Pescadores e agricultores rejeitam exploração de minerais pesados em São José do Norte

Marco Weissheimer – Sul21

Eduardo Galeano disse que o ouro brasileiro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra. A frase expressa uma contradição que, desde o período da colonização, acompanha os empreendimentos de mineração no país. O rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG) deu visibilidade aos riscos que cercam essa atividade onde os impactos sociais e ambientais costumam superar as promessas de riqueza e progresso para todos, que acabam não se cumprindo. A população de São José do Norte, um dos municípios mais antigos do Rio Grande do Sul, situado numa região entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, está vivendo esse dilema agora, diante do projeto da empresa Rio Grande Mineração S/A de explorar titânio e outros minerais pesados na região de restinga na qual a cidade está localizada.

O projeto “Retiro”, nome da primeira comunidade de São José do Norte que seria atingida pela mineração, pretende explorar cerca de 600 mil toneladas de minerais pesados em uma área de aproximadamente 30 quilômetros de extensão por 1,6 quilômetros de largura. Em fevereiro de 2016, a procuradora Anelise Becker, do Ministério Público Federal, emitiu uma recomendação ao  Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) apontando “graves deficiências” no EIA-RIMA do empreendimento, solicitando que a empresa corrigisse as deficiências e lacunas desse estudo e pedindo a realização de uma nova audiência pública. As recomendações não tiveram resposta por parte do Ibama. No dia 14 de junho deste ano, a presidente do Ibama, Suely Araújo, emitiu uma licença prévia, válida por quatro anos, para a Rio Grande Mineração iniciar o empreendimento.

Ibama alegou “falta de estrutura” para ir à audiência

Diante desse cenário, o vereador Luiz Bravo Gautério (PT), presidente da Comissão Permanente de Educação, Saúde, Ação Social, Serviços, Obras Públicas e Meio Ambiente, da Câmara de Vereadores de São José do Norte, organizou uma audiência pública, dia 22 de setembro, para debater com a comunidade os possíveis impactos ambientais do projeto de mineração. O salão da Igreja Matriz ficou lotado para o debate que reuniu agricultores, pescadores artesanais, professores universitários, estudantes, autoridades municipais e estaduais. Um dos principais objetivos do encontro foi dar voz aqueles que serão atingidos por esse empreendimento, caso ele se concretize. Uma ausência foi muito eloquente. Convidado para o encontro, o Ibama, responsável pelo licenciamento do projeto, não enviou nenhum representante, alegando falta de estrutura para mandar alguém. A audiência pública também abriu espaço para representantes de empresas de mineração se manifestarem, mas nenhuma delas se apresentou para falar.

Na abertura do encontro, Luiz Gautério criticou a atual política estadual e nacional de mineração que, segundo ele, vem atropelando a legislação ambiental, os direitos de comunidades tradicionais e entregando patrimônio e riquezas nacionais. O presidente da comissão advertiu para os riscos do projeto Retiro e de outros projetos de mineração na região: “Nosso território de restinga tem fragilidades específicas que merecem cuidado especial e já tem algumas áreas degradadas pela silvicultura. A pesca artesanal e a agricultura familiar são culturas históricas e tradicionais aqui da região que devem ter seus direitos preservados. O problema não se resume a São José do Norte. Temos também a tentativa de mineração de chumbo no alto Camaquã, rio que também tem contato com a Lagoa dos Patos. Os riscos de uma eventual emissão de chumbo nas nossas águas são altíssimos”.

Relator da comissão, o vereador Neromar Guimarães disse que há muitas dúvidas sobre o projeto que ainda não foram respondidas nem pela empresa nem pelo Ibama. “Faltam muitas informações. Sabemos que as áreas exploradas por mineração sofrem muitas modificações que, na maioria dos casos, são irreversíveis, como a abertura a crateras, a contaminação do solo e da água. Esses empreendimentos vêm acompanhados de promessas de empregos e melhoria de vida, mas, com o passar do tempo, aparecem doenças e contaminações como conseqüência”.

Pesquisadores apontam problemas no licenciamento

Doutor em educação ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e pesquisador do Observatório dos Conflitos Urbanos e Socioambientais do Extremo Sul do Brasil, Caio Floriano dos Santos apontou uma série de problemas técnicos no licenciamento do Ibama. Segundo ele, o programa de educação ambiental proposto pela empresa contraria as próprias normas do Ibama. Além disso, afirma que o empreendimento não causará nenhum impacto negativo para os pescadores artesanais da região, o que é questionado pelos próprios pescadores que já sofrem com a diminuição da pesca na lagoa nos últimos anos. Também não é dito, acrescentou o pesquisador, qual será o impacto na água que a população consome e o impacto da mineração na Lagoa dos Patos. Caio Floriano também chamou a atenção para o fato de os licenciamentos de empreendimentos na região serem feitos isoladamente, sem considerar a interação entre eles. “Temos de 12 a 14 plantas de fertilizantes em Rio Grande. O licenciamento delas foi feito caso a caso sem considerar os efeitos sinérgicos entre elas”.

O biólogo Eduardo Forneck, professor no Campus São Lourenço do Sul, da Furg, também apontou problemas no licenciamento. Segundo ele, uma boa parte da amostragem foi feira em áreas de plantio de pinus e de invasão de pinus. “Nós avaliamos várias áreas de banhado, dunas e campos, onde não havia invasão de pinus, e nenhum desses ambientes foi considerado no licenciamento. Houve uma amostra tendenciosa que as escolheu as áreas de menor valor de diversidade biológica”.

 “Na minha terra eles não entram. Resistiremos até o fim”

Luciana Gautério Amorim, uma respeitada liderança da comunidade de São José do Norte, foi responsável por uma das falas mais aplaudidas da audiência pública. Após questionar a suposta segurança do projeto de mineração na área de Restinga, ela garantiu que na terra dela ninguém vai entrar:

“Moramos em uma península que, há cerca de dois mil anos, era tudo mar. Nós moramos em cima da água. Como é vão cavar aí e dizer que não vai acontecer nada? Não tem como cavar essa nossa península. Além disso, os pescadores e agricultores que vivem aqui são minifundiários. Eles têm uns retalhinhos de terra. Eles já cavocaram, como experiência, na localidade de Olaria e agora só tem buraco lá, cheio d’água. O governo está pouco se interessando com o que vai acontecer conosco porque aqui não soma voto. Nem chega a 30 mil votos. A gente faz abaixo assinado contra esse projeto, mas ele vai lá pra cima e não vem resposta. Mas na minha terra eles não entram. Resistiremos até o fim”.

Com 86 anos, Verlante Viana Fermino, ou “Seu Major” como é conhecido na comunidade, também participou da audiência pública e manifestou sua posição contrária ao projeto da mineradora. Como Dinarte Silva, ele lembra o que aconteceu com a pesca na região para afirmar sua desconfiança nas promessas de “progresso” feitas pela empresa de mineração:

“Sou contra o projeto da mineradora porque já temos experiência com esse tipo de coisa. A água da lagoa, hoje, custa a salgar. Além disso, está poluída. Ela não fica mais salgada dois, três dias, quando a gente pescava camarão de colocar fora. Camarão e tainha era uma coisa de louco o que dava. Não tinha pra quem vender tudo aquilo. Pesquei 70 anos aqui. Meu pai me tirou do colégio pra ir pescar quando eu tinha 13 anos. Saí no terceiro ano e não estudei mais. Hoje, a água está poluída. Sem vem outra mineradora, aí vai acabar com tudo. A conversa deles é só papo. Eles vão cavar, pegar o dinheiro e ir embora. Nós vamos ficar aqui. Meus netos, bisnetos e tataranetos vão ficar sem ter o que comer”.

Pescador e agricultor na comunidade do Retiro, a primeira a ser impactada pela mineradora, Dinarte Coelho Amorim Silva, advertiu para os riscos do projeto que pretende cavar piscinas de 10 a 15 metros de profundidade, em um terreno que possui três lençóis freáticos. “Se entrar água salgada neste buraco, vai causar um desastre. Vivemos há cerca de dois metros acima do mar. Cavando 15 metros na lagoa não vai haver comunicação com o mar?”- questionou Dinarte, que vive no Retiro desde que nasceu, assim como seus pais, avós, bisavós e tataravós.

“Todo os nortenses sabem que não pode fazer buraco na beira do oceano. Não é preciso ter grandes estudos para saber disso. Nós vivemos em uma região muito frágil, entre a lagoa e o oceano”, acrescentou Elizete Amorim, agricultora que trabalha com produção orgânica em São José do Norte.

O silêncio do Ibama e as “respostas circulares” da empresa

Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São José do Norte, Charles Silveira contou que, após receber uma série de perguntas de agricultores preocupados com o impacto do projeto da mineradora, decidiu encaminhar esses questionamentos para a procuradora Anelise Becker, do Ministério Público Federal, que, por sua vez, encaminhou os mesmos ao Ibama. “Nunca obtivemos essas respostas”, disse Silveira que questionou o fato de o instituto ter fornecido uma licença prévia ao empreendimento sem ouvir as pessoas que serão afetadas pelo mesmo. “Eles dizem que vão revirar o nosso solo todo e depois nos entregá-lo de volta mais produtivo ainda. Como vão fazer isso?” – indagou.

Na mesma direção, Márcia Helena Silveira, presidente da Cooperativa dos Agricultores Familiares de São José do Norte (Coofan), advertiu para os riscos do projeto:

“Temos uma paisagem lindíssima, entre o oceano e a lagoa. E agora temos uma mineradora querendo cavar o nosso solo. Quando acontecer alguma falha ou problema, como ocorreu lá em Mariana, os maiores penalizados seremos nós. Não podemos permitir que essa mineradora tire o nosso sustento”.

A procuradora Anelise Becker assistiu atentamente à audiência pública, sentada entre o público. Ela não quis adiantar futuras ações do Ministério Público, mas destacou a importância da mobilização da comunidade para os próximos passos a serem dados:

“É muito importante que a comunidade seja sujeito deste processo. Estamos acompanhando esse tema desde antes do licenciamento concedido pelo Ibama e, de fato, há deficiências graves de informação no mesmo. Até agora, todas as respostas do empreendedor foram circulares, referindo-se sempre ao EIA-Rima, como se este fornecesse as respostas aos questionamentos feitos. Esta mobilização da comunidade, por si só, é fundamental. Isso deve ser assumido pela comunidade e pelas autoridades do município”.

Cobranças à Prefeitura

A prefeita de São José do Norte, Fabiany Zogbi Roig (PSB), participou de toda a audiência pública e ouviu muitas cobranças por um posicionamento oficial da Prefeitura contra o projeto. Na abertura do encontro, ela lamentou a ausência de representantes do Ibama, que é o órgão licenciador, e afirmou que a comunidade ainda tem muitas dúvidas sobre os impactos do projeto de mineração. “Nem sempre as medidas compensatórias, bonitas no papel, se concretizam na prática”, observou a prefeita. Sobre as cobranças por um posicionamento oficial, Fabiany Roig disse ainda que a Prefeitura segue recolhendo informações sobre o projeto, mas que ela apoiará a vontade da maioria da população de São José do Norte.

A ausência do Ibama também foi criticada, na audiência, pelo deputado Zé Nunes (PT). Para ele, se o Ibama não tem condições de participar de uma audiência pública para conversar com as pessoas que serão afetadas por esse projeto, ele não tem condições também de fazer o licenciamento ambiental. “Projeto de mineração sem impacto ambiental não existe e eles geralmente não são pequenos. E o impacto, neste caso, não se limita a São José do Norte, mas a toda a Lagoa dos Patos e às comunidades que vivem neste território”, disse o ex-prefeito de São Lourenço do Sul, um dos municípios banhados pela lagoa. Zé Nunes defendeu que os pescadores tradicionais ingressem na Justiça para defender seus interesses, uma vez que são considerados comunidades tradicionais e, por isso, protegidos por legislação federal.

Próximos passos

O vereador Luiz Gautério, que coordenou os debates, definiu como muito positivo o resultado da audiência pública:

“O nosso interesse maior era oportunizar à comunidade um espaço para que ela pudesse se manifestar já que o Ibama não realizou novas audiências públicas desde 2014 e, neste ano, emitiu a licença prévia sob a força do golpe, este advento político ilegítimo que tivemos no país. O empreendimento está sendo analisado no Ibama de Brasília, o que afasta o órgão licenciador da comunidade local. Infelizmente, a cadeira do Ibama na audiência pública ficou vazia. É lamentável que um órgão público pareça estar servindo de balcão de negócios e não como um órgão analítico desses empreendimentos”.

Gautério relatou também dificuldades no plano político municipal. Uma moção de apoio às comunidades que repudiam o projeto de mineração foi derrotada no plenário da Câmara de Vereadores por cinco votos a três. “Isso demonstra que a maioria da classe política nortense tem lado e não é o das comunidades de agricultores e pescadores que estão muito preocupados com a licença prévia emitida pelo Ibama”, disse ainda o vereador.

“Esse empreendimento quer lavrar cerca de 30 quilômetros, mas o projeto é muito maior. Ele se chama Atlântico Sul e prevê outras áreas de lavras”, acrescentou, apontando quais serão os próximos passos do movimento:

“Acredito que essa audiência pública serviu como estopim para construir uma unidade das comunidades pela conservação, a exemplo do que tem sido feito no Camaquã. O nosso objetivo agora é nos integrar ao Comitê das Comunidades Tradicionais do Sul do Estado, que está se articulando, buscar apoio político em nível estadual e nacional e ganhar mais visibilidade para essa luta”.

Durante a audiência pública foi aberto espaço para representantes de empresas mineradoras se manifestarem e defenderem seus projetos, mas ninguém apareceu. Após o encerramento da audiência, um homem se aproximou de Luiz Gautério identificando-se como representante de uma mineradora e deixando um cartão. A participação de empresas do setor no encontro se resumiu a este gesto.

Audiência pública sobre projeto de mineração lotou salão da Igreja Matriz em São José do Norte (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

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