Enem e Direitos Humanos: Você sabe diferenciar opinião e discurso de ódio?, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, confirmou a decisão do Tribunal Regional Federal da 1a Região e manteve o entendimento de que a redação no Enem não pode deixar de ser corrigida se desrespeitar os direitos humanos.

A discussão, que começou com ação na Justiça protocolada por um grupo fundamentalista de extrema direita, está longe de acabar. Até porque o candidato ainda pode receber zero dependendo da qualidade da argumentação utilizada. E, convenhamos, ir contra a efetivação dos direitos humanos demanda um belo malabarismo de ideias e palavras. Mas creio que vale uma sugestão de reflexão para quem vai fazer a prova, neste domingo (5), ou mesmo para quem se preocupa com a vida em sociedade. O tema é recorrente aqui no blog, então vou sintetizar ideias que já publiquei por aqui.

O direito ao livre exercício de pensamento e o direito à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição Federal e por tratados internacionais que o país assinou. E, da mesma forma, as pessoas têm o direito a ter suas integridades física e psicológica respeitadas. Ou seja, temos que encontrar o equilíbrio entre o direito a ter opinião e o direito a ver garantida a dignidade.

Nessa balança, deve-se considerar que a liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto. Porque não há direitos fundamentais absolutos. Nem o direito à vida é. Prova disso é o direito à legítima defesa. Porque, a partir do momento em que alguém abusa de sua liberdade de expressão, espalhando o ódio e incitando à violência contra outro grupo, isso pode trazer consequências mais graves à vida de outras pessoas.

Alguns políticos, padres, pastores e comunicadores dizem que não incitam a violência. Não é a mão deles que segura a faca, o revólver ou a tocha, mas é a sobreposição de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna o ato de esfaquear, atirar e atacar banais. Ou, melhor dizendo, “necessários”, quase um pedido do céu. São pessoas assim que alimentam lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo.

A liberdade de expressão não admite censura prévia. Concordo com a ministra Cármen Lúcia quando ela toca no assunto, pois a lei garante que as pessoas não sejam proibidas de dizer o que pensam. Quem quiser escreve, pode escrever.

Contudo, há o outro lado da moeda: as pessoas são sim responsáveis pelo impacto de suas opiniões. Como é o caso de dirigir a um grupo específico um sentimento de ódio, propondo a restrição de seus direitos e até sua extirpação social.

E toda pessoa que emitir um discurso de ódio está sujeita a sofrer as consequências trazidas pelo Estado ou pela própria sociedade: pagar uma indenização, ir para a cadeia, perder o emprego, ter sua candidatura cassada, não ser selecionado em um concurso ou ter uma nota baixa em uma prova. Afinal, o exercício das liberdades pressupõe responsabilidade. Quem não consegue conviver com isso, não deveria nem fazer parte do debate público, recolhendo-se junto com sua raiva e ódio ao seu cantinho.

Como você expõe sua opinião? Privilegiando o diálogo de diferentes e buscando uma convivência pacífica ou conclamando as pessoas, com base no medo e na desinformação, para desrespeitar ainda mais aqueles vistos como diferentes?

Muitos interpretam opiniões com críticas feitas por terceiros como discursos de ódio. E, ao mesmo tempo, acreditam que os discursos de ódio que eles mesmos proferem são apenas críticas e opiniões. Ou seja, ódio é tudo aquilo com o qual não concordam.

Sei que a discussão é complexa porque há uma carga grande de subjetividade e relatividade que envolvem pontos de vista e lugares de fala. Já tratei aqui uma pancada de vezes sobre a difícil caminhada para aceitarmos o outro ao invés de querermos arrancar seus olhos, fritar seu fígado em óleo quente e usar seus órgãos genitais como isca para peixe. A gradação dos limites e balizas varia de acordo com cada sociedade, levando em conta seu caldo cultural e sua experiência social. Além disso,  somos seres racionais – pelo menos o bastante para não encarar qualquer contestação às nossas opiniões ou ao nosso modo de vida como um ataque à dignidade da humanidade e o armagedom.

Cada pessoa que duvida de todos os discursos (inclusive deste que vos escreve), não se deixa enganar pelos que provocam sem sujar as mãos e ouve as razões dos que pensam e vivem de uma maneira diferente sem achar que eles são a representação do mal certamente tem mais facilidade de identificar o que é ódio e o que é opinião.

Porque consegue se colocar no lugar das pessoas que são alvo da agressão e entende que não estamos falando de criar grupos imunes a críticas, mas de evitar que grupos sejam mortos ou violentados nesse processo.

Por fim, um comentário sobre os direitos humanos.

O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos para tentar evitar que esses horrores se repetissem. De certa forma, com o mesmo objetivo, o Brasil, ainda olhando para as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever a Constituição Federal de 1988 – que não é um documento perfeito, longe disso. Mas, com todos seus defeitos, ousa proteger a dignidade e a liberdade de uma forma que se hoje sentássemos para formula-lo, não conseguiríamos.

É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que o sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos uma guerra como aquela guerra entre 1939 e 1945, muito menos um período de exceção quanto 1964 e 1985. Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.

Minha geração herdou esses textos – um de nossos avós e outro de nossos pais. Agora, temos que lutar para que eles sejam respeitados e, ao mesmo tempo, assumir a dura tarefa de dialogar com a geração de nossos filhos para que eles não acreditem em discursos falsos que dizem que vivemos uma ”ditadura dos direitos humanos”. Ou do ”politicamente correto”, que é como muitos opositores à dignidade humana chamam os ”direitos humanos”.

O problema é que uma parte da geração que ajudou a escrever a Declaração Universal bem como a Constituição de 1988 se esqueceu por completo dos debates que levaram até elas, em nome do poder. E outra parte, que rangeu os dentes quando o Brasil deixou de ser uma ditadura, agora grita por sua liberdade para oprimir outras pessoas – usando uma distorção dos direitos garantidos pela democracia para ferir de morte a própria.

O mundo está em convulsão, com guerras, ataques terroristas, crises migratórias, catástrofes ambientais. E o Brasil passa por um período sombrio, com um Palácio do Planalto castrador de direitos e o pior Congresso Nacional de todos os tempos  – que está aprovando leis que retiram, à luz do dia, direitos de trabalhadores, mulheres, populações tradicionais, minorias.

Contudo, é exatamente nestes momentos que precisamos nos lembrar da caminhada que nos trouxe até aqui. Para ter a clareza de que, mais importante do que reinventar todas as regras, é tirar do papel, pela primeira vez, a sociedade que um dia imaginamos frente aos horrores da guerra ou da ditadura. O que só se fará com muito diálogo e a garantia desse quinhão mínimo de dignidade que todos têm direito por nascerem humanos.

Diz o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos: ”Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

Ou acordamos e decidimos agir pela dignidade humana – que vai desde o direito de ter uma fé e professa-la, até o direito de ter um teto, de não morrer de fome, de não ser escravo, de poder pensar e falar livremente, de não ser perseguido e morto pela sociedade ou pelo Estado, de não ser molestado por sua orientação sexual, identidade, origem ou cor de pele – ou passaremos as próximas décadas rangendo os dentes e fazendo músicas sobre o quão linda era liberdade que um dia conquistamos e depois deixamos escapar.

E mudanças profundas podem começar de várias formas. Como uma simples prova de redação, em uma tarde de domingo.

Museu Rodin, Paris. Foto: Tania Pacheco

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