Decisão do STF permite libertação de escravos e protege comércio brasileiro, por Leonardo Sakamoto

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A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, concedeu uma liminar contra a portaria do governo Michel Temer que altera as regras para resgates de trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravos. As medidas, publicadas no dia 16 de outubro, tornavam irrelevantes as condições em que as vítimas fossem encontradas para configuração dessa forma de exploração. Caso fosse seguida, apenas as pessoas em cárcere privado com vigilância armada seriam consideradas escravas no Brasil.

A decisão é provisória. A argumentação de Rosa Weber vai na mesma linha das críticas de Raquel Dodge, procuradora-geral da República e especialista no tema. Ou seja, as formas contemporâneas de escravidão não se limitam ao cerceamento de liberdade, mas também são configuradas pela negação da dignidade do trabalhador. Principalmente, quando ele é transformado em ferramenta descartável de trabalho, sem respeito mínimo aos seus direitos fundamentais, tendo colocados em risco sua saúde, segurança e vida.

A decisão, que atende a uma ação direta de inconstitucionalidade do partido Rede, garante segurança provisória aos auditores fiscais do trabalho para continuarem as operações de fiscalização de denúncias de trabalho escravo, podendo resgatar trabalhadores segundos as regras vigentes até aqui. A portaria é considerada moeda de troca com a bancada ruralista na tentativa do governo conseguir barrar as denúncias por organização criminosa e obstrução de Justiça contra Michel Temer  que serão analisadas pela Câmara dos Deputados nesta quarta (25).

O governo federal, em nota, afirma que ”embora se trate de uma decisão monocrática de caráter precário, concedida liminarmente sem ouvir a parte contrária por Sua Excelência a ministra Rosa Weber, o Ministério do Trabalho desde já deixa claro que cumprirá integralmente o teor da decisão”.

Isso cria uma saia justa para o ministério, que ainda não divulgou a nova ”lista suja” do trabalho escravo. Originalmente, a previsão de publicação da relação era o final de setembro, mas apoiando-se em novo prazo permitido pela nova portaria que ele mesmo publicou (30 de novembro), o poder público manteve ela guardada. Agora, em tese, não há motivos para não divulgá-la. O cadastro de empregados flagrados com mão de obra análoga à de escravo existe desde 2003, atualizado a cada seis meses. Os nomes envolvidos tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias. O programa Fantástico, da Rede Globo, obteve uma cópia da lista que estava pronta, mas não foi publicizada pelo ministério e divulgou-a no último domingo (22).

A partir de agora, o governo federal pode revogar a atual portaria e não publicar nada no lugar, o que levaria ao arquivamento da ação e da liminar por perda de objeto no Supremo. Se fizer isso, vai ouvir reclamações da bancada ruralista (sua base de apoio) e de representantes do agronegócio, de algumas empresas do vestuário têxtil e da construção civil, setores com incidência desse crime, cujas demandas foram atendidas com as medidas publicadas.

Outra opção, é revogar a portaria e publicar outra ou fazer mudanças na atual. Mas caso a substituta não mude os pontos que representam um retrocesso no combate à escravidão (como a garantia que trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva continuem sendo suficientes separadamente para caracterizar a exploração), Rosa Weber deve manter a liminar.

Por fim, se o governo nada fizer, o caso pode seguir para o plenário do Supremo Tribunal Federal, que em casos anteriores apoiou o conceito tal qual ele estava previsto no artigo 149 do Código Penal, na jurisprudência nacional e no direito internacional. Nesse caso, deve contar com a participação da Procuradoria-Geral da República, que muito provavelmente dará parecer contrário à portaria.

É claro que o momento do país é diferente, e o próprio ministro Gilmar Mendes usou suas contas em redes sociais para criticar o combate ao trabalho escravo. Adotou, por exemplo, argumento comum entre os flagrados por esse crime, dando a entender que trabalho escravo tem sido caracterizado por problemas nas distâncias entre beliches. O próprio Michel Temer, em entrevista ao portal Poder 360, afirmou que houve um caso de condições degradantes caracterizado pela falta de saboneteira no banheiro. O problema é que Temer mostrou quatro dos 44 autos da fiscalização, ”esquecendo” de trazer os relacionados a atraso de pagamento, retenção de documentos, condições péssimas de higiene, falta de alojamentos decentes, entre outros. Lembrando que um auditor fiscal é obrigado a lavrar todas as irregularidades, das quase irrelevantes às graves, mas apenas esse segundo grupo caracteriza escravidão.

Por isso, o sistema de combate ao trabalho escravo, bem como as agências das Nações Unidas que acompanham o caso, esperam uma resposta definitiva para a portaria. Ou seja, o caso ainda não está resolvido.

E não é apenas a libertação de trabalhadores que está em jogo, mas a própria economia do país. A ministra Rosa Weber afirmou em sua decisão que ”a persistir a produção de efeitos do ato normativo atacado, o Estado brasileiro não apenas se expõe à responsabilização jurídica no plano internacional, como pode vir a ser prejudicado nas suas relações econômicas internacionais, inclusive no âmbito do Mercosul, por traduzir, a utilização de mão de obra escrava, forma de concorrência desleal”.

Por ser um importante produtor de alimentos e commodities, o Brasil desperta a ira de setores econômicos em países concorrentes. Por isso, temos visto tentativas de erguer barreiras comerciais a mercadorias brasileiras usando como argumento o desrespeito aos direitos humanos ou agressões ao meio ambiente. Tais barreiras não são erguidas por solidariedade aos trabalhadores ou à Amazônia. Nossas falhas são apenas a justificativa que damos para que setores econômicos de outros países possam travestir seus atos protecionistas.

Transparência é fundamental para que o capitalismo funcione a contento. Se uma empresa esconde passivos sociais e ambientais, sonega informação relevante que deveria ser ponderada por um investidor, um financiador ou um parceiro comercial.

Portanto, um instrumento que tem contribuído para evitar que essas barreiras sejam implementadas é exatamente a ”lista suja” do trabalho escravo, porque permite ações de bloqueio pontuais e não setoriais por parte de parceiros comerciais. Apesar do governo não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, a lista tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. O que tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.

Mas o governo parece querer depor contra. O coordenador nacional de fiscalização do trabalho escravo do Ministério do Trabalho, André Roston, foi exonerado em decisão publicada no Diário Oficial da União em 10 de outubro. Sua cabeça teria sido pedida pela base de apoio do governo no Congresso Nacional em meio às negociações para que não seja admitida a segunda denúncia enviada pela Procuradoria-Geral da República contra Michel Temer. No dia 17 de outubro, o Painel, da Folha de S.Paulo trouxe a informação de que três dias antes de ser dispensado, Roston havia deixado pronta essa atualização da ”lista suja”. Mas ela não foi divulgada a público por Ronaldo Nogueira, hoje ministro do Trabalho licenciado. Ele foi temporariamente exonerado para voltar à Câmara dos Deputados e votar a favor de Temer.

Nogueira, no dia 16 de outubro, publicou a tal portaria ministerial. A medida também condicionou a inclusão de nomes à ”lista suja” do trabalho escravo a uma determinação do próprio ministro. Ou seja, a divulgação depende de sua autorização e, com isso, pode deixar de ter um caráter técnico e passar a ser uma decisão política. E traz novas regras afirmando que, para poder levar um empregador à lista, os autos de infração relacionados a um flagrante de trabalho escravo passam a depender da presença de um boletim de ocorrência lavrado por uma autoridade policial que tenha participado da fiscalização. Dessa forma, a palavra final sobre a existência de trabalho escravo pode sair das mãos de auditores fiscais, especialistas no tema, e passar para a dos policiais.

Como provar a um importador inglês, holandês ou norte-americano que a carne, a soja, o algodão, o ferro-gusa, entre outras mercadorias brasileiras, não contam com escravos em sua fabricação se o país resolver desmontar um sistema visto como exitoso no combate a esse crime? A decisão de Rosa Weber, por enquanto, nos devolveu uma forma de continuar fazendo isso. Se a portaria voltar a valer, ficará a dúvida.

Foto: Edilson Dantas/Agencia O Globo.

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