Brasil, a Capital Mundial de assassinatos LGBT, e o lugar do Rio nos dados

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O mundo ficou chocado no início deste ano quando um vídeo se espalhou rapidamente sobre Dandara dos Santos, uma mulher transexual do estado do Ceará no Nordeste, sendo torturada e finalmente morta em Fortaleza, a capital do estado. Muitas fontes internacionais de notícias publicaram a história, chocados com o enorme desprezo à vida demonstrado neste vídeo horrível. Para muitos brasileiros, no entanto, o vídeo não causou surpresa. Durante muitos anos, o Brasil tem mantido o recorde mundial de assassinatos de LGBT baseados no ódio com 343 registrados em 2016 resultando na estatística de uma pessoa LGBT sendo morta em cerca de cada 25 horas.

Por outro lado, o Brasil também é uma referência e modelo para o mundo na sua luta pelos direitos dos LGBT. A Parada do Orgulho anual em São Paulo cresce a cada ano mantendo o seu primeiro lugar no ranking com base no número de participantes; neste ano os organizadores gabaram-se de ter ultrapassado o marco de 3 milhões. A comemoração do Carnaval anual no Rio é frequentemente e abertamente queer e atrai turistas LGBT de todo o mundo. Além disso, o governo brasileiro foi um dos primeiros países a trabalhar com organizações dos direitos LGBT para oferecer cuidados médicos grátis para as pessoas com HIV/AIDS, obtendo reconhecimento internacional e reduzindo o número de pessoas com HIV/AIDS para abaixo do nível dos Estados Unidos. Também é líder na fabricação de drogas antirretrovirais baratas, resultando também em um nível mais alto de pessoas que tomam estes medicamentos em comparação aos Estados Unidos.

No nível federal, em 2004, as uniões do mesmo sexo foram legalizadas o que finalmente levou à igualdade completa de casamentos em 2013. Em 2010 e 2011 a Suprema Corte expandiu os direitos dos casais do mesmo sexo incluindo adoção e direitos legais ampliados. O país também tem sido muito ativo na luta por direitos iguais nas entidades internacionais como a ONU. No Rio de Janeiro, o governo municipal e estadual cooperou para criar a “Rio Sem Homofobia“, uma campanha pública para combater a homofobia na cidade. Foi extremamente popular, porém foi quase completamente destituída pela autoridade da prefeitura encarregada do programa, entre outros, no governo anterior.

Infelizmente, a comunidade LGBT ultimamente tem sido novamente atacada, o que está levando a um crescente estado de medo, e isto está sendo exacerbado pelos políticos que entraram no poder recentemente ao nível nacional e local. O novo presidente, Temer colapsou a posição da Secretaria de Direitos Humanos–que anteriormente estava encarregada das iniciativas dos direitos LGBT a nível nacional–colocando-a sob uma secretaria nacional já existente. O novo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, passou o início do ano tentando cortar as verbas da anual Marcha do Orgulho (tentativas que finalmente falharam), além de nomear um membro de um partido conservador religioso para chefiar a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual. Enquanto o secretário é declaradamente gay, ele faz parte de um dos partidos mais conservadores e anti-LGBT do país. A cidade, o estado e o país encontram-se também em uma crise financeira, o que coloca as pessoas LGBT que já são as mais vulneráveis na sociedade, sob um risco ainda maior. Também é importante notar que, apesar de não ter havido muitos ataques concentrados aos indivíduos LGBT na cena governamental, os partidos políticos conservadores no poder–e no caso do Rio declaradamente cristãos–facilmente apoiam e promovem ideologias homofóbicas e sexistas em todo o país.

Todas estas mudanças políticas também compartilham o palco central com uma crise crescente de racismo, sexismo e violência homofóbica que está acontecendo no país. Em julho do ano passado, o corpo de Diego Vieira Machado foi encontrado no campus da UFRJ.  Ele era um estudante do Pará, negro, declaradamente gay, que estudava línguas, e sua morte chocou a cidade. Se os indivíduos LGBT e os negros não estavam seguros no campus de uma universidade federal, onde estariam? Na área metropolitana do Rio de Janeiro, inclusive nas suas principais cidades periféricas, aconteceram 64 assassinatos LGBT baseados no ódio entre 2012 e 2016. A cidade teve o terceiro maior número de assassinatos naquele período de cinco anos (depois de São Paulo e Manaus) e o estado do Rio foi o terceiro em 2016 atrás de São Paulo e Bahia respectivamente.

Ao comparar o Rio a outras áreas metropolitanas, alguns dados interessantes são revelados. Apesar de ter havido um terço dos assassinatos LGBT no Rio, o seu número de mortes por milhão está em sétimo lugar entre as outras principais áreas metropolitanas do país. Cidades como Salvador e Recife apresentam quase o triplo, e Manaus tem uma taxa de assassinatos seis vezes maior do que o Rio. É importante notar que cidades como Manaus, Salvador, Recife e muitas outras capitais estaduais no Norte e Nordeste têm altas taxas de assassinatos de um modo geral. Algo está claro, no entanto, para os indivíduos LGBT: o Rio é relativamente seguro em comparação a outras cidades grandes no Brasil. Algumas cidades pequenas selecionadas no Brasil também têm taxas de assassinatos muito mais altas.

Vamos repartir isto ainda mais. O Rio de Janeiro é uma área metropolitana com várias regiões e periferias. Considerando o Rio de Janeiro em si, os assassinatos caem para 31 no período de cinco anos: 12 na Zona Oeste, 6 na Zona Norte, 6 na Zona Sul, e 7 não informados. Isto significa que mais da metade dos assassinatos LGBT na área metropolitana do Rio aconteceram fora da cidade do Rio de Janeiro.

Ao investigar mais especificamente, a taxa de assassinatos do município do Rio de Janeiro está baixa enquanto as taxas de certas áreas periféricas estão bem altas. Nova Iguaçu, por exemplo, tem uma taxa de assassinatos LGBT mais alta do que as dez principais áreas metropolitanas do país, exceto Manaus. Os quadros a seguir dão uma representação ano a ano do número de assassinatos LGBT nas principais regiões metropolitanas do país e na área metropolitana do Rio respectivamente.

O Rio é semelhante ao resto do Brasil ao se olhar para as identidades dos indivíduos assassinados. A maioria (42) era homens gays bem como um homem bissexual. O resto (21) eram pessoas transexuais ou travestis, a maioria em transição de homem para mulher. O Rio de Janeiro não está sozinho. Durante um período de sete anos findo em 2015, o Brasil teve 802 assassinatos transexuais, mais do que triplicando o México em segundo lugar com 229. A comunidade transexual está crescendo em muitas partes do país, mas as histórias como a da Dandara dos Santos continuam a aparecer nas manchetes, criando uma dicotomia fatal.

É importante notar que a comunidade transexual no Brasil tem origens bastante diferentes daquelas de muitos outros países. Os travestis, que nunca completam a transição, mas frequentemente passam por procedimentos cirúrgicos e vivem como mulheres, já existiam muito antes da ideia de transexuais e drag queens chegar ao Brasil. Na verdade, os famosos drag queens do Carnaval eram originalmente e ainda são, em grande parte travestis. Depois que o governo incluiu a cirurgia de transição de gênero nos procedimentos cobertos, a transição tornou-se mais popular e acessível, mas é muito importante notar que o Brasil em geral é mais queer do que a maior parte dos Estados Unidos e da Europa, e muitas pessoas não se estabelecem nas categorias às quais os ocidentais estão acostumados.

Mesmo culturalmente progressista, o Brasil ainda precisa alcançar as reais liberdades de vida para os indivíduos transexuais. O Brasil é profundamente religioso, representando 11,7% da população mundial de católicos. Os evangélicos também estão em alta, especificamente as igrejas pentecostais ultraconservadoras: crescendo de 26 milhões de brasileiros em 2000 para 42 milhões em 2010. Tudo isto contribuiu para uma falta de compreensão em geral sobre a comunidade LGBT e em alguns casos aumentou os ataques fisicamente e legislativamente. Na verdade, muitas pessoas transexuais são expulsas da casa de suas famílias prematuramente, resultando em um grau de instrução e padrões de saúde inadequados para esta comunidade; quase 90% das pessoas transexuais dirigem-se para a prostituição para sobreviver. Enquanto a comunidade transexual é comemorada e elogiada, especialmente no carnaval, a comunidade é frequentemente e rapidamente esquecida e relegada às sombras da sociedade em muitas áreas em todo o país.

Notadamente ausentes das estatísticas dos assassinatos estão as lésbicas e os homens transexuais; durante 5 anos o Rio de Janeiro relatou zero casos de assassinatos de lésbicas. No entanto, esta estatística pode ser bastante incorreta e estar escondendo uma verdade mais profunda e enganadora. A cultura do machismo no Brasil, como na maior parte da América Latina, é extremamente forte: uma mulher é agredida a cada 15 segundos e assassinada a cada duas horas no país. As mulheres, especialmente as mulheres lésbicas, relataram um aumento nos “estupros corretivos” quando os homens estupram as mulheres para “corrigir” o seu comportamento. Isto pode ser feito às mulheres lésbicas para tentar “corrigir” o seu comportamento sexual. Esta questão explodiu no Rio no último mês de maio quando uma jovem de 16 anos sofreu violação coletiva enquanto outros gravavam. Apenas em 2015, no estado do Rio de Janeiro, foram relatados 5.676 estupros. Apesar desta estatística ser assombrosa, aproximadamente 90% dos estupros não são declaradas. Lésbicas, homens e mulheres transexuais, e mulheres queer são muito afetadas por esta estatística.

Ao escrever este artigo, 262 indivíduos LGBT foram assassinados no Brasil em 2017; 18 no estado do Rio de Janeiro, que está em quarto lugar após São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Foram 125 assassinatos de transexuais, 87 dos quais eram travestis. Foram dez assassinatos na região metropolitana do Rio: três em Nova Iguaçu, um em Belford Roxo e um em São Gonçalo. Embora não possa deduzir que as políticas públicas tenham impactado diretamente a taxa de violência contra os brasileiros LGBT, ainda é importante compreender o sentimento de como vivem o seu dia a dia. Programas como o Rio Sem Homofobia e mandatos do governo federal que protegem os direitos LGBT tiveram um impacto vital erguendo a comunidade LGBT para um patamar de poder mais alto.Estas iniciativas devem continuar e ser reforçadas se a nação deseja perder o seu título infame de Capital Mundial de Assassinatos LGBT. Com o estado atual da economia e política no Brasil, no entanto, isto parece pouco provável. Somente quando as vidas dos ativistas e cidadãos LGBT forem valorizadas, se lutarem por elas e as mesmas forem protegidas, as estatísticas e a pressão diminuirão.

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

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