Por João Vitor Santos, no IHU On-line
Que o Brasil vive um clima de ressaca causado por dolorosas crises que têm gerado disputas, polarizações e intolerância já não chega a ser uma novidade. Mas como esse cenário deve contaminar o Brasil de 2018, ano de eleições? É o que se propõe a pensar o professor Adriano Pilatti, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, o fato de figuras tão distintas como Marina Silva, Jair Bolsonaro e Lula figurarem nas pesquisas como os mais lembrados pelos eleitores é o mais claro exemplo da crise da representatividade que se vive. E, segundo Pilatti, o mais grave, especialmente para a esquerda nacional, é que “neste país, aqui e agora, somente Lula e o neopentecostalismo conseguem falar para a grande massa dos pobres”.
O professor ainda analisa que nenhum nome na esquerda tem a mesma aderência que o de Lula. Enquanto isso, à direita, Bolsonaro avança enquanto outros sucumbem. “Lula e as alternativas à sua direita certamente disputarão o apoio de correntes do neopentecostalismo, e com algo terão de retribuir se tiverem êxito. A onda reacionária entre nós é político-religiosa. Este para mim é o nome do perigo aqui e agora”, analisa. Assim, diante de tal quadro, não chega a surpreender a verdadeira explosão de intolerância que se vive. “As intolerâncias não nasceram ontem, mas em tempos como os nossos elas tendem também a confluir e aflorar em alternativas políticas que são a antipolítica no sentido mais negativo do termo”, pontua.
Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I – La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 – Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008). Pilatti também traduziu o livro Poder Constituinte – Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2015). Essa obra de Negri será tema da palestra O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, a ser proferida pelo professor de Direito da Unisinos, André Luiz Olivier da Silva, no dia 06-11-2017, às 19h30min no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Pilatti estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 23 de novembro de 2017, na Unisinos Campus Porto Alegre, apresentando o livro Poder Constituinte, de Antonio Negri. Saiba mais informações aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Depois de passarmos pelas experiências das jornadas de 2013, impeachment, manifestações de “vermelhos” e “verde e amarelos”, Lava Jato, como criar as novas ações e organizações de liberação, para evitar a corrupção do Comum e sua captura pelos processos de privatização?
Adriano Pilatti – É o que muitos de nós continuamos a nos perguntar… É uma pergunta que militantes e movimentos estão a se fazer em todo lugar, depois do refluxo do ciclo de levantes pró-liberação, que sacudiu tantas metrópoles pelo Atlântico e Mediterrâneo afora no início da década. E que encontrou como respostas, por parte dos estados e do capital, uma contraofensiva repressora e obscurantista, ou o retorno à “dança da chuva” de uma política representativa atolada nas armadilhas da “austeridade”.
Penso, como Virno [1], que os grandes levantes multitudinários, em que as novas subjetividades do trabalho metropolitano se encarnam de forma tumultuária, emergem como rios subterrâneos que afloram à superfície e voltam a submergir, retomando, de forma recomposta, a configuração molecular de uma multiplicidade de pequenos movimentos que, em determinados momentos, confluem e se conjugam em grandes ondas de contestação. Mas deixam algo atrás de si: a certeza de que, mesmo de modo efêmero, é possível desafiar o poder, quebrar o oligopólio institucional da decisão política e transferi-la dos palácios para as ruas e praças, desobedecer.
Depois de sua passagem, para o poder “fica a dica” de que pode-se até voltar a obedecer, seguir obedecendo, mas a obediência não será mais um pressuposto e a desobediência poderá ser retomada a qualquer momento, tão esperada mas imprevistamente como acontecera antes. Estas observações valem, no que se refere ao Brasil, para os levantes de Junho de 2013.
Os demais fenômenos a que a pergunta se refere são de outra ordem, e no meu entender concernem mais a conflitos intrapoderes, mais ou menos podres, do que ao trabalho da Multidão. A Multidão é livre e multicor, não veste toga nem uniforme: quem veste toga é patriciado estatal, quem veste uniforme é massa conduzida.
Novas formas de ação e organização
Quanto à busca de novas formas de ação e organização, ela tem sido um esforço compartilhado mas até aqui inconclusivo. O velho e bom método da prática como critério da verdade nos diz que elas têm de ser procuradas, não em formulações abstratas produzidas em debates teóricos, mas na experiência dos próprios movimentos. Como se fez classicamente em relação aos “modelos” da Comuna de Paris [2], dos conselhos revolucionários, e hoje se faz em relação às ocupações produtivas, aos empreendimentos produtivos coletivos e autônomos etc. É preciso voltar-se para a dinâmica dos movimentos passados e presentes e surpreender ali as formas de ação e organização que possam ser experimentadas e ampliadas nos novos contextos em que vivemos. Se deixarmos de ser eurocêntricos, podemos inclusive pensar, por exemplo, em pesquisar as experiências dos quilombismos — apesar das dificuldades da rarefação de fontes resultante de uma violenta supressão de memória. De outra parte, parece haver um certo consenso quanto à necessidade de, ante a crise das formas representativas, pensar em um outro tipo de relação entre movimentos e partidosefetivamente comprometidos com uma agenda de transformação.
Talvez valha ainda observar que deixar-se aprisionar por uma espécie de mística dos grandes levantes, e portanto “padecer” pela sua ausência, é justamente desconhecer essa dinâmica por meio da qual os movimentos moleculares se conjugam e afloram em grandes composições para depois refluirem e se desdobrarem nas mesmas e em novas formas de ação molecular, que podem voltar a confluir e aflorar mais adiante. Não pode haver Junhos doze meses por ano, nem todo ano. Muita coisa os precede, e de todo Junho fica um pouco nos dados que continuam a rolar.
IHU On-Line – Como interpreta a pesquisa Datafolha sobre as eleições presidenciais de 2018 [3], divulgada agora no início de outubro, em que 60% dos eleitores do Bolsonaro são jovens?
Adriano Pilatti – Penso que, antes de mais nada, é preciso não interpretar o suposto resultado da pesquisa de modo a condenar esses jovens todos ao “fogo do inferno”, carimbá-los todos como fascistas e ficar vociferando contra sua existência. É preciso encarar o fenômeno na gravidade do que prenuncia, tentar compreender quais os fatores que concorrem para produzi-lo, e sobretudo pensar no que fazer para evitar que mais jovens se deixem capturar por ilusões pestilentas como essa.
IHU On-Line – Quais os significados de ter Lula, Jair Bolsonaro e Marina Silva entre os três com maior intenção de voto?
Adriano Pilatti – Para mim, essa é a perfeita tradução da intensidade e da extensão de uma crise da representação que não é apenas brasileira. De todo modo, dizem os especialistas que, com esta antecedência em relação às eleições, pesquisas traduzem muito mais conhecimento de nomes do que escolhas futuras. Além disso, são três dos nomes mais referidos, positiva ou negativamente, pela mídia e pelas redes sociais, isso também ajuda.
IHU On-Line – A mesma pesquisa Datafolha que aponta que a maioria das pessoas defende a condenação de Lula, caso realmente envolvido em casos de corrupção, coloca o ex-presidente na liderança das intenções de voto. O que podemos inferir desses dados?
A onda reacionária entre nós é político-religiosa. Este para mim é o nome do perigo aqui e agora
Adriano Pilatti – Que Lula, como antes, talvez, Getúlio [4], é um nome conhecido há décadas, que desperta amores e ódios, que é objeto da gratidão de uns e da abominação de outros, que ainda polariza. A tragédia do campo de esquerda hoje é que, neste país, aqui e agora, somente Lula e o neopentecostalismo conseguem falar para a grande massa dos pobres. À esquerda, ninguém mais consegue. À direita, Bolsonaro se exercita e outros já nem tentam. Lula e as alternativas à sua direita certamente disputarão o apoio de correntes do neopentecostalismo, e com algo terão de retribuir se tiverem êxito. A onda reacionária entre nós é político-religiosa. Este para mim é o nome do perigo aqui e agora.
IHU On-Line – Que ideia de corrupção se constitui hoje, no Brasil, depois de todos os recentes acontecimentos políticos a partir da Lava Jato?
Adriano Pilatti – No mínimo, ambígua. Corrupção no Brasil continua sendo a do outro. Nisso todos concordam, é o único consenso: “corrupção é a sua”. No Brasil e alhures, o problema é que pode haver pelo menos duas ordens de leitura: uma, moralista-fundamentalista, a superstição de que a violência, apenas por ser violência, não apenas “extirpa” ou “cura” como, o que é mais tolo e cavernoso ainda, é imune à corrupção; outra que, tomando a corrupção como estrutural a sistemas que associam desigualdade e delegação, a sistemas representativos capturados pelo capital, aposta na ampliação das formas de exercício direto da democracia, dos mecanismos de defesa e autodefesa de direitos, e na construção de barreiras à influência do capital nos partidos e nas eleições. O terrível é que a primeira leitura parece predominar.
IHU On-Line – Ainda é pertinente falar em reforma política no Brasil? E que reforma seria essa?
Continuamos com a ilusão de que reforma política só se faz por meios políticos
Adriano Pilatti – Evidente que sim, e o sentido para mim é o apontado na resposta anterior: mais democracia, mais participação direta, mais desobediência, mais direitos. O problema, como já dizia até o reacionário Oliveira Vianna [5], que sabia de certas coisas, é que continuamos com a ilusão de que reforma política só se faz por meios políticos, no sentido de representativo-eleitorais, e aí ficam as discussões bizantinas de sistemas eleitorais etc. É preciso avançar por aí, é certo, mas a grande reforma política de que o Brasil necessita também passa pela reforma dos meios de comunicação de massa, hoje majoritariamente entregues, no rádio e na TV, a organizações fundamentalistas, reacionárias ou no mínimo conservadoras, algumas delas verdadeiras organizações criminosas que, para além dos esforços de manipulação próprios “do jogo”, promovem discursos de ódio, obscurantismo, intolerância e preconceitos. Tudo isso de forma ilegal e inconstitucional – mas à luta contra essa grande corrupção do Estado democrático, republicano e laico o Ministério Público pouco se dedica.
A reforma política passa também, e talvez antes de mais nada, pela promoção de uma educação pública, integral, laica e plural que possa ajudar a formar cidadãs e cidadãos livres e conhecedores de seus direitos, que possam ser os sujeitos autônomos da construção de sua própria liberdade e de seus destinos. Salvo engano é o que prescrevem os artigos 205-214, para a educação, e 220-224, para a comunicação social, da maltratada Constituição de 1988.
IHU On-Line – No que consiste a intolerância de nosso tempo, da religiosa à política, passando pelas questões de gênero?
Em épocas de transformações aceleradíssimas, de grandes desastres sociais e humanitários, muitos ficam fóbicos diante das mudanças
Adriano Pilatti – Intolerância é quase sempre eufemismo, e olhe que não é uma palavra suave, para desrespeito e prepotência. Em qualquer tempo ela viceja como estratégia do poder para capturar ou reprimir resistências. Em épocas de transformações aceleradíssimas, de grandes desastres sociais e humanitários, muitos ficam fóbicos diante das mudanças, das diferenças e da necessidade de se adaptar, ficam ressentidos ou revoltados contra as privações a que são submetidos. E os discursos obscurantistas buscam então canalizar tudo isso para processos de fanatização em que se definem inimigos cuja destruição é apontada como meio para superar a situação negativa em que esses pobres-diabos se encontram. No mínimo, uma catarse – por meio da violência contra o outro, o diferente, o “de baixo” – lhes é oferecida. As intolerâncias não nasceram ontem, mas em tempos como os nossos elas tendem também a confluir e aflorar em alternativas políticas que são a antipolítica no sentido mais negativo do termo. E que se alastram, modalizando-se em cada sociedade. A globalização hoje é também a globalização das formas políticas regressivas.
IHU On-Line – Qual a questão de fundo por trás da violência que eclode nas grandes metrópoles, como o Rio de Janeiro? Onde a guerra ao tráfico nos levará?
Adriano Pilatti – Desigualdade, denegação de serviços e da própria cidade, condições desumanas de habitação e transporte, denegação da vida boa, inexistência de república, neurotização funcional dos pobres – enfim, aí estão as pesquisas e teses… E há, óbvio, a guerra às drogas, equivocada, sabidamente inútil, desumana e hipócrita, que alimenta a corrupção das forças e autoridades estatais. No Rio, a chaga é mais profunda, há toda uma história de controle territorial de áreas suburbanas por bandos armados: para ficar no passado recente, desde o jogo do bicho, passando pelas chamadas milícias, que nada mais são do que forças paraestatais – não são “apenas” as facções do narcotráfico que exercem poder de vida e morte nos territórios que ocupam.
São áreas imensas, de grande densidade populacional, em que não há sombra de “Estado Democrático de Direito”, nem de liberdades públicas ou direitos civis. É o estado de exceção permanente, com o qual convivemos absurdamente, e que torna risível toda discussão sobre possível violação de direitos e garantias constitucionais dos ricos, poderosos e privilegiados, se e quando ocorre. São milhões vivendo diariamente a dupla violência dos bandos criminosos e da polícia. Além do mais, também nessa situação há forças que se alimentam do desespero produzido por essa violência. É um processo perverso, em que os fatores negativos se alimentam reciprocamente.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Adriano Pilatti – A alteração das normas sobre definição e combate ao trabalho escravo é um dos momentos mais enojantes da história do Estado brasileiro. Com todo esse acúmulo de medidas governamentais restritivas de direitos dos trabalhadores e da prestação de serviços públicos, coroadas por esse supremo ato de cafajestagem, não há como deixar de considerar que o governo estabelecido e os setores econômicos a que obedece entraram em estado de guerra contra os pobres. E não “só”: contra o meio ambiente, contra a cultura, contra tudo que vive e faz viver. É preciso detê-los.
Notas:
[1] Paolo Virno (1952): filósofo e semiólogo italiano de orientação marxista. Atualmente, leciona na Universidad de Cosenza. Em 1977 apresentou sua tese de doutorado sobre o conceito de trabalho e a teoria da consciência de Theodor Adorno. Entre seus livros estão: Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporáneas (Madrid: Traficantes de Sueños, 2003), A Grammar of the Multitude: For an Analysis of Contemporary Forms of Life (Nueva York: Semiotext, 2004) e Cuando el verbo se hace carne. Lenguaje y naturaleza humanas (Madrid: Traficantes de Sueños, 2005). Confira a entrevista com o filósofo na edição 161 de IHU On-Line, de 24-10-2005, O cérebro social como interação direta entre sujeitos de carne e osso. (Nota da IHU On-Line)
[2] Comuna de Paris: é um período insurrecional na história de Paris, que durou pouco mais de dois meses, de 18 de março de 1871 até a “Semana Sangrenta” de 21 a 28 maio de 1871. Esta insurreição contra o governo foi uma reação à derrota francesa na guerra franco-prussiana de 1870. (Nota da IHU On-Line)
[3] O IHU, na seção Notícias do Dia de seu sítio, publicou uma série de análises acerca da pesquisa, entre elas “60% dos que indicam voto em Bolsonaro são jovens”. Entrevista com o diretor do Datafolha. (Nota da IHU On-Line)
[4] Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] (1882-1954): político gaúcho, nascido em São Borja. Foi presidente da República nos seguintes períodos: 1930 a 1934 (Governo Provisório), 1934 a 1937 (Governo Constitucional), 1937 a 1945 (Regime de Exceção) e de 1951 a 1954 (Governo eleito popularmente). Recentemente a revista IHU On-Linepublicou o Dossiê Vargas, por ocasião dos 60 anos da morte do ex-presidente. A IHU On-Line dedicou duas edições ao tema Vargas, a 111, de 16-8-2004, intitulada A Era Vargas em Questão – 1954-2004, e a 112, de 23-8-2004, chamada Getúlio. Na edição 114, de 6-9-2004, Daniel Aarão Reis Filho concedeu a entrevista O desafio da esquerda: articular os valores democráticos com a tradição estatista-desenvolvimentista, que também abordou aspectos do político gaúcho. Em 26-8-2004, Juremir Machado da Silva, da PUC-RS, apresentou o IHU ideias Getúlio, 50 anos depois. O evento gerou a publicação do número 30 dos Cadernos IHU ideias, chamado Getúlio, romance ou biografia?. Ainda a primeira edição dos Cadernos IHU em formação, publicada pelo IHU em 2004, era dedicada ao tema, recebendo o título Populismo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola. (Nota da IHU On-Line)
[5] Francisco José Oliveira Vianna [Oliveira Vianna] (1883-1951): sociólogo, ensaísta e autor considerado, junto com Sérgio Buarque de Holanda, como primordial para a compreensão da formação ideológica e da questão territorial do país. Suas obras, versando sobre a formação do povo brasileiro, têm o mérito de ser das primeiras que tentaram abordar o tema sob um prisma sociológico e diferenciado. Escreveu “Populações Meridionais do Brasil” (1918), considerado um clássico do pensamento nacional. Foi um dos ideólogos da eugenia racial no Brasil. (Nota da IHU On-Line)
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Protestos junho 2013. Foto: Página 13