Chico machista?, por Maria Rita Kehl

Da página de Maria Rita Kehl

Ouvi falar que algumas meninas da nova geração feminista (bravas lutadoras contra o abuso, contra o estupro, do lema “respeita as mina” e tantos outros) andam criticando Chico Buarque pelo verso “largo mulher e filhos e vou correndo pra te buscar” (ou te encontrar, não me lembro).

Gostaria de fazer uma defesa, não do Chico individualmente, mas da autonomia de qualquer obra de arte. E sobretudo, do livre direito ao uso da ironia.

Mas também vale lembrar algumas canções que atestam o “feminismo” do Chico. Em “Deixa a morena”, por exemplo (não me lembro se o nome é exatamente este), o cantor aconselha um suposto namorado ciumento a deixar a namorada sambar em paz. “Não é por estar na sua presença meu prezado rapaz/ mas você vai mal/ mas vai mal demais/ dão dez horas o samba está quente/ deixa a morena contente/ deixa a morena sambar em paz”… O samba continua, são três horas, são seis horas. A morena continua sambando e o sambista continua aconselhando o marido ciumento a deixa-la se divertir sossegada.

Três décadas depois, Chico retomou o tema na parceria com o grande Wilson das Neves, recentemente falecido. Dessa vez a voz do cantor é a do próprio marido, ou namorado, ciumento, que sofre ao vê-la se jogar na roda de samba: “Meu coração na minha mão balança/ quando ela se lança/ no salão/ pra este ela bamboleia/ pro outro ela roda a saia/ pra aquele ela quase cai na gandaia…” Mas o machista controla seus ciúmes. Está seguro de que a moça gosta dele: “porém depois que essa mulher espalha/ seu fogo de palha no salão/ pra quem que ela arrasta a asa/ quem vai lhe apagar a brasa/ quem é que carrega a moça pra casa”? OK, as mais radicais podem se incomodar com a expressão “carrega a moça” – como assim?

Então uma mulher tem que ser carregada pelo homem? Mas a expressão está assimilada no uso popular; e seu uso resolve um problema da métrica: “quem é que leva a moça pra casa” quebraria o pé do verso. Tá certo: “quem é que a moça leva pra casa” resolveria o problema métrico, mas Chico estava mergulhado no ponto de visa do “narrador”. É o narrador da música que se vangloria de não sentir ciúmes dos olhares masculinos, enquanto ela dança, porque sabe que depois vai “carregar” a moça pra casa.

Muita gente, na década de 1970, se indignou no primeiro momento com a canção Geni e o zepelin. É a longa história de uma prostituta, sempre achincalhada pela cidade inteira. Um dia um extraterrestre desce de um zepelin e ameaça destruir a cidade inteira a não ser que… a pobre Geni se deite com ele. A cidade implora, Geni aceita, o invasor usa e abusa da moça e vai-se embora no seu zepelin prateado. O que faz o povo? “Joga pedra na Geni/ joga Bosta na Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ maldita Geni”. Só um imbecil pode imaginar que esta seja uma música machista, e não uma crítica à crueldade do machismo (dos homens e das mulheres também, pois a cidade inteira persegue a Geni).

Por fim, um comentário sobre “largo mulher e filhos”… Sim, é triste ser mulher largada por um homem que vai atrás de outra. Mais triste ainda se ele nem se responsabiliza por compartilhar o cuidado e a responsabilidade com os filhos. Porém, não sei se o compositor não estaria levando ao ponto de saturação a rendição do apaixonado que se arrasta aos pés da amada (ops… machistas fazem isso?). Se não for isso, devo admitir que também não gosto da expressão, já que não aprovo a prática de “largar” qualquer responsabilidade, afetiva ou não, para trás.

Mulheres em geral são mais responsáveis com os filhos, mas todo psicanalista conhece uma ou duas histórias nas quais uma mulher que se apaixonou por outro “largou homem e filhos” pra ir atrás dele.

Chico e Marieta, um casal apaixonado e livre (ao que se sabe, nenhum dos dois se privou de ter outros casos durante o casamento) se separaram amigavelmente há alguns anos. Ela casou-se com Aderbal Freire Filho, um grande (e muito bonito) diretor teatral. E continua amiga do ex-marido, que teve (ou ainda tem, não sei) uma bela história de amor com uma jovem alardeada em canções do penúltimo cd. Ele não “largou mulher e filhos” (filhas). Casais se separam, novos amores acontecem. Para homens e mulheres. Os filhos continuam a ser responsabilidade de ambos. Isso nunca aconteceu com vocês?

Foto: Damião A. Francisco/CPFL Cultura

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

treze − sete =