Com aulas e atividades novamente paralisadas, universidade chega a ponto crítico frente aos cortes orçamentários. Desmonte significa enfraquecer centro de referência em elaboração de políticas públicas
Por Maurício Thuswohl, para a RBA
Rio de Janeiro – A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) está agonizando. Novamente com suas aulas e demais atividades paralisadas desde o dia 3 de outubro, a universidade – que este ano já figurou em dois rankings de excelência elaborados pela revista US News & World Report como a quinta melhor do Brasil e a décima primeira melhor da América Latina – sofre nos últimos anos com severos cortes orçamentários que agora chegam a um ponto crítico. Com déficit estimado somente para este ano em mais de R$ 500 milhões, se tornou impossível para a Uerj pagar salários e bolsas e manter projetos de pesquisa e o funcionamento de serviços básicos como segurança, limpeza e manutenção.
Para além da crise estrutural e administrativa, o sucateamento da Uerj representa também o enfraquecimento de um tradicional polo de pensamento crítico e elaboração de políticas públicas progressistas. Fundada em 1950, a universidade, sobretudo a partir da inauguração de seu campus atual em 1975, se tornou um centro de atuação de movimentos e forças políticas de esquerda, com destaque no combate à ditadura civil-militar e na reorganização dos movimentos estudantil e docente a partir do início do processo de redemocratização do Brasil. Isso sem falar nas centenas de vezes em que os espaços do campus, localizado em uma área central da cidade, ao lado do Maracanã, foram cedidos para assembleias e atos públicos de diversas categorias de trabalhadores.
Por todo esse histórico, um eventual “fim da Uerj”, segundo seus críticos, além de ser um ataque à educação pública de qualidade no Brasil, estaria inserido no processo de golpe contra as instituições democráticas do país e as conquistas dos trabalhadores, iniciado após o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República. Sob esse ponto de vista, o abandono da Uerj estaria sendo alimentado pela deliberada falta de ação tanto do presidente Michel Temer (PMDB) como do governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB).
“Na perspectiva de você ter uma universidade efetivamente engajada nos grandes desafios da sociedade e buscando a construção de soluções para os problemas sociais, esse desmonte que se faz na Uerj – e na universidade pública brasileira em geral, já que esse processo de desmonte não é isolado – é um ataque que fragiliza todo esse campo de reflexão e de pensamento sobre os problemas do Brasil”, afirma o consultor em Ciência e Tecnologia Marcos Cortesão, que foi presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Uerj nos anos oitenta, período de maior efervescência política da universidade.
Cortesão, que também foi presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE), diz que os ataques à Uerj não estão dissociados do desmonte que se faz na educação pública como um todo no Brasil: “Tudo está relacionado à importância e ao peso que teriam no país a educação, a ciência e a tecnologia como ferramentas fundamentais para um projeto autônomo, soberano e libertário de construção cidadã”.
Esse desmonte, diz, faz parte do conjunto de ataques aos direitos dos brasileiros mais pobres perpetrado pelo atual governo: “A universidade é fundamental para que você permita que a sociedade busque construir um mundo menos desigual, onde as pessoas tenham acesso à educação e a uma formação que as permita disputar em condições de maior igualdade os desafios do mercado de trabalho. A partir da universidade, e a Uerj talvez seja o maior exemplo disso, as camadas menos privilegiadas da população têm a oportunidade de acesso a melhores empregos”, diz.
Universidade de trabalhadores
O deputado federal Celso Pansera (PMDB-RJ), que também foi estudante e diretor do DCE da Uerj nos anos 1980 e 1990, aponta algumas características que a diferenciam das universidades públicas federais. “Uma delas é que, como tem cursos à noite, oferece aulas noturnas. Outra é que é localizada bem no centro da cidade, com fluxo fácil de ônibus, trem e metrô. Por isso, a Uerj sempre teve uma conformação mais próxima da média da realidade de renda do brasileiro, do carioca. Então, sempre foi muito mais comum você encontrar na Uerj trabalhadores e filhos de trabalhadores – que têm que ganhar a vida de dia e precisam estudar à noite – do que nas demais universidades públicas. A Uerj sempre teve esse caráter mais proletário, não é à toa que foi lá que surgiu a questão das cotas raciais”.
Essas características, segundo Pansera, sempre deram à Uerj uma conformação política diferenciada. “Por isso, as organizações mais à esquerda tiveram maior presença na universidade nos anos 80 e 90, isso era bastante claro. Além disso, como a maioria dos servidores, professores e alunos se concentram em único prédio, totalmente vertical, sempre houve uma interação maior entre os três segmentos. Devido ao maior diálogo, quando se ia para a greve, dificilmente ia um setor só. É inadmissível que se desmonte uma universidade com tantas conquistas e tanto significado histórico e político”, diz.
O deputado, que votou a favor do encaminhamento da denúncia contra Temer na Câmara e integra a ala dos “rebeldes” do PMDB, culpa também o governo de Pezão pelo abandono da Uerj: “Quando a gente pensava que o Estado iria ter um funcionamento linear e que a Uerj não voltaria a sofrer duros golpes contra sua sobrevivência como sofreu no passado, vem essa crise e um governo que não compreendeu a importância da instituição para o futuro do Rio de Janeiro. O governo, inclusive, usa os argumentos de que a Uerj produz muito pouco, de que o custo do aluno é muito elevado, de que o salário médio dos professores é muito alto. Diz isso para fazer ataques públicos à instituição”.
Ex-vice-presidente da UNE e ministro da Ciência e Tecnologia nos últimos meses do governo Dilma, Pansera propôs na Comissão de Orçamento da Câmara que a revisão da meta de déficit do governo federal em 2018 para R$ 159 bilhões seja elevada para R$ 165 bilhões e a diferença seja destinada às universidades e ao setor de ciência e pesquisa. “O governo não está entendendo a importância da ciência e tecnologia para o futuro do país. Não consegue compreender que, se tem alguns setores que deram certo na economia brasileira, é porque tiveram ciência, tiveram pesquisa. Assim como acontece no Rio, nacionalmente o governo trata o setor com demérito, como se não tivesse relevância ou importância para o futuro”, diz.
Diversas universidades, segundo Pansera, não aguentarão o tranco de um novo corte orçamentário em 2018. “Após sucessivos cortes desde 2015, agora não tem o que inventar: ou vai ter dinheiro em 2018 ou para tudo. Não tem mais onde cortar. Ou o governo injeta recursos e banca a retomada do orçamento das universidades e da pesquisa científica no Brasil ou vai comprometer décadas da ciência brasileira. Vamos perder janelas de oportunidades tecnológicas como, por exemplo, o C4.0, as cidades inteligentes e a Internet das Coisas e o Brasil vai continuar comprando tecnologia e vendendo commodities ainda por muito tempo”.
Agenda regressiva
Marcos Cortesão afirma que quem se beneficia com o sucateamento da Uerj são os setores privatistas, cada vez mais presentes na educação brasileira. “E, no setor privado, você tem uma oferta de vagas, na maior parte das vezes, com uma qualidade bastante deplorável. Esse desmonte permitirá que apenas os filhos dos setores mais abastados da população tenham para onde correr, seja indo fazer sua formação no exterior ou estudando em universidades privadas de elite”, afirma. “À medida que você desmonta esses espaços de ensino público e reflexão crítica, você por tabela acaba também desmontando trincheiras que tiveram no passado um papel importante de resistência, não somente por meio do movimento estudantil e entidades como a UNE, mas também nos movimentos de docentes e servidores e na própria SBPC.”
Para Cortesão, o Brasil sofre a implementação de uma agenda que não foi eleita, “a partir de um golpe de mão que foi dado” e diz que o que vemos hoje é um ataque enorme sobre a própria democracia liberal no país. “Até alguns anos atrás tínhamos um sentimento de concertação da democracia brasileira, que vinha desde a luta pela redemocratização do país, a luta pela anistia e a derrocada do regime militar. Até o afastamento de Dilma, o Brasil vivia o que parecia ser uma democracia consolidada e reconhecida internacionalmente”, diz. Segundo o consultor, é preciso organizar a resistência, pois há, não só na universidade, mas em toda a sociedade, um sentimento de imobilismo: “O campo progressista tem hoje dificuldade de interlocução com os setores mobilizados”, diz.
Resistir e lutar
Tanto Cortesão quanto Pansera, no entanto, ressaltam a capacidade da Uerj de resistir e lutar: “A verdade é que a universidade acaba sobrevivendo e resistindo, mas em condições muito mais duras. Nas décadas de 80 e 90 conseguimos um certo fortalecimento da universidade pública, tendência que foi bastante impulsionada no período Lula, quando as universidades tiveram um enorme estímulo, e agora a gente vê essa situação crítica que faz com que a Uerj esteja em uma situação calamitosa como nunca antes vista. Eu acredito muito na capacidade de resistência da Uerj, e vamos ver o que vem por aí em 2018”, diz.
Cortesão relembra o ano de 1985, quando foi criado o movimento SOS Uerj e aconteceu uma greve muito grande: “Naquela época, a gente a cada ano via uma crise anunciada que apontava para o desmonte da universidade brasileira. Foi preciso muita luta para impedir isso. Voltar a viver essa realidade é um lamentável retrocesso”.
Pansera segue na mesma linha: “Não acredito que vamos perder a Uerj porque ela sempre resistiu de uma forma muito brava. Ela resistiu a uma tentativa dura de corte em seu orçamento no tempo do governo Marcello Alencar (PSDB). No final do segundo governo de Leonel Brizola (PDT) houve também a ameaça de um corte muito duro, e a Uerj reagiu bem, com mobilizações e greves que defenderam a universidade. Agora, espero, não será diferente”, completa Pansera.
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Foto: Anped
Não há dinheiro para manter uma rede de universidade pública, totalmente financiada pelo Estado. A discussão da saída já deveria ter começado há uns dez anos. Demagogia e populismo não paga contas.