São Paulo, Territórios em Disputa e os limites do planejamento

No blog da Raquel Rolnik

Recentemente, por ocasião do lançamento do meu novo livro, Territórios em disputa, concedi entrevista à Folha de S. Paulo, abordando alguns dos temas trazidos pela publicação. Disponibilizo a íntegra abaixo. Na mesma semana, sugeri aqui no blog e nas redes sociais que os leitores me enviassem perguntas sobre o livro e a cidade. Agora, aproveito este espaço para comentar as questões que recebi e também alguns temas que foram objeto da entrevista com o jornalista Raul Juste Lores, mas que ficaram de fora, já que a conversa foi longa e, portanto, não coube integralmente no jornal.

São Paulo dos muros e grades

O avanço dos enclaves fortificados em São Paulo, ou seja, dos condomínios e espaços de fruição pública dentro de locais privados, como os shoppings, ocorreu especialmente entre meados dos anos 80 e os anos 90. A disseminação deste modelo de cidade está relacionada ao avanço da cultura do medo. Naquele momento, de crise econômica e desemprego, a expansão do mercado ilegal de drogas e seus impactos nos índices de criminalidade e violência funcionaram como forte indutor da construção de muros.

Mas não podemos negligenciar dois elementos: 1) Que imagens difundidas nos meios de comunicação, como as de guerras de gangues, por exemplo, ajudaram a vender estes novos produtos imobiliários em cidades do país inteiro, inclusive em lugares distantes do epicentro da violência; 2) Que aquele foi um momento de crise fiscal e que a sensação de insegurança foi potencializada pelo abandono dos espaços públicos, penalizados com o corte de investimentos em iluminação, limpeza, zeladoria e políticas sociais para a proteção dos mais vulneráveis, justamente quando esses investimentos eram mais necessários.

A situação era muito semelhante ao que ocorre agora. O corte nos gastos públicos subverte aquilo que deveria ser a prioridade de qualquer governo em meio ao aumento do desemprego: o fortalecimento das redes de proteção às pessoas mais vulneráveis e o aumento da manutenção e do investimento em espaços públicos, diminuindo, assim, as possibilidades de acesso ao consumo de espaços ofertados pelo mercado.

 Existem políticas públicas sem políticos?

Uma seguidora do Twitter enviou o seguinte questionamento: “como fazer cumprir critérios e padrões técnicos por sobre decisões políticas amarradas aos interesses do mercado imobiliário?”. Essa pergunta parte de um entendimento que precisamos romper: a de que os critérios técnicos não são políticos. De fato, eles são. Todo critério parte de uma escolha, que implica atender demandas e/ou visões de determinados segmentos da sociedade.

Além disso, todo processo decisório no âmbito das políticas públicas requer, para ser implementado, uma mediação com atores da cena política. Nesse ponto, essa pergunta se relaciona com outra questão que abordei na entrevista à Folha: tanto o ex-prefeito Fernando Haddad quanto o atual, João Doria, são políticos. E não há nenhum problema nisso. Nenhum governo, municipal, estadual ou federal, pode viabilizar suas propostas sem se relacionar com operadores políticos, como vereadores, deputados ou senadores, que têm suas próprias agendas, seja de representação de suas bases, seja de reprodução de seus próprios mandatos e partidos.

Tanto Doria como Haddad tiveram, por exemplo, que fazer escolhas para compor suas equipes de governo, de modo a acomodar os diferentes interesses dos partidos que compõem/compunham suas bases no legislativo, por exemplo.

Até aí, os dois são igualmente políticos, embora Doria insista em tentar enganar os paulistanos afirmando que não é. Mas há um fosso que os separa. Doria tem escolhido como único interlocutor o mercado. É do mercado que ele precisa de aprovação e é a agenda do mercado que ele representa. Essa interlocução é pouco transparente e inacessível aos cidadãos comuns e se dá à margem dos espaços institucionais, ou mesmo por fora deles.

Haddad também se relacionava com o mundo dos negócios, claro, mas tinha um leque de interlocutores muito mais amplo: movimentos sociais, como os de moradia, além de novos movimentos, como os coletivos culturais do centro e das periferias, para os quais abriu espaços de escuta, os cicloativistas, entre outros. E mais: o ex-prefeito investiu e valorizou os espaços institucionais, como os conselhos e os processos de discussão pública, como o do Plano Diretor.

Destas interlocuções resultaram, por exemplo, políticas e iniciativas que caminhavam na direção de uma cidade mais aberta, com espaços públicos ocupados, distanciando-se daquela lógica da cultura do medo, que multiplicou os condomínios e shoppings centers, e da hegemonia do automóvel.

Planejamento e seus limites

Outra pergunta enviado foi: “Como o planejamento urbano pode intervir para reduzir os conflitos socioeconômicos?” Nos anos 80/90, os movimentos pela reforma urbana apostaram na formulação de Planos Diretores que, elaborados de forma participativa, visavam enfrentar a exclusão territorial e promover a redistribuição de recursos, garantindo a justiça socioterritorial. Esse planos incluíram instrumentos como a Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), instrumentos de regularização fundiária e os de reconhecimento dos direitos dos moradores assentamentos populares, captando para um fundo público a outorga onerosa do direito de construir e lucros imobiliários e o IPTU progressivo no tempo, entre outros.

Mas houve dois fatores que bloquearam o sucesso dessa empreitada. O primeiro é que os Planos Diretores tratam somente da produção do espaço construído pelo mercado, aplicando-se apenas à cidade formal, o que corresponde, talvez, à metade do território e à minoria dos seus habitantes. Por exemplo, o Zoneamento, que é o instrumento que mais incide concretamente na definição dos usos e formas de ocupação dos terrenos das cidades, não chega na cidade real, não tem linguagem para dialogar com ela. Estes são instrumentos de matriz colonialista, que não conseguem reconhecer outros agenciamentos espaciais. É como usar uma betoneira para navegar no mar… não foram feitas para isso!Assim, mesmo diante dos imensos esforços para garantir participação na elaboração desses instrumentos, como ocorreu com o último Plano Diretor de São Paulo, durante a gestão Haddad, eles continuam longe da maioria dos cidadãos.

O segundo fator tem a ver com o fato de que os processos reais de produção da cidade são decididos no dia a dia não por planos, mas por processos mediados por interesses econômicos, sociais e políticos, como já comentei. E é justamente por isso que é fundamental, hoje, fortalecer as práticas sociais que transformam o território: os processos de formulação/ação direta de cidadãos organizados ou não em coletivos que atuam de forma horizontal e colaborativa. Alguns colegas tem denominado essas práticas  de planejamento insurgente ou abolicionista.

Leia entrevista publicada na Folha de S. Paulo:

Modelo de cidade voltada para carro não foi superado, afirma urbanista

Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Raquel Rolnik, 61, publicou em 2001, dentro da coleção “Folha Explica” (Publifolha), um volume dedicado à cidade de São Paulo.

Ela revisita e atualiza esses textos em “Territórios em conflito – São Paulo: espaço, história e política” (Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha), no qual também inclui uma série de ensaios publicados na Folha, no portal Yahoo e em seu blog, além de textos mais acadêmicos. A obra será lançada nesta quarta-feira (18), na livraria Martins Fontes (avenida Paulista, 509, em São Paulo), das 18h30 às 21h30.

“A mobilidade e o comportamento mudaram, mas o modelo de cidade para o carro não foi superado. O modelo dos enclaves, de condomínios fechados a shoppings, não foi superado”, afirma. Do programa Minha Casa, Minha Vida, do PT, à gestão João Doria (PSDB), ela se debruça especialmente na última década da Pauliceia.

Rolnik foi diretora de Planejamento da prefeitura na gestão de Luiza Erundina pelo PT, entre 1989 e 1992, e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, entre 2003 e 2007, no governo Lula (PT).

Folha – São Paulo foi planejada para ser do jeito que é?

Raquel Rolnik – Ao contrário do senso comum, que acredita que São Paulo não teve planejamento, houve uma enorme influência de decisões políticas urbanísticas em como a cidade se estruturou. Em determinados momentos, opções tecnocráticas decidiram como crescemos. Não houve acaso.

Nessa última década, os paulistanos começaram a usar muito mais o espaço público. Dá para ser otimista?

A mudança na relação dos moradores da cidade com o espaço público já aconteceu. O sucesso da Paulista aos domingos e a ocupação da praça Roosevelt mostram que não se trata apenas de parque ou praça, as pessoas querem andar, pedalar, usar a calçada. Há tensões, conflitos.

A mobilidade e o comportamento mudaram, mas o modelo de cidade para o carro não foi superado. O modelo dos enclaves, de condomínios fechados a shoppings, não foi superado. Como qualquer processo, pode sofrer reveses.

No livro, a sra. diz que o prefeito Doria reverteu a “ruptura da hegemonia do automóvel sobre todas as demais formas de circulação”. E que o programa Cidade Linda trata de “apagar a presença dos jovens do espaço público, especialmente os que vivem na periferia”, ao combater pichações e grafite. Como avalia a gestão?

Doria vem da mídia, lança objetos de comunicação diariamente. Parece cheio de ideias, algo que pega bem nos primeiros meses de mandato. Só que são só ideias, não uma mudança de gestão. Ele se veste de gari, faz a limpeza em frente às câmeras, mas, dois meses depois, o mesmo lugar está imundo. A imagem funciona, mas a zeladoria não mudou. A cidade não está nada linda. Para implementar um programa, há um processo longo, que envolve mudança de rotinas, uma guinada no transatlântico.

A sra. escreveu que tanto Haddad (PT) quanto Doria se apresentaram aos eleitores como “sem carreira de político”. Virou um padrão?

Triste da cidade que acha legal ter um prefeito que nada tem a ver com a política! Precisamos dela, queiramos ou não.

O Ministério das Cidades foi criado há 14 anos. Melhorou alguma coisa?

Não houve uma reforma do Estado brasileiro para política urbana. Goste-se ou não, houve reformas importantes na educação e na saúde, com o SUS, desde a Constituição. O desenvolvimento urbano continua com a lógica da ditadura militar. A formulação de estratégias urbanas ainda precisa acontecer.

O programa Minha Casa, Minha Vida representa um fracasso dos arquitetos e urbanistas no governo federal?

O que falou mais alto na sua formulação foi a política econômica, não a habitacional. Produzir unidades de habitação, recuperar a economia e gerar empregos, sem uma pauta urbana. A política habitacional continua com uma lógica de banco, a Caixa Econômica Federal, que herdou o espólio do BNH.

O que se repetiu foi construir em massa, apenas residenciais, bairros-dormitório apartados da cidade, sem transporte, sem urbanidade. Foi a derrota política do grupo que defendia outro tipo de política habitacional.

Grandes construtoras, que abriram capital em bolsa, precisavam adiar a crise e dinamizar o setor, e conseguiram essa política do Ministério da Fazenda.

A sra. continua a favor da demolição do Minhocão?

Sim, é um mastodonte que destruiu bairros inteiros, que eram lindos. Nasci nos Campos Elíseos, perto de onde hoje está a estação do metrô Marechal Deodoro, sei do que falo. Antes da demolição, temos que pensar em uma alternativa forte de circulação leste-oeste. Acho interessante que os pedestres usem, enquanto não vem a demolição, mas não acho que tenha muito a ver com o High Line [parque suspenso em Nova York, nos EUA], de se fazer um parque. O High Line é uma estrutura mais suave, leve, e foi criado em uma área industrial, de muitos galpões, não densamente residencial.

Há várias críticas à legislação urbana no livro. Os Planos Diretores não melhoraram essa situação?

Passei 20 anos dedicados a fomentar os processos participativos que levaram à consolidação dos Planos Diretores. Faço uma autocrítica.

A linguagem desses planos não têm uma forma permeável à participação real. Ao criar um plano para a cidade inteira de uma vez, você perde a heterogeneidade.

Precisamos de processos mais descentralizados, de planos mais locais, de abertura para a participação mais direta. A prolixidade jurídica se sobrepõe. Não tivemos pactação desses planos, um problema sério da nossa democracia.

Mas os Planos de Intervenção Urbana (PIU) e as parcerias público-privadas (PPP) são mais perversas que a regulamentação obtusa. É legislação que se faz com a retirada do debate da esfera pública, voltada só para garantir lucro dos empresários.

Foto: @ruajuventudeanticapitalista/Facebook.

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