Congresso quer nos transformar em cobaias com sua Reforma Política

Por Fernando Neisser*, especial para o blog do Sakamoto

No canteiro de obras:

– Caramelo. É isso!
– Como é que é?!
– Depois de ficar duro, sabe? Quando esfria.
– Você está louco? Uma ponte construída com caramelo?
– É. Acho que vai ficar boa. O pessoal vai gostar. Quem não gosta de caramelo?
– Mas caramelo aguenta? Dá para passar de carro no caramelo?

Na sala de cirugia:

– Bisturi.
– Aqui está.
– Pinça.
– Na mão.
– Caramelo.
– Caramelo??
– É, caramelo. Para a sutura.
– Mas, doutor… Funciona?
– Ah, é meio grudento, né? E quem não gosta de caramelo?

Os diálogos acima, por absolutamente inverossímeis, podem causar riso. Na pior das hipóteses, piedade do escritor que mal soube dar credibilidade à sua ficção.

Engenharia e medicina são exemplos de campos do conhecimento nos quais não ousaríamos jamais arriscar algo tão disparatado quanto uma solução com um caramelo. Sabemos, instintivamente, que qualquer pequeno detalhe pode trazer consequências graves.

Infelizmente, não percebemos que assim também deveria ser com a discussão da Reforma Política, especialmente quando se fala em alterar o sistema eleitoral.

O Congresso Nacional está em vias de adotar um modelo jamais testado em uma grande democracia. Cientistas políticos, juristas e demais estudiosos no tema são unânimes em afirmar o equívoco da proposta.

Unânimes. Mesmo. Leia-se: não há uma única voz divergente em todo cenário científico brasileiro.

A Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), entidade que reúne eleitoralistas de todo o Brasil, manifestou-se contrariamente à aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 77/2003. Pois, sob o argumento de simplificar o sistema, coloca-se em risco nossa democracia já tão combalida. São diversos os problemas do modelo alcunhado ”distritão”:

1) A maior parte dos votos dados é desprezada, não servindo para eleger qualquer representante. Todos aqueles direcionados a candidatos não eleitos, além dos que excederam os votos necessários para eleger os deputados e deputadas são ignorados.

Estima-se que, aproximadamente, 70% dos votos não se farão representar no Parlamento. Esse desprezo traz uma consequência relevante e grave: o eleitor começa a perceber que seu voto quase nunca terá qualquer relevância.

Sabe o eleitor democrata do Texas, que tem maioria republicana? O republicano da Califórnia, que tem maioria democrata? Então, sabem que jamais seus votos alterarão os eleitos de suas regiões. O que fazem? Praia nas eleições – ou deserto, não sei, no caso do Texas.

Em outras palavras, afastam-se ainda mais da política, que deixam de ver como um caminho a construir a sociedade coletivamente.

2) Alija as minorias do Parlamento, efeito observado em todo sistema majoritário.

Quando se busca exclusivamente os candidatos mais votados em uma região, as preferências tendem a recair sobre o comum, o que já está lá. O ”óbvio”. Basta pensarmos nas eleições a prefeito, feitas pelo sistema majoritário. Quantas mulheres se elegem? E os não-brancos? Pessoas LGBT?

O Parlamento deve ser o espaço da diversidade, abarcando as múltiplas facetas da sociedade. Não um espelho deturpado, que só reflete uma mesma e batida imagem.

3) Enfraquece ainda mais os partidos. Os candidatos não mais precisarão dos votos dados aos demais candidatos do mesmo partido ou na legenda.

Ao contrário, sendo uma eleição individual e individualista, o melhor é esconder tanto quanto possível que há um partido por trás. As propostas serão do candidato, bem como a estrutura de sua campanha. Partidos passam a ser meros cartórios em que se registra a filiação. Ao invés de buscarmos reverter a lastimável falta de coerência do sistema partidário, aceitamos sua derrocada.

4) Reduz drasticamente as escolhas dos eleitores, uma vez que só fará sentido aos partidos lançar candidatos com maior perspectiva de votos.

Os caciques partidários, responsáveis pela escolha dos candidatos, não poderão correr o risco de ver os votos divididos a ponto de colocar em risco sua eleição. Menos candidatos podem garantir a concentração dos votos naqueles que comandam a máquina. Assim, dificulta a ascensão de novos nomes e a renovação da política.

5) Dá uma força desmesurada a dois critérios: taxa de conhecimento e dinheiro para a campanha.

Quem já é deputado contará com esses dois fatores, especialmente com o aumento do financiamento público, controlado pelas cúpulas partidárias. Além deles, terão chances apenas os candidatos-celebridades e aqueles que puderem financiar as próprias campanhas.

Por essas razões, não se pode admitir que o sentimento de ”mudança pela mudança” leve a sociedade a aceitar uma reforma atabalhoada, que enfrenta a oposição de todos aqueles que se dedicam a pensar o tema.

Acossada pela crítica, parte da Câmara dos Deputados busca costurar uma saída alternativa. Um suposto ”distritão” misto ou light, um ”semidistritão”.

Mesmo quando conhecemos a fundo um sistema, seus modelos mistos já oferecem riscos, pois somam tanto virtudes quanto defeitos das versões originais. Imagine uma variação como essa, considerando que o ”distritão” original só é aplicado no Afeganistão, na Jordânia, em Vanuatu e nas Ilhas Pitcairn.

Como já ironizava Delfim Neto, um sujeito com o rabo no forno e a cabeça na geladeira, na média está bem.

Não se sabe o que seria esse monstrengo, muito menos suas perversas consequências. Seu único intuito é beneficiar quem está no mandato e teme as urnas em 2018. Por isso, não podemos colocar a perder a longa e árdua construção democrática que, aos trancos e barrancos, há quase 30 anos vem conferindo alguma estabilidade institucional ao Brasil.

Que busquemos corrigir as distorções do nosso sistema com os pés no chão, apoiados no devido conhecimento técnico e tendo uma fotografia clara do futuro que queremos: um modelo que amplie a representatividade e torne o sistema político mais próximo da cidadania.

*Fernando Neisser é coordenador adjunto Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep)

Foto: Ellen van Deelen/Pinterest.

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