Violência, morte e direitos humanos: o genocídio da população negra como normalidade democrática

“Falta a certos discursos uma compreensão histórica do papel que a raça desempenha na construção da modernidade ocidental capitalista, de sua promíscua indissociabilidade”

Por Marcos de Jesus, no Buala

Embora exista um sem-número de importantes contribuições de pesquisadores/as para a compreensão do conflito e da violência na sociedade brasileira em suas mais diferentes manifestações e em suas múltiplas relações com fenômenos diversos, uma parte considerável dessa produção, sobretudo, as que ocupam o chamado mainstream acadêmico não leva “raça a sério”. Quer dizer, raça geralmente não ganha estatuto de categoria explicativa, aparecendo amiúde como uma variável que revela a distribuição desigual da violência e, portanto, como algo aditivo, e não constitutivo das relações sociais. Dessa perspectiva, W. E. B. Du Bois (1868-1963) e outros teóricos cuja aporte se destaca pela centralidade da raça na explicação das relações sociais teria muito mais ensinar sobre a realidade brasileira do que alguns daqueles que diretamente se debruçaram sobre ela.

Falta a certos discursos uma compreensão histórica do papel que a raça desempenha na construção da modernidade ocidental capitalista, de sua promíscua indissociabilidade. W. E. B. Du Bois foi talvez um dos primeiros pensadores afroamericanos a revelar, com bastante argúcia, as cumplicidades entre modernidade e terror. Na leitura dele, a modernidade ocidental se alimentou, de inúmeras formas, da exploração do negro africano a tal ponto que as conquistas ditas civilizadas não teriam sido possíveis sem essa relação de dominação. Sua perspicácia está em expor as antinomias de um poder cuja racionalidade se faz pelo convívio permanente com a barbárie do extermínio daqueles que são tomados como o “outro” da civilização europeia cristã. Como é bem sabido, alguns dos mais ardorosos defensores da liberdade nos E.U.A. foram indiferentes à escravidão e, em alguns casos, eram eles mesmos donos de inúmeros escravos.

Não basta apenas apontar o caráter genocida das forças policiais no Brasil, sobretudo, em relação à população negra e pobre da periferia dos grandes centros urbanos, como se sói fazer com certa frequência. Insuficiente também é a repetição do truísmo de que a polícia brasileira é a que mais mata civis no mundo, sendo os números comparáveis a regiões em conflitos bélicos armados. Algo assim, embora fundamental, contribui apenas parcialmente para elucidar a questão de fundo cuja compreensão parece ter sido muito bem captada por Du Bois, mas não apenas por ele, já que hoje outros pensadores como o camaronês Achille Mbembe cujo pensamento tem aberto possibilidades de leituras semelhantes a de Du Bois, sobretudo, com o conceito de necropolítica. É preciso reconhecer que esse genocídio não é fortuito ou aleatório, mas uma potência inscrita na configuração da positividade da modernidade capitalista cuja materialidade se encarna no Estado como um poder de fogo que é acionado de diferentes formas em diferentes tempos com diferentes finalidades e contra diferentes grupos sociais.

A compreensão acima traz inúmeras implicações ao debate sobre direitos humanos da população negra, afrodescendente e indígena, mas não apenas destes. Talvez a mais urgente é pensar se a noção de direitos humanos como uma das principais referências para a justiça e para defesa da dignidade humana conseguiria fazer cessar a máquina mortífera da violência estatal. No interior de debates acadêmicos progressistas, é crescente a desconfiança em relação ao discurso dos direitos humanos, já que, apesar de ser uma das principais linguagens da luta por justiça e por transformação social desde o pós-guerra, é ínfimo o número de sujeitos cujos direitos humanos estão resguardados. Alimentado por certa desconfiança, Michel Foucault, em certo momento de sua trajetória, elaborou, ainda que muito brevemente, a noção de direito dos governados como a potência para pensar uma relação outra, um direito em que a soberania (leia-se também direito de matar) não seja seu eixo principal. No lugar da soberania, pois os direitos humanos surgem atrelados ao Estado-nação, Foucault coloca a resistência como forma de liberação dos modos de captura operados pelo Estado. Tal leitura decorre da visão foucaultiana segundo a qual raça é um dos mecanismos pelos quais certos indivíduos podem ser expostos à morte pelo poder soberano ou pelas disciplinas.

O direito dos governados surge da luta real e concreta, dos embates das forças de captura promovidas pelo Estado, de sua violência e de seu poder de matar. E é este poder estatal de matar que torna possível que a sociedade brasileira tenha passado por um processo de redemocratização e ainda assim conviva com o alto índice de violência contra a população negra e indígena, já que a soberania como direito de matar subjaz a todas elas (democracia e ditadura). Não é o caso, obviamente, de igualar ditadura e democracia como se fossem intercambiáveis, mas de evidenciar como a normalidade democrática também convive com a barbárie. O caso brasileiro é bastante emblemático disso, mas também o é o estadunidense. O encarceramento como o quarto estágio da política de controle da população negra nos Estados Unidos, conforme já apontou Loïc Wacquant, sendo historicamente  posterior à escravidão, à segregação racial e à guetização, é, de um ponto de vista nominalista, parte da normalidade democrática daquela que é a dita maior democracia do mundo.

Não se deve supor a neutralidade do Estado e de suas instituições sociais, como se este fosse um mero pacificador das relações e conflitos sociais, como aquele que detém o “monopólio da violência física legítima”, já que esta definição não permite entrever que o Estado também pode violar pela não ação, pela exposição de determinados sujeitos a certos riscos. E, como mostra a história, ele viola, não por desvio, mas por sua própria positividade.

Em sua formação moderno-capitalista, o Estado é agente perpetrador da violência física e produtor de mortes, tendo a raça como o corte pelo qual certas vidas se tornam matáveis e outras dignas de viver. Esse poder de matar é um fato real e concreto na racionalidade moderna e não se livra dela com afirmações abstratas da dignidade humana de todos os seres humanos. É preciso que lutas também reais e concretas sejam travadas na reorganização das relações de força que tendem a desumanizar certos sujeitos ou grupos populacionais como historicamente aconteceu com negros e afrodescendentes. Um passo importante nesse sentido é, portanto, situar o assassinato da população negra não como mero evento estatístico de alta frequência, mas como resultado de uma racionalidade cujo desmonte não envolve apenas reformas do Estado, mas do que há de mais essencial nele: seu poder soberano indefinido de matar.

Marcos de Jesus – Professor-Adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília com estágio no Center for Interdisciplinatory Gender Studies do Departamento de Sociologia e Política Social da Universidade de Leeds (Reino Unido). Especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça pela Universidade de Brasília e Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui Licenciatura em Letras e mestrado em Literatura e Práticas Sociais, ambos pela Universidade de Brasília. Também é licenciado em Sociologia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Realizou pós-doutorado no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. É editor-responsável pela revista “Epistemologias do Sul: pensamento social e político em/para/desde América Latina, Caribe, África e Ásia” e coordena grupo de pesquisa homônimo.

 

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