No blog do Sakamoto
Se houver alguma entidade suprema e sobrenatural – e eu, particularmente não acredito que exista uma – ele ou ela deve morrer de vergonha da sua criação humana quando observa atos como a censura definida pelo juiz Luiz Antônio Campos Júnior, da 1a Vara Cível de Jundiaí.
Sob a justificativa de que a peça de teatro ”O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, que coloca no papel do messias na pele de uma mulher transexual, era ”atentatório à dignidade da fé cristã”, ele atendeu a um pedido e proibiu o Sesc Jundiaí de exibir o espetáculo nesta sexta (15). A instituição está recorrendo da decisão.
Em sua liminar, o juiz afirma: ”De fato, não se olvide da crença religiosa em nosso Estado, que tem JESUS CRISTO como o filho de DEUS, e em se permitindo uma peça em que este HOMEM SAGRADO seja encenado como um travesti, a toda evidência, caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas”. Os destaques em maiúsculas são do próprio magistrado.
Na página do espetáculo, no Facebook, Natalia Mallo, tradutora do texto original da dramaturga escocesa Jo Clifford e diretora da peça, afirmou sobre a decisão judicial:
”O espetáculo, escrito por Jo Clifford, busca resgatar a essência do que seria a mensagem de Jesus: afirmação da vida, tolerância, perdão, amor ao próximo. Para tanto, Jesus encarna em uma travesti, na identidade mais estigmatizada e marginalizada da nossa sociedade. A mensagem é de amor. Mas é também queer e provocadora. Não é comportada nem se deixa assimilar. É de carne e fala de um corpo político, alterado, constantemente violentado e oprimido. Mas também cheio de vida, alegria e potência. A Rainha Jesus contesta a tutela sobre os corpos, o patriarcado e o capitalismo. E abençoa a todos e todas por igual.”
Isso enquanto a polêmica sobre o cancelamento da exposição Queermuseum, em Porto Alegre, ainda estava quente. O patrocinador, o Santander Cultural, retirou a mostra após pressão de grupos de extrema direita, que ensandecidos, afirmaram que elas eram pedófilas e blasfêmicas – o que foi negado até pelo promotor da Infância e da Juventude de Porto Alegre. E, ao invés de chamar a um diálogo público contra aquilo com o qual não concordavam, forçaram o seu fechamento.
Estamos em um péssimo período para se conseguir a efetivação de direitos das minorias. Os ultraconservadores saíram do armário e resolveram adotar a censura, a ameaça e a agressão como instrumentos de batalha e o Congresso Nacional, arena de debate político e solução de conflitos, segue sendo uma lástima. A ignorância de parte das pessoas sobre o que não conhecem destila medo que gera ódio e domina o debate público, nivelando a vida por baixo.
A minha timeline está abarrotada de histórias suspeitas e comprovadas de terem relação com homofobia e transfobia, machismo, racismo. Ao mesmo tempo, grupos religiosos fundamentalistas reafirmam posicionamentos de ode ao preconceito e tentam mudar leis para garantir que nada mude. Por exemplo, restringir o conceito de família a um homem, uma mulher e filhos. Patético.
Escrevi aqui, há dois anos, que se nascesse novamente nos dias atuais, Jesus seria mulher, negra e transexual. Quase apanhei na rua por conta disso por pessoas que, não familiarizadas com a troca de ideias e o diálogo, acham que proferir qualquer coisa que vá contra sua fé significa um ataque à sua dignidade. Acusam a opinião de terceiros de ser discursos de ódio – o ódio que, na verdade, são elas que promovem ao tentar calar uma voz. Voz que não pedia a aniquilação do outro mas, pelo contrário, o direito de ter os mesmos direitos que ele. Trago, novamente, alguns pontos que eu destaquei aqui antes.
Que crença é essa que diz que A é pior que B, gerando ódio sobre o primeiro, só porque A acredita que nasceu com um corpo que não é o seu? Ou que ama alguém do mesmo sexo? Que fé mesquinha e pequena é essa?
Enquanto isso, parlamentares no Congresso Nacional e nas Assembleias estaduais bradam, indignados, por conta de manifestações artísticas, exigindo seu fechamento. Muitos sobem às tribunas para reclamar de que grupos ”contrários às leis de Deus” estão conquistando direitos. A verdade é que deveriam ser responsabilizados em atos de homofobia e transfobia não apenas os diretamente envolvidos, mas também suas fontes de inspiração. Como esses nobres políticos.
Se houver um Deus, ele ou ela não morrerá de vergonha por causa daqueles que tocam a vida da forma que os faz mais felizes. Mas por conta dos que lançam preces e cantam musiquinhas para louvar seu nome – para, logo depois, ofender, cuspir, bater, esfolar e matar também em sua honra.
Nessa hora, esse Deus ou essa Deusa (caberia um gênero neutro aqui, mas a nossa língua não permite – ainda), deve experimentar um sentimento louco de culpa somado à vergonha alheia. Pois pensa: ”Que entidade sou eu que meus seguidores acham que preciso que sacrifícios humanos ou a imposição do silêncio sejam feitos em meu nome?”
O mais irônico é que, considerando que Jesus foi transgressor em sua época, se ele voltasse à terra seria tudo aquilo que é considerado inferior, marginal, blasfêmico ou de segunda classe.
Se ele voltasse defendendo a mesma ideia central presente nas escrituras sagradas do cristianismo (e que, por ser tão simples, não é seguida por muitos cristãos) e andando ao lado dos mesmos párias com os quais andou, seria humilhado, xingado, surrado, queimado, alfinetado e explodido.
Seria chamada de mendiga e de sem-teto vagabunda, olhada como operária subversiva, alcunhada como agressora da família e dos bons costumes, violentada e estuprada, rechaçada na propaganda eleitoral obrigatória em rádio e TV, difamada nas redes sociais, censurada pela Justiça. Levaria porrada daqueles que se sentem os ungidos pelo divino, finalizada como comunista, linchada num poste pela população em nome da fé e das tradições. E, ao final, alguém ainda tiraria uma selfie ao lado de seu corpo morto para postar no Insta.
Encaremos a realidade: se o divino viesse à Terra, nós a mataríamos em seu próprio nome. Pelo menos, 50 vezes.
Se Jesus assim nascesse, levaria porrada dos hoje autointiulados sacerdotes do Templo. Supostos representantes dos interesses de Deus na Terra que afirmam lutar pelo direito de expressarem suas crenças, quando querem o privilégio de vomitarem seu ódio.
O discurso de ódio transforma a massa em turba e provoca distorções de entendimento sobre as palavras que estão na origem da fé das pessoas. Estudei em escola adventista por nove anos e, ao mesmo tempo, participei ativamente da vida na igreja católica perto de casa. Hoje, como todos sabem, vou para o inferno. Mas por conta do meu passado, sei razoavelmente bem o que está escrito nos evangelhos.
O discurso de intolerância que grassa na boca de muita gente não está nos quatro livros do Evangelho cristão. Perfis nas redes sociais que consideram um absurdo um messias mulher e trans enchem a boca para falar que a solução para a criminalidade é ”bandido bom é bandido morto” e, diante do atendimento a uma pessoa em situação de rua, grita ”tá com dó? leva para casa”. E aceita com naturalidade programas sensacionalistas de onde jorra sangue.
Não dá para dizer para um desconhecido ”você não entendeu nada do que o Nazareno disse”. Seria muito arrogante e ofensivo. Mas é possível mostrar outras interpretações das palavras de tolerância e compreensão que estão no Novo Testamento. E, do outro lado, aceitar que as interpretações possíveis sobre o divino não são monopólio de ninguém. Durante muito tempo, levamos pessoas à fogueira por divergências assim. Infelizmente, parece que não aprendemos nada com isso.
Liberdade de expressão, de fato, não é algo absoluto, como nenhum direito é. Mas seu abuso deve ser questionado ou punido a posteriori, nunca a priori, e apenas quando ela é distorcida para fomentar a violência contra alguém ou algum grupo. Quem está fomentando a violência contra terceiros? Os arautos da pseudomoralidade que dizem que apenas alguns são filhos de Deus ou a peça de teatro que pede o fim dessa barreira?
O fato é que se tivessem interpretado por uma forma mais humana o que significa amar o seu semelhante como a si mesmo, dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, e todo o restante, entenderíamos que tudo isso não faz sentido algum. O que significa amar alguém de verdade? E o que significa submeter alguém à minha vontade?
Por isso continuo achando a passagem mais legal dos Evangelhos o evangelho de Lucas, capítulo 23, versículo 34: ”Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem”.
–
Cena do monólogo ”O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, com a atriz trans Renata Carvalho. Foto: Ligia Jardim /Divulgação