Raquel Dodge precisa continuar com o combate à corrupção, por Janio de Freitas

Na Folha

Muitos esperam, com Michel Temer, que este último dia de Rodrigo Janot como procurador-geral da República marque o fim de um ciclo. É o que a futura procuradora-geral Raquel Dodge, a ser empossada amanhã, precisa impedir. Já que estamos enlameados de vergonha pelos borrifos do lodaçal de corrupção, não há por que parar, nem mesmo recuar. O melhor é ir em frente. Ir logo até o fim, seja qual for. Para isso, o que se espera de Raquel Dodge é a compreensão de que só será possível com o reenquadramento das instituições na sua natureza e nos seus limites. E nisso a sua contribuição é o reajuste de valores, concepções e métodos deformados na busca descontrolada de punições como moralização.

Rodrigo Janot representou um avanço em comparação a seus dois últimos antecessores. Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel satisfizeram-se mais com adjetivos que com apurações substantivas do que constituiu, de fato, o mal denominado mensalão: erros, para menos e para mais, perduram ainda. Janot mostrou, no entanto, uma tolerância com deslizes da Lava Jato que a prejudicaram muito.

Seria possível que, em vez de complacente, fosse ele o indutor de condutas exacerbadas. Mas deu sinais contrários. Quando a onda de “vazamentos” ilegais, muitos inverdadeiros, provocou críticas até no Supremo, Janot emitiu nota e declarações que, apesar de sinuosas, não endossavam o que eram práticas só explicáveis por motivações políticas. Se não endossava, não seria o indutor, mas o chefe solidário ou conformado.

O caráter político da Lava Jato até hoje ocupa adeptos seus com pretensas negativas: artigos e declarações sem fim. Nestes últimos dias, Janot deixou-lhes uma armadilha. Está no seu pedido de arquivamento da investigação de José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá, cuja prisão chegara a pedir. Agora, usou o argumento de que não consumaram a idealizada obstrução de justiça, inexistindo o delito. Pois bem, a nomeação de Lula para ministro de Dilma, ouvida em grampo ilegal feito por Sergio Moro e por ele divulgado, também não se consumou, inexistindo o delito.

No caso da nomeação, porém, a Lava Jato quis o processo contra Lula, pela alegada intenção, e Sergio Moro quis julgá-lo. E nem se trataria, com a nomeação, da obstrução de justiça de que fala a Lava Jato: a nomeação apenas transferiria o assunto Lula do cadafalso de Curitiba para o do Supremo. Não há, entre os dois casos, tratamento diferenciado? Há outra causa que não a política, para os tratamentos diferentes?

O denuncismo e a voracidade punitiva, incompatíveis com justiça, Ministério Público, Judiciário, moralização e lealdade constitucional, gozaram sob Janot, na Lava Jato, de liberdade injustificável. O show de Deltan Dallagnol, com aqueles círculos e setas contra Lula tratado como se condenado, foi uma aberração autoritária que manchou para sempre o Ministério Público. Um abuso de poder, inconsequente em dois sentidos: não tinha razão de ser nas obrigações da Lava Jato, por isso não produziu qualquer efeito nas apurações devidas, e nenhuma providência mereceu de Janot, ao menos em respeito aos estarrecidos com a depreciação do Ministério Público.

Janot deixa a Procuradoria enrolada com Joesley Batista. O problema começou no “prêmio” de imunidade judicial dado ao delator. Agravou-se no exagero de Janot ao descrever o teor da conversa gravada de Batista com seu parceiro de subornos. Daí decorreu a oportunidade de Janot satisfazer às críticas pelo “prêmio”. E, como complemento provisório, uma vindita que inclui o Supremo.

O descritério dos “prêmios” aos delatores, concedidos pelos procuradores e por Janot, merecia mais escândalos do que apenas a imunidade agora cassada de Joesley Batista. A Paulo Roberto Costa, por exemplo, foi concedida a permanência dos bens postos em nome de familiares seus. O reincidente Alberto Youssef, que voltou ao crime porque “premiado” com a liberdade em sua primeira delação (caso Banestado), pôde também transferir bens, como vários outros. Usado o “prêmio” de Youssef para explicação, diz a Procuradoria-Geral que ele “reconheceu quais eram os bens que são produto ou proveitos de atividade criminosa”. O dinheiro de delatores tem diferenças quando provém de crimes.

Como “tantos são os fatos e tão escancaradamente comprovados” de corrupção, nas palavras recentes de Rodrigo Janot, é preciso continuá-lo. Corrigido.

Imagem: ALAI

 

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