Nota técnica conjunta defende regionalização de merenda escolar para indígenas no Amazonas

Documento conclui ser viável dispensa de registro, inspeção e fiscalização de produtos de origem animal e vegetal para consumo familiar, no âmbito das escolas indígenas

Procuradoria da República no Amazonas

A merenda escolar oferecida em escolas indígenas pode e deve ser adaptada aos costumes de cada povo, com possibilidade de fornecimento pelos próprios indígenas aos programas públicos de alimentação escolar, com dispensa de registro, inspeção e fiscalização. A conclusão foi oficializada pela Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas (Adaf), Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) no Amazonas e Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, em nota técnica expedida sobre a questão na última semana.

O documento se embasa em diversos fundamentos técnico-sanitários e jurídicos para chegar a essa conclusão e ressalta que a dispensa de registro para os produtos de origem animal e vegetal é exclusiva para a merenda escolar indígena destinada ao autoconsumo, no ambiente escolar, não podendo ser comercializada fora dos limites das áreas indígenas. Com efetiva implementação da medida, os alunos da educação indígena poderão consumir o pescado e os vegetais a que estão acostumados, na merenda escolar, inclusive sucos preparados a partir das frutas obtidas em suas aldeias.

Na prática, a falta ou insuficiência de merenda escolar na maior parte das comunidades indígenas já as obrigava a fornecer e preparar os alimentos consumidos nas escolas. Com a nota técnica, esse fornecimento poderá ser devidamente remunerado, mediante possibilidade de contratação do serviço pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de alimentação escolar (PNAE) e Programa de Regionalização da Merenda Escolar (PREME), ou outros programas.

Pela legislação vigente, os programas de alimentação escolar só podem adquirir produtos de origem animal (peixe, frango) e vegetal processados (polpa de frutas, farinha) por frigorífico ou agroindústria registrados nos órgãos de fiscalização e controle, no entanto, essas estruturas não estão disponíveis nas comunidades indígenas ou mesmo nos municípios do interior amazonense.

Após meses de discussões e reuniões envolvendo diversos outros órgãos como o Ministério do Desenvolvimento Social, Fundação Nacional do Índio, Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, entre outros, bem como entidades do movimento indígena, como Fórum de Educação Escolar indígena do Amazonas (Foreeia) e Federação das Organizações indígenas do Rio Negro (Foirn), chegou-se ao entendimento pela flexibilização da questão sanitária no contexto da merenda escolar indígena quando fornecida por eles mesmos, já que se trata de autoconsumo ou consumo familiar.

A necessidade de prestação de contas, com a devida apresentação dos documentos exigidos pela legislação, não sofre alterações. Os fornecedores de alimentação escolar ainda devem apresentar a Declaração de Aptidão ao Pronaf, nota fiscal e assinatura do gestor da escola ou programa social que recebe os alimentos.

Falta de merenda nas aldeias – Para chegar à conclusão da nota técnica, os órgãos participantes levaram em conta a frequente falta ou insuficiência de merenda escolar nas terras indígenas de todo o Amazonas. Somente no MPF, há diversos inquéritos e denúncias sobre a questão, com relatos de problemas em aldeias e terras indígenas de todas as calhas de rios. O documento relata ainda que, quando chega às comunidades, a merenda escolar não observa os costumes e tradições indígenas daquele povo. “Entre os casos mais emblemáticos: o relato nas reuniões de fornecimento de proteína animal (peixe pirarucu processado) a povos indígenas que não se alimentavam de referido peixe por questões culturais”, cita trecho da nota.

Entre os prejuízos culturais e à saúde citados pelos indígenas, decorrentes da não observância de sua cultura e tradições alimentares, a nota ressalta a interferência nos hábitos alimentares, ocasionando a recusa de crianças indígenas aos alimentos tradicionalmente produzidos, aumento exponencial de casos de diabetes e pressão alta, entre outras doenças, abandono gradativo das práticas de cultivo tradicionais e desinteresse dos mais jovens. Além dos danos culturais, o fornecimento de produtos industrializados em terras indígenas provoca aumento de lixo não orgânico nas aldeias, nas quais geralmente não há locais adequados para descarte desses materiais.

O documento ressalta, ainda, a obrigação legal para que os órgãos públicos comprem no mínimo 30% da merenda escolar de agricultura familiar, com prioridade de aquisição de povos indígenas, entre outros, que vem sendo desrespeitada pela maioria dos municípios amazonenses.

Encaminhamentos – Uma série de medidas a serem adotadas pelos órgãos competentes foram definidas nas reuniões que resultaram na nota técnica, entre elas a necessidade de elaboração de um manual de orientações contendo informações sobre operacionalização, qualidade dos produtos, priorização da compra de produtos de agricultura familiar indígena e prestação de contas.

A Funai e o FNDE se comprometeram ainda a realizar levantamento de experiências de regionalização de merenda escolar em outros Estados para apresentação em nova reunião técnica prevista para ocorrer em novembro, com a participação de todos os órgãos envolvidos e transmissão para todas as cidades do interior do Amazonas, inclusive para aldeias indígenas com acesso ao sistema de ensino tecnológico.

Com a expedição da nota técnica, que deve ser analisada pelos comitês gestores dos programas de compras, os órgãos esperam que os povos indígenas possam, ao mesmo tempo, ter garantido o acesso à merenda escolar culturalmente adequada, bem como ter um novo meio de geração de renda. Para o poder público a medida também é interessante, pois gera diminuição nos custos logísticos (de deslocamento) da merenda escolar para as aldeias, e possibilita cumprir a obrigação legal mínima dos 30% da merenda escolar oriunda da agricultura familiar.

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