Filha de empregada doméstica, comecei a trabalhar aos 15. Porém, sou branca: a cor da pele abriu-me portas. Começo a percebê-lo ao cavar camadas da memória, graças à inquietação de meus alunos negros
Por Berenice Bento* – Outras Palavras
Entro em sala de aula. Olho para os lados. Somos cerca de 40 pessoas para mais um dia de aula, entre eles, pelo menos 30% de estudantes negros/as. Há também a presença de estudantes gays e lésbicas, que exibem, orgulhosos/as, símbolos e camisetas que os/as identificam com causas dos ativismos LGBTTs.
A universidade mudou. Os efeitos ainda não estão elaborados porque são rizomáticos. Talvez a forma como penso a relação entre a minha biografia e a cor da minha pele seja um destes efeitos invisíveis.
A primeira vez em que escutei que a cor da minha pele me conferia privilégios, reagi com estranheza. Ora, como é possível que uma filha de empregada doméstica, retirante, estudante de escola pública que começou a trabalhar aos 15 anos de idade possa ser considerada uma privilegiada? O que é um privilégio?
Privilégio é aquilo que você herda e é socialmente reconhecido/a como um bem material ou/e simbólico. “Reconhecido/a” não porque se trate de atos absolutamente conscientes, mas sociais. O fato de você ser reconhecida como branca tem o dom mágico de abrir portas. É como se fosse um passaporte que pode te levar para lugares interditados aos/às que não o possuem.
Mas… Qual seria, afinal, o meu privilégio? Hoje, faço parte da elite universitária, sou doutora, com pós-doutorado, embora continue fazendo da minha vida um lugar de luta pela transformação e justiça social. A primeira reação, portanto, seria relatar a mim mesma como alguém que “conseguiu” vencer na vida por mérito, reatualizado o mito midiático da heroína que subverte seus destinos inscritos no corpo. Será?
Volto com certa regularidade ao bairro onde morei por longos anos. Às vezes me encontro com colegas do meu tempo de escola. Há uma regra geral: as amigas negras trabalham no supermercado ou em outro trabalho mal remunerado. Não consegui refazer os rastros dos meus colegas negros.
Lembro que, algumas vezes, uma colega e eu fomos juntas tentar um emprego de garçonete. Eu consegui. Mandaram-na voltar depois. Tínhamos entre 14 e 16 anos. Ela era negra. Na escola, nossas notas eram muito próximas. O que me diferenciava da minha amiga? A classe social? Não. A cor mais clara de minha pele me deu coisas, me abriu portas. Foi meu passaporte. Conforme fui atravessando os funis da vida universitária, a cor da minha classe foi ficando mais homogênea.
Neste jogo de reinterpretação da minha própria existência eu também me pergunto o que o gênero em que eu fui construída – o feminino – me tirou? Quais as portas que se fecharam por ser paraibana no contexto carioca, em que um xingamento recorrente é chamar o outro “paraíba”?
É como se a consciência dos dividendos do período da escravidão fosse sendo lentamente revelada para mim e localizando minha própria existência em um fluxo histórico que eu não controlei, em uma narrativa fora de mim, mas que encontra seu “agora” histórico (nos termos do Walter Benjamin) também em minha existência.
Minha questão é tentar entender como os dados de exclusão social, política e econômica da população negra se conectam com a minha própria inclusão. Não se trata de uma falta de consciência histórica dos sentidos dos 388 anos de escravidão no Brasil, mas, agora, eu também estou interessada em amarrar a existência desta história aos meus relatos.
De forma alguma reler minha biografia vinculando-a a contextos mais amplos, acredito, resvala para um juízo moral. Este movimento de reinterpretação, de cavar camadas antes adormecidas de minha memória, não teria sido possível se, um dia, estudantes negros/as em sala de aula não tivessem me questionado sobre meus próprios privilégios de raça, se estudantes não inundassem a sala de aula com suas histórias pessoais de violência do Estado. Estudantes que representam, geralmente, a primeira geração de suas famílias a ingressar em uma universidade.
Recentemente, assistimos a um episódio do seriado Black Mirror que contava a história de como um exército desenvolveu uma técnica para distorcer a realidade e fazer os/as soldados matarem sem culpa. Estava acoplado aos capacetes um dispositivo que transformava gente em barata. Durante a aula, estudantes começaram a contar suas próprias experiências de “baratas” (como um deles se definiu: “nós somos as baratas na sociedade brasileira”): assassinato de membros da família, prisões arbitrárias, blitz abusivas e violentas.
Olhei para os lados e me dei conta de que aquelas narrativas de terror vinham quase todas de estudantes negros/as. Saí da aula atravessada por suas histórias e me dando conta de quanto tempo eu perdi ao estar fechada para a escuta do/a outro/a. Reproduzia, assim, nos meus atos, nos meus programas de curso, uma estrutura do conhecimento na qual fui formada e que tem aversão a qualquer saber que venha poluir os cânones eurocentrados das Ciências Sociais. Enfim, tenho descoberto que tenho uma formação acadêmica, no mínimo, deficitária.
Como eu estaria no mundo atualmente se não fossem as cotas raciais? Não sei. Talvez reproduzindo o canto liberal do mérito, algo que, certamente, poderia ser potencializado pelos outros marcadores sociais da diferença que me constituem. Agora, percebo que o título deste artigo deveria ter sido: O que as cotas raciais têm feito por mim?
*Doutora em Sociologia, professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), pesquisadora do CNPQ
Continuo achando que a maior revolução possível para o desenvolvimento do país seria um programa de educação excelente em todos os níveis. De que vale um pedaço de papel – tb chamado de diploma – nas mãos de um jovem com poucas habilidades e despreparado para enfrentar a concorrência mundial do 3º milênio?