Para diplomatas, estrutura do Itamaraty abre caminho para arbitrariedade e perseguição política

“Diplomacia do cagaço” – assim um diplomata definiu à BBC Brasil o funcionamento interno do Ministério das Relações Exteriores. A expressão serve, segundo ele, para resumir o medo que os diplomatas têm de contrariar superiores ou fazer críticas à política externa brasileira, seja internamente ou publicamente, em um sistema que vem se repetindo em diversos governos nas últimas décadas

A BBC Brasil conversou nos últimos dias com quatorze diplomatas, de diferentes posições políticas e tempo de carreira, para apurar se existem casos de perseguição política no Itamaraty. A discussão ganhou fôlego após o ministério remover bruscamente Julio de Oliveira Silva do posto de vice-cônsul em Nova York por causa de um artigo crítico à política externa do governo Michel Temer.

A reportagem levantou casos pontuais vistos por alguns como de retaliação política a diplomatas pela atual administração. No entanto, diversas fontes apontam um problema mais estrutural, centrado na falta de transparência e clareza nas promoções (subir de cargo) e remoções (transferências para servir no exterior) que já existiria há muitos anos no órgão.

A maioria das entrevistas indicou que a progressão na carreira e a distribuição dos postos é definida com boa dose de subjetividade, o que abre espaço para decisões arbitrárias e clientelistas, independente de qual seja o governo. Como não há critérios claros, dizem eles, as escolhas acabam sendo influenciadas por relações pessoais ou mesmo afinidade política, o que exige uma constante diplomacia pessoal.

“É uma estrutura danosa. No fundo está todo mundo preocupado com a sua remoção ou promoção. E daí você entra nesse ciclo vicioso de baixar a cabeça e acaba se restringindo ao manifestar suas ideias”, afirma outro diplomata.

A BBC Brasil apurou que, no último plano de promoções, um conselheiro foi “pulado”, ou seja, pessoas mais novas na carreira foram promovidas e ele não, o que no jargão do Itamaraty é chamado de “levar carona”. Diplomatas entrevistados acreditam que isso ocorreu por causa de um artigo em um livro crítico à política externa – procurado, o autor não quis falar por temer represálias.

“A falta de transparência nos critérios internos, na própria estrutura do Itamaraty, vem de longe. Não é desse governo. Na época do Celso Amorim (chanceler do presidente Lula) era a mesma coisa. Você era promovido, ninguém sabia por que, não era promovido, ninguém sabia por que também”, ressaltou um dos entrevistados.

Remoção após críticas

No caso de Silva, ele foi convocado de volta à Brasília pelo ministro Aloysio Nunes depois de publicar um artigo no site da revista Carta Capital dizendo que a recente visita de Temer à China, focada em atrair investimentos para projetos de privatização, colocou o Brasil no papel de “colônia em potencial”.

Sua remoção foge do padrão do Itamaraty – as mudanças de posto costumam ocorrer coletivamente, a cada seis meses, e os diplomatas são consultados previamente sobre suas preferências. “Eu nem fui comunicado. Soube por amigos que viram a decisão no Diário Oficial”, contou Silva.

A Lei do Serviço Exterior prevê que os diplomatas devem pedir autorização prévia para se manifestar publicamente sobre política externa. Em sua defesa, Silva diz que consultou a assessoria de imprensa do Itamaraty e foi orientado apenas a incluir um alerta de que as opiniões expressas no artigo eram sua manifestação pessoal, o que ele fez.

Quase todos os diplomatas ouvidos pela BBC Brasil criticaram a decisão do Itamaraty, ato que alguns chamaram de “violência” e “autoritarismo”. Parte, no entanto, disse que diplomatas não devem fazer críticas públicas ao órgão ao qual estão servindo e defenderam a abertura de um processo administrativo.

Defensores de Silva argumentam que, no governo de Dilma Rousseff, diplomatas que criticaram abertamente a presidente em artigos ou nas redes sociais não receberam punição semelhante.

A BBC Brasil procurou algum desses diplomatas e eles sustentaram que esse caso seria diferente por que ele fez uma crítica direta não ao presidente ou sua política doméstica, mas a sua política externa, sem estar licenciado do Itamaraty.

O embaixador aposentado Rubens Ricupero é um dos que achou a reação de agora exagerada.

O ex-ministro da Fazenda de Itamar Franco também se sentiu retaliado pelo atual governo após, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, dizer que hoje “ninguém quer sair na foto com o Brasil”. Em nota dura, o Palácio do Planalto afirmou que “Ricupero se mostra desantenado, escondendo fatos e propagandeando falsidades para justificar suas afinidades eletivas”.

Depois disso, o embaixador desistiu de lançar seu novo livro no Itamaraty, em evento que já estava programado. À BBC Brasil, disse que temia que os diplomatas que comparecessem fossem prejudicados. “O que aconteceu comigo e com esse rapaz mostra a suscetibilidade desse governo, que está muito acuado porque só tem 3% de apoio (segundas pesquisas de opinião)”, disse.

O diplomata Julio de Oliveira foi removido de posto após publicar artigo crítico ao governo. Foto: Arquivo pessoal

Futuro incerto

Procurado pela BBC Brasil, o Itamaraty se recusou a comentar o caso de Silva e informar qual será a nova função do diplomata. Além da remoção, aos 32 anos, o hoje segundo-secretário corre o risco de amargar mais tempo na fila para subir na carreira. “Vão me colocar na geladeira, tenho certeza”, afirmou.

A carreira de diplomata tem seis níveis – todos começam como terceiro-secretário e podem progredir até embaixador. A primeira promoção ocorre automaticamente, por tempo de carreira. Nas seguintes, o sistema é de votação secreta, com diferentes etapas, em que votam os pares do mesmo nível da carreira, os superiores e os que ocupam cargos de chefia.

Segundo uma diplomata, é um “concurso de popularidade”. Para o Itamaraty, é um sistema democrático que privilegia a meritocracia.

“É verdade que faltam critérios mais claros, que é importante ter alguém que te proteja e que te promova, mas pessoas capacitadas conseguem subir na carreira, com mais ou menos tempo, mais ou menos sofrimento. O modelo premia a capacidade de articulação política, que é algo importante para a diplomacia”, defendeu um dos entrevistados.

Já outro considera que essa necessidade de articulação favorece os aliados de quem estiver no poder.

Sobre a gestão petista, além de afirmarem que a Amorim também favoreceria aliados na hora das promoções, a BBC Brasil ouviu críticas de que o chanceler teria relegado embaixadores “brilhantes” a cargos inferiores por falta de alinhamento político.

Seria o caso do hoje embaixador na China, Marcos Caramuru, que ficou anos à frente da embaixada da Malásia, e também de Gelson Fonseca, que, após atuar como assessor especial da Presidência e embaixador na ONU no governo Fernando Henrique Cardoso, ocupou cargos menores no de Lula, como cônsul-geral em Madri.

À BBC Brasil, Celso Amorim respondeu: “Posso garantir que nunca pratiquei discriminação por motivos ideológicos. É natural, também, que, sem cometer arbitrariedades ou produzir truculência, os ministros procurem ter em lugares (postos) mais sensíveis pessoas de sua confiança”.

Punição que pode levar à demissão

No atual governo, outro caso controverso é o do Milton Rondó, que foi exonerado da chefia da área de combate à fome em junho de 2016, cerca de um mês após o afastamento de Dilma. Pouco antes disso, em março, ele havia disparado três telegramas para os postos do Itamaraty no exterior em que reproduzia notas de movimentos sociais e ONGs do país chamando o impeachment de “golpe”.

O caso gerou um processo administrativo, aberto ainda no governo Dilma e concluído no governo Temer, que determinou pena de “advertência” contra Rondó por ter enviado esses telegramas em desacordo com suas funções.

Para além dessa punição, no entanto, o diplomata continua sofrendo consequências. A BBC Brasil apurou que até hoje Rondó não foi designado para outra função no Itamaraty. Diante disso, o diplomata optou por tirar férias e licença-prêmio, ficando oito meses afastado do ministério. Ele retornou há mais de um mês e segue aguardando lotação.

Diplomatas ouvidos pela BBC Brasil ponderaram que o processo de realocá-lo é lento porque há poucos cargos para diplomatas que já estão em níveis mais altos na carreira, caso de Rondó, atualmente ministro de segunda classe, o último antes de embaixador.

A maior ameaça que paira sobre o diplomata agora, no entanto, vem de fora do Itamaraty. O Ministério Público Federal abriu uma investigação contra Rondó por improbidade administrativa, atendendo pedido realizado em março de 2016 pelo então deputado Raul Jungmann (PPS-PE), hoje ministro da Defesa, que acusou o diplomata de usar seu cargo, sem autorização da chefia, para expressar opiniões pessoais.

Após a conclusão do inquérito, os procuradores agora pedem a demissão de Rondó e que ele pague multa equivalente a 12 meses de salário. Diplomatas ouvidos pela BBC Brasil consideraram o pedido exagerado. Tanto Jungmann como o Itamaraty não quiseram comentar.

Discussão sobre ‘perseguição política’ no Itamaraty ganhou fôlego após remoção de diplomata de posto | Foto: Wilson Dias/Ag. Brasil

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