Por trás do mega-ataque de Temer à Amazônia

Decreto que extingue a gigantesca Reserva Nacional de Cobre terá, de imediato, pouco efeito prático. Mas revela ação para destroçar todo o sistema de proteção da floresta, em benefício de mineradoras e agronegócio

Por Alessandra Cardoso*  – Outras Palavras

Muito tem sido dito nos últimos dias sobre a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca). Primeiro o governo federal anunciou sua extinção e, devido à ampla e negativa repercussão nas mídias nacional e internacional e também nas redes sociais, recuou. Cancelou o decreto que previa a extinção da Renca e editou às pressas um novo (No – 9.147, de 28 de agosto de 2017), publicando-o na segunda edição do Diário Oficial de segunda-feira. No entanto, a mensagem essencial em nada foi alterada: o “governo” Temer não mede esforços e muito menos consequências para atrair novos investidores e aventureiros para explorar recursos naturais amazônicos.

Mas vale ainda qualificar algumas questões sobre a Renca e sua extinção para melhor compreender o tamanho do problema e da irresponsabilidade do governo Temer com a Amazônia e com o país.

Uma primeira questão é sobre as intenções do governo militar com a criação da Renca em 1982, e como o contexto à época abriu brecha para que um outro projeto para Amazônia fosse colocado no seu lugar: o projeto da floresta preservada ao lado do direito dos povos indígenas, ribeirinhos e extrativistas às suas terras e territórios.

Para o governo militar, a Renca foi a saída encontrada para assegurar uma espécie de “reserva de minério para a Companhia Vale do Rio Doce (então uma empresa estatal, hoje privatizada e rebatizada como Vale), em um contexto em que os militares tinham como projeto garantir o protagonismo da empresa na grande exploração mineral na Amazônia, a exemplo do que já havia se dado com Carajás.

(…) “Não está em nossas mãos afetar ou diminuir o grau de competição mundial às nossas empresas estatais. O que está em nossas mãos é decidir – sim ou não – se os competidores podem operar no Brasil, sujeitos às nossas leis, integrados nos nossos interesses, cativos de nossa influência, vinculados aos nossos investimentos aqui, e, portanto, por nós influenciados – ou fazer com que eles concorram com a Vale do Rio Doce, a partir de outras áreas, sem qualquer vinculação aos interesses da economia nacional, sem nenhum desejo de preservar seus investimentos aqui, lançando-se numa competição talvez desalmada, regulada unicamente pelas vantagens comerciais que pudessem obter no mercado mundial”[1].

Ocorre que essa “reserva” foi feita em um momento, começo da década de 1980, em que, de um lado, as grandes mineradoras transnacionais estavam em uma profunda crise de superprodução, revendo e cancelando investimentos e, de outro, a Vale estava envolvida, e endividada, com os investimentos do projeto Ferro Carajás. Além disso, o Brasil estava mergulhado em uma profunda crise fiscal. Ou seja, a área da Renca, embora altamente relevante do ponto de vista do controle do acesso a recursos minerais estratégicos, não era de interesse imediato, nem das grandes mineradoras internacionais nem da da Vale do Rio Doce, então controlada pelo governo militar e já em clima de “final de festa”. A ninguém interessava disputar e explorar a Renca, e por isso ela foi mantida quase no esquecimento.

A Renca tinha, portanto, um propósito claro de controle pelo governo da exploração em grande escala de recursos minerais amazônicos. Por isso, o decreto que a criou em 1982 estabelecia o monopólio da pesquisa para a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), outra estatal brasileira; e que a exploração das jazidas potencialmente descobertas só poderia ser feita mediante negociação dos resultados dos trabalhos de pesquisa com a CPRM e, também, sob condições especiais estabelecidas pelo Ministro das Minas e Energia e como parte de uma estratégia de “Segurança Nacional”.

Em paralelo, outro projeto de país e para Amazônia estava em construção na década de 1980, sob os escombros do regime militar. O projeto democratizante, da Constituição Cidadã de 1988, da luta dos seringueiros e de Chico Mendes pelo reconhecimento de seus territórios, dos povos indígenas pelo direito às suas terras. foi nesse contexto de luta socioambiental pela preservação da floresta e dos direitos de quem nela vive que foram criadas, depois da Renca, seis das setes Unidades de Conservação e as duas Terras Indígenas que estão hoje sobrepostas à área da hoje extinta Renca. Assim, na área da falida Renca se fez presente um outro projeto para Amazônia, que está agora sob forte ameaça.

E não é à toa que a legislação destas áreas protegidas vetou a exploração mineral – proibida hoje em Unidades de Proteção Integral, em Terras Indígenas, e no caso das Unidades de Uso Sustentável, somente quando os planos de manejo permitirem a exploração em lugares específicos.

São, em síntese, projetos antagônicos que deveriam ser dessa forma compreendidos pela sociedade brasileira, para que essa pudesse se posicionar com a segurança de quem sabe das consequências. Trocando em miúdos: a legislação consolidou o entendimento que permanece: a mineração é sim incompatível com a proteção ambiental conforme prevista nestas Áreas Protegidas.

Uma segunda questão: por quê extinguir a Renca no atual contexto e quais interesses esse ato revela? De um lado, não é novidade que canadenses, australianos, chineses, empresas júniores da mineração loucas para descobrir reservas, e depois vendê-las caro, estão sempre de olho em reservas de alta relevância para exploração em grande escala – no BrasiL, em outros países da América Latina, na África, onde quer que estes recursos estejam. No caso da Renca, reza a lenda (e os pedidos de pesquisa) que lá se escondem muitos recursos, principalmente ouro, mas também titânio e cobre.

De outro lado, também não é novidade que no contexto de profunda crise fiscal de que o atual governo nos mantém refém, também reza a lenda que atrair investimentos estrangeiros para a grande mineração fará crescer a economia e gerar prosperidade. Sobre isso, vale dizer que não vão! Grandes projetos minerais na Amazônia servem essencialmente para garantir a lucratividade de corporações transnacionais, inclusive a Vale (hoje não mais uma empresa estatal) e seus investidores. Lucratividade que se serve não somente de recursos naturais que se esgotarão, mas também da superexploração do trabalho, de um licenciamento ambiental frágil, e, ainda, de inúmeros benefícios fiscais e tributários que tornam a Amazônia um paraíso extrativista e tributário para a grande mineração.

Por fim, uma terceira questão: o governo federal vem articulando uma série de medidas com as bancadas ruralista e mineral, em paralelo à Renca e com o propósito de abrir novas frentes de exploração de recursos naturais no Brasil, a saber:

1) a tentativa de flexibilização do licenciamento ambiental que tem entre seus propósitos também atrair investimentos para a exploração de recursos naturais e infraestrutura para garantir sua exportação;

2) o fim das restrições para exploração de recursos minerais em Unidades de Conservação;

3) a liberação da mineração em Terras Indígenas;

4) a criação de uma nova governança para o setor com a substituição do Departamento Nacional de Produção Mineral por uma Agência da Mineração com a promessa de agilizar a concessão de novas licenças para pesquisa, privada, e exploração.

Por isso, a publicação de uma nova versão do decreto de extinção da Renca em nada muda a intenção do “governo” Temer de atrair novos investidores e aventureiros para explorar recursos naturais amazônicos. Ele pode escrever, o que é o mesmo que chover no molhado, que, por enquanto, a exploração mineral somente está permitida na área da falida Renca que não se sobrepõe a áreas de proteção onde a mineração não é permitida. Mas está claro que as intenções vão muito além disto.

O novo decreto foi meticulosamente arquitetado para parecer um avanço em relação ao publicado na semana passada, mas, na verdade, não passa de uma retórica vazia e perversa.

Alguns exemplos:

  • Prevê o cancelamento de títulos concedidos e o indeferimento de requerimento de novos títulos nas áreas que já são protegidas da mineração e que, portanto, seriam de qualquer forma impedidas por lei. Pelo menos enquanto forem mantidas a legislação ambiental e indígena que protege áreas da mineração.

Além disso, como mostra o estudo sobre a Renca publicado pelo WWF, isto não representa muita coisa perto do que se espera atrair de novos investimentos. Segundo o estudo, existem três situações previstas na Portaria MME Nº 128 que define os trâmites administrativos para análise dos processos minerários com interferência na Renca:

i) a análise dos títulos já outorgados, o que só pode ser feito com base na legislação vigente, ou seja, não concedendo títulos em áreas onde a mineração não é permitida;

ii) o indeferimento de todos os títulos protocolizados depois da criação da Renca em 1982, o que libera espaço para novos investidores;

iii) a análise dos 160 requerimentos minerários protocolizados antes da criação da Renca; muitos de empresas que parecem fantasmas ou já extintas, à exceção, por exemplo, da Vale, que tem lá 19 requerimentos de pesquisa.

  • Prevê a criação de um “Comitê de Acompanhamento das Áreas Ambientais da Extinta RENCA” de caráter consultivo, ou seja, sem poder nenhum para mudar o jogo, e nem mesmo para acompanhar áreas que já estão sob gestão de órgãos, os quais estão falidos e incapazes de garantir a proteção – Funai e ICMBio.
  • Por fim, a pérola do mais novo conceito criado no Decreto o “interesse público preponderante”. Um festival de adjetivos que nada acrescenta à legislação em vigor.

O que está em questão, portanto, e por isso a Renca tem sido acertadamente tão discutida, é um projeto para o país e para a Amazônia que nos está sendo imposto goela abaixo por um governo sem nenhuma legitimidade e que serve a interesses que claramente não são nossos.

[1] – Ata da vigésima quinta sessão do Conselho de Segurança Nacional realizada em 18 de Dezembro de 1964. Disponível em http://imagem.arquivonacional.gov.br/sian/arquivos/1013061_51385.pdf

*Economista, mestre em desenvolvimento econômico e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

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