à consulta prévia, livre e informada também é violado. Valendo-me da vivência como pesquisador e advogado de comunidades quilombolas no Maranhão(3), me recordo como foi longa (mais de 25 anos) e necessária essa luta que levou à estruturação, à organização administrativa dos processos e de uma rotina de procedimentos no interior dos órgãos envolvidos (INCRA e FCP).  Importa sublinhar que tudo isso só foi possível graças ao envolvimento e à participação direta de representantes de várias comunidades quilombolas do Brasil, destinatárias do direito.

Como se não bastasse toda a alteração legislativa relatada, mais recentemente, em 31 de maio de 2017, o governo ilegítimo editou a Medida Provisória 782, que “estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios”(4). Referida MP reproduziu o conteúdo do Decreto 8.865, de 29 de setembro de 2016, que definiu a Casa Civil como responsável por “promover a reforma agrária” (art.3°, III) e “delimitar as terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos e determinar as suas demarcações, a serem homologadas por decreto”.  (art.3°, V)

Além disso, essa Medida Provisória criou o Ministério da Justiça e Segurança Pública, cuja área de competência são os direitos indígenas (art.47, III). Ao subordinar tais direitos ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o governo ilegítimo se afastou dos debates contemporâneos sobre a questão indígena, que se relaciona com as noções de povo, autodeterminação, direitos originários/ancestrais, em direção a uma discussão já superada no plano jurídico internacional e nacional, a saber: soberania, assimilação e tutela.

Em síntese, enquanto os direitos das comunidades quilombolas viraram objeto do jogo político, os direitos dos povos indígenas ficaram subordinados a um pensamento e ação datados do início do século XX. Oxalá possa Xangô  fazer  Justiça, retirando do governo esse presidente ilegítimo!

[1] Doutor em Direito. Professor Visitante da Universidade Federal do Maranhão, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (PPGDIR-UFMA). Pesquisador FAPEMA e CNPq. Bolsista produtividade CNPq nível 2.

[2] EDELMAN, Bernard. A Legalização da Classe Operária. Tradução Marcus Orione. 1° ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

[3] Ainda em 1998, sob a coordenação da antropóloga Maristela de Paula Andrade, percorria os cartórios de registro de imóveis do Maranhão levantando informações para a elaboração dos denominados “Relatórios Fundiários”. Em Alcântara, levantei dados que subsidiaram pesquisas, relatórios e laudo antropológico. Sobre esse trabalho nos cartórios, recomendo SHIRAISHI NETO, Joaquim. Práticas de Pesquisa Judiciária para Identificação das Denominadas Terras de Preto nos Cartórios do Maranhão. São Luís: MPP-UFMA, 1998.

[4] Concomitantemente, esse governo ilegítimo edita outras Medidas Provisórias, igualmente nocivas aos povos e comunidades tradicionais do Brasil. No caso, destaco a Medida Provisória 759/ 2016, convertida em Lei (Lei 13.465/ 2016), que dispõe sobre a simplificação da regularização fundiária urbana e rural, medida essa que atende os interesses do capital financeiro, que já algum tempo reivindica reformas na legislação de terras do Brasil.

Destaque – Fonte: Arquivo do Projeto de Pesquisa “Território Quilombola Sesmarias do Jardim na defesa de patrimônios culturais e ambientais”, 2017.

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