LGBTs e direito à cidade: sobre corporalidades e afetos transgressores

por Marcos de Jesus Oliveira*, para Combate Racismo Ambiental

O “direito à cidade” como um direito de não exclusão dos espaços urbanos e como garantia de participação das decisões que afetam a organização da cidade e o cotidiano de quem nela vive é um conceito, mas também um slogan político cada vez mais enunciado nas últimas décadas. Algumas dessas enunciações, sobretudo, as advindas de movimentos e protestos sociais, carregam o desejo de afirmar um espaço urbano livre da privatização neoliberal operada pelo mercado financeiro cujas consequências mais imediatas são a remoção forçada de indivíduos, a restrição da mobilidade das populações periféricas e a negação da habitação digna como um direito de todos. O conceito também tem sido utilizado por inúmeras organizações sociais como estratégia de luta contra a escalada de violência urbana, em especial aquelas perpetradas pelos agentes estatais cuja função seria a de proteger os cidadãos, em defesa da desmilitarização do cotidiano urbano.

Todos essas discussões são importantíssimas e fundamentais; no entanto, o que se pretende aqui é enfatizar o direito à cidade desde uma perspectiva da mobilidade dos corpos e dos afetos, da vivência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs) cujas vidas são amiúde marcadas por variadas formas de violência verbal e física. O direito à cidade precisa incorporar o ponto de vista daqueles que se veem obrigados a limitar a expressão de seus gestos e afetos por conta da ameaça de violência física e/ou simbólica colocada em marcha por sociedades marcadas pela regime da heterossexualidade compulsória como a brasileira. O intuito do texto é, portanto, o de aproximar agendas, debates e reivindicações.

É sabido que o Brasil responde por quase cinquenta por cento dos assassinatos de LGBTs no mundo. Os crimes de ódio contra LGBTs englobam uma variedade de violências verbais e/ou físicas em decorrência da orientação sexual, identidade ou expressões de gênero, culminando em homicídios ou tentativas de homicídio em muitos casos. Essa violência ocorre tanto em espaços ditos privados como, por exemplo, o espaço doméstico, mas também em espaços públicos pelos quais as coletividades transitam. Aliás, um dos locais em que amiúde os crimes de ódio contra LGBTs acontecem são as ruas de grandes centros metropolitanos. Em alguns casos, há inclusive o estiramento dos corpos com mensagens de ameaças e de ódio direcionadas à população em geral. A ausência de políticas públicas com vistas à proteção de LGBTs e, como consequência, a falta de reconhecimento de suas demandas e reivindicações, contribuem para o acúmulo de violência e de ódio, uma espécie de credencial que dissemina medo e terror cujo sentido social é uma constante na vida das corporalidades que desobedecem às normas sexuais e de gênero socialmente estabelecidas.

A cidade que rejeita a manifestação pública dos gestos e dos afetos de LGBTs e acolhe os dos sujeitos heterossexuais revela que o espaço urbano é atravessado por uma ordem de sanções que assume um papel disciplinador das corporalidades que transgridem a norma heterossexual. O exemplo mais evidente disso é o caso de um pai e um filho que, por estarem abraçados e, portanto, identificados como gays pela estereotipia do preconceito, foram agredidos verbal e fisicamente. A situação é reveladora de como as coreografias corporais e afetivas que não se adequam à norma heterossexual estão sujeitas a uma violência instrumental, aquela com se pretendem operar correções a comportamentos ditos desviantes. Essa violência instrumental também se faz presente pelos olhares de reprovação ou pela atitude hostil nem sempre verbalizada, mas eficientes na inibição de determinadas condutas no espaço urbano.

A limitação da mobilidade dos gestos e dos afetos de LGBTs também se expressa pela guetização forçada, que restringe o acesso a certos espaços porque outros lhes são violentamente negados. A higienização e a limpeza da cidade vai ganhando contornos de um território heterossexual em que a experiência LGBT só pode ser vivida em lugares bastante restritos e previamente autorizados ou na clandestinidade. A violência policial quando motivada pela orientação sexual ou pela identidade de gênero da pessoa também integra a dinâmica de normalização e de exclusão de LGBTs da vida urbana. Algo assim permite perceber que o espaço urbano não é um território sexualmente neutro, mas portador de uma determinada politicidade e de valores e normas próprios, o da heterossexualidade, e é desde esta politicidade e pelo questionamento dessas normas e valores que possibilidades de ressignificação se abrem.

Os corpos fazem parte do espectro da luta política, já que, inseridos, enquadrados e produzidos por um determinado regime de signos, carregam, de modo paradoxal, potenciais de subversão dessa economia sígnica. O direito à mobilidade dos gestos e dos afetos de LGBTs como integrante dos debates sobre o direito à cidade é possível, porque o corpo assume amiúde um papel político importante na luta contra a precariedade que, segundo Judith Butler, é uma “condição imposta politicamente mediante a qual certos grupos da população sofrem com a ruptura das redes sociais e econômicas de apoio muito mais do que outros e, como consequência, estão mais expostos a danos, à violência e à morte”. Perceber essa precariedade é um aspecto importante na luta pela defesa da dignidade humana de LGBTs e de sua proteção no espaço urbano.

Contra a precariedade, Judith Butler fala de um “direito à aparição” como um direito de que as pessoas possam expressar seus modos de ser e de existir sem ameaças a sua integridade física e/ou simbólica. Se a coreografia corporal transgressora pode, em sociedades marcadas pelo regime da heterossexualidade compulsória, suscitar uma violência normalizadora, ela também pode ensejar uma ressignificação do espaço público e de seus limites quando pensada e articulada, sobretudo, de modo coletivo. Talvez um dos exemplo mais interessantes da tentativa coletiva de ressignificar o espaço público e reivindicar o direito à aparição esteja nas Paradas de Orgulho LGBTs, que acontecem amiúde em grandes centros urbanos e nas quais o corpo e o afeto assumem proporções inegavelmente importantes. O uso e a ocupação da cidade para tais manifestações políticas inserem no debate sobre a democratização do espaço urbano algumas das contribuições desde a perspectiva de LGBTs.

Os LGBTs não são, obviamente, os únicos a sofrer por conta da expressão de suas maneiras de ser, seus estilos de vida; outros grupos sociais se veem igualmente vítimas da precariedade. No entanto, a especificidade da violência urbana que recai sobre esses sujeitos nos faz crer sobre a importância da transversalização das discussões sobre o direito à cidade pelas categorias de gênero/sexualidade, além das perspectivas de classe e da racial igualmente importantes. Uma vida livre do medo e da ameaça da violência deve fazer parte dos debates sobre o direito à cidade a fim de garantir acesso livre a todos, à manifestação e à mobilidade dos afetos. Lutar contra a precariedade que recai sobre aqueles/as cujos desejos são considerados indignos e/ou abjetos é afirmar uma vida livre de preconceitos e de discriminação e isso, sem dúvida, deve integrar qualquer discussão de cunho democrático sobre o uso e a ocupação do espaço urbano.

*Marcos de Jesus Oliveira é docente na Universidade Federal da integração Latino-Americana.

Foto: Bruno Domingos, Reuters

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