Temer diz que precisamos de “disciplina”. Eu me contentava com democracia, por Leonardo Sakamoto

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Michel Temer, em evento nesta segunda (28), ficou encantado com um grupo de crianças que obedecia ao comando de um maestro em um coral. ”Eles agem coletivamente e de maneira muito regular”, afirmou. ”Uma coisa que nós precisamos muito no Brasil é disciplina. As crianças deram a todos nós um exemplo de organização e disciplina.”

É impossível deixar de perceber uma pontinha de inveja do tal maestro nas palavras de Temer.

Qual seria o segredo dele? Ele não precisou chamar as Forças Armadas, usar gás lacrimogênio, bombas, balas de borracha ou cassetete para que tudo funcionasse a contento. E, certamente, não teve que subornar os pimpolhos com doces e caramelos, nem prometeu a eles um lugar privilegiado no playground, muito menos perdoou as dívidas da criançada na cantina da escola para que seguissem suas instruções no coral.

Com exceção de razões patológicas, reconhecermos em alguém uma liderança baseado em fatores como legitimidade, competência, experiência ou sabedoria. Ou por esse alguém contar com um tacape gigante e deixar claro que não tem medo de usá-lo em caso de motim.

Nesse sentido, muita tese de doutorado será produzida tentando responder à grande pergunta de nosso tempo: o que levou o Brasil a continuar obedecendo ao atual governo federal, apesar de todas as demonstrações de desprezo pela coletividade que ele dá?

Não sabemos se as teses serão no campo da física (com análises sobre a inércia humana diante da catástrofe), da psicologia (com estudos sobre a incapacidade de acreditar em mudanças após tanta sacanagem) ou da medicina (com pesquisas sobre o apetite voraz a recursos públicos desenvolvido por parte dos poderes econômico e político em tempos de crise).

Em uma República, o Poder Executivo não pode simplesmente impor sua vontade para o Congresso Nacional. Como estamos acostumados às relações incestuosas de governos com parlamentos, esquecemos que o sistema de freios e contrapesos deveria ser efetivo. Ou seja, o conjunto de leis e normas que garantem o equilíbrio e a separação entre os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo precisaria funcionar. Cada qual atuando em sua própria missão, mas também limitando a ação dos demais poderes para evitar danos ao país.

A verdade é que tanto a separação quanto o equilíbrio entre os poderes no Brasil são mitos tão grandes quanto nossa democracia racial. Na teoria, lindo. Na prática, o horror.

A falta de legitimidade de um governo, com aprovação que gira em torno de 5%, dependendo da pesquisa, aliada à falta de vergonha na cara dos congressistas e seus patrocinadores e a um sistema partidário fisiológico e autoritário faz com que os freios e contrapesos se tornem instrumentos para enriquecer. Em outras palavras, ninguém vê no governo uma liderança, mas a chave do cofre. A Reforma Política deveria estar mexendo nisso, mas fica cada vez mais claro que interesses financeiros e pessoais vão se sobrepor sobre as necessidades de reorganizar a democracia representativa.

Quanto a ser encarado como liderança pelo restante da sociedade, o negócio complica. Pois quem sonha com disciplina é o pessoal que tem saudade de uma época na qual que não se podia protestar ou reclamar. Não é disciplina que faz com que um país aceite conviver sob o mesmo projeto, mas a capacidade de seus governantes de garantirem a qualidade de vida de seu povo. Não precisamos de alguém que nos mostre a palmatória, mas que ajude a encontrar caminhos para a liberdade.

Para tanto, não basta sentar-se no Palácio do Planalto e vestir uma faixa presidencial. É preciso contar com o reconhecimento da população por atuar em seu nome e a legitimidade da escolha de seu projeto pelas urnas. Coisas que, infelizmente, Temer não tem.

Foto: Ueslei Marcelino/ Reuters.

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