Esquerda e direita disputam regimes de verdade. Entrevista especial com Rosana Pinheiro-Machado

Por Patricia Fachin, na IHU On-Line

As disputas entre direita e esquerda vão além do campo econômico, e hoje os dois espectros políticos disputam “padrões de verdade”, diz a socióloga Rosana Pinheiro-Machado à IHU On-Line. Segundo ela, “o que nós estamos assistindo hoje no mundo é uma disputa por regimes de verdade, no sentido foucaultiano, ou seja, grandes padrões de verdades, noções de civilização, globalização, universalismo, direitos humanos etc. que estão sendo disputados. É o cerne de grandes debates ocidentais que estão sendo disputados pela direita, algo bastante grandioso e que mexe com valores e noções que vinham se sedimentando por muito tempo”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a socióloga comenta como a esquerda e a direita estão se movendo para disputar essas verdades. “A esquerda, por seu turno, está perdida e reativa. E veja que ironia: sempre foi papel da esquerda questionar a globalização e a universalidade (o imperialismo) dos valores burgueses dos direitos humanos. É a direita que está fazendo, pelos meios errados (para retroceder e não para avançar), o debate que nós deveríamos estar fazendo”, diz.

Rosana Pinheiro-Machado também avalia a situação da esquerda brasileira e afirma que ela “perdeu sua base popular e no lugar dela entrou o mercado, as igrejas e o tráfico”. É por isso, avalia, que quando a esquerda partidária perdeu as últimas eleições municipais, “saiu correndo atrás de materiais, pesquisa e debates para entender ‘os pobres’, pesquisar os ‘pobres’. Quem está atuando na base não precisa encomendar pesquisa de mercado para entender o papel da religião, por exemplo. Então, eu critico a forma utilitária — muito semelhante à da direita — como os ‘pobres’ são acionados em determinados momentos de campanha. Na esquerda tradicional, o povo continua sendo objeto de intervenção, e não sujeito”.

Rosana Pinheiro-Machado é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutora em Antropologia Social pela mesma universidade. Foi professora de Desenvolvimento Internacional na Universidade de Oxford de 2013 a 2016. Atualmente é professora visitante no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP.

Confira a entrevista.

Foto: Canal Brasil

IHU On-Line – Em artigo recente você disse que hoje há uma luta por “novas ou antigas fontes de conhecimento”, e que esse espaço tem sido disputado pela esquerda e pela direita. Como esquerda e direita têm se manifestado nessa disputa e quais são as pautas que cada lado tem defendido?

Rosana Pinheiro-Machado – Eu tenho partido da premissa de que o que nós estamos assistindo hoje no mundo é uma disputa por regimes de verdade, no sentido foucaultiano, ou seja, grandes padrões de verdades, noções de civilização, globalização, universalismo, direitos humanos etc. que estão sendo disputados. É o cerne de grandes debates ocidentais que estão sendo disputados pela direita, algo bastante grandioso e que mexe com valores e noções que vinham se sedimentando por muito tempo. A direitanão está apenas disputando regimes econômicos, mas também regimes de humanidade. Isso significa fortemente entrar em disputa nas ciências humanas como um todo nas escolas (e isso não ocorre apenas no Brasil, a Inglaterra também revê o papel das humanidades nos currículos escolares, por exemplo).

Essa mudança nos retira de um lugar cômodo que achávamos que tínhamos conquistado — o consenso mínimo de direitos humanos. As pessoas tendem a achar que a guerra às ciências humanas é simplesmente uma guerra econômica que visa à criação de máquinas acríticas boas para o trabalho. Eu penso que é isso também, mas mais que isso: é de fato rever valores mais amplos sociais, como o papel da mulher, dos fluxos migratórios etc.

A direita, no mundo todo, entendeu que, para tanto, precisa enfrentar certos temas espinhosos, ocupar revistas científicas de ponta e mídias sociais. Ela está aprendendo logo a fazer isso, ainda que não se possa dizer que tenha um plano claro, mas eles têm direção — o que a esquerda não tem. A esquerda, por seu turno, está perdida e reativa. E veja que ironia: sempre foi papel da esquerda questionar a globalização e a universalidade (o imperialismo) dos valores burgueses dos direitos humanos. É a direita quem está fazendo, pelos meios errados (para retroceder e não para avançar), o debate que nós deveríamos estar fazendo.

Esse é um ótimo momento, portanto, para repensar não apenas projeto e direção, mas igualmente disputar esse cerne do conhecimento ao qual eu me refiro: repensar que tipo de globalização, que tipo de multipolaridade, que tipo de emergência no sistema mundial e que tipo de direitos humanos queremos

esquerda fez esses debates em círculos fechados, acomodou-se com o espaço que ganhou no mainstream intelectual burguês — e também com a máquina governamental quando a teve — e agora se vê obrigada a ser a guardiã dos direitos humanos e da globalização. Fazemos isso de forma reativa, sem projeto e sem direção. Esse é um ótimo momento, portanto, para repensar não apenas projeto e direção, mas igualmente disputar esse cerne do conhecimento ao qual eu me refiro: repensar que tipo de globalização, que tipo de multipolaridade, que tipo de emergência no sistema mundial e que tipo de direitos humanos queremos. E uma vez que essa autorreflexão seja encabeçada, é preciso não apenas disputar regimes de verdades nos antigos canais, mas criar novos canais para falar para a juventude que hoje, no Brasil e no mundo, está muito mais à mercê da máquina comunicativa dos conservadores.

IHU On-Line – Como você caracteriza o que tem sido chamado de a nova direita, que está se constituindo no Brasil?

Rosana Pinheiro-Machado – É um pot-pourri que reúne ultraconservadores no plano moral e neoliberais no plano econômico — mas nada liberal no sentido clássico. Isso significa dizer que é um pacto — ainda não bem definido e conjugado — das forças mais retrógradas do Brasil. Moralmente, a força das igrejas. Economicamente, a força de quem tem mais dinheiro e terra. Politicamente, a força das dinastias políticas entranhadas no poder. Nada muito novo: o Estado é a garantia que o neoliberalismoprecisa do Estado para funcionar (e não há contradição nisso não). Quem sempre sugou da máquina governamental foram as elites, e hoje não é muito diferente. A diferença é que agora existem jovens animadores de torcida que começaram com uma pauta muito popular e legítima, que é a corrupção e também com o discurso do liberalismo, mas eles logo perceberam que os apelos antiliberais e conservadores — as pautas morais — são muito mais populares. E, claro, tudo isso com uma pitada de saudosismo militar e apelo às armas.

IHU On-Line – O que significa dizer que a nova direita não é anti-intelectual, mas é antielite intelectual?

A direita mantém seus intelectuais e sabe que é importante disputar espaços de conhecimento. Portanto, ela é basicamente contra uma elite progressista que está na Rede Globo, na Folha de São Paulo e no New York Times. Ela é abaixo tudo

Rosana Pinheiro-Machado – Significa dizer que ela mantém seus intelectuais e sabe que é importante disputar espaços de conhecimento. Portanto, ela é basicamente contra uma elite progressista que está na Rede Globo, na Folha de São Paulo e no New York Times. Ela é abaixo tudo, como bem disse Pablo Ortellado (Universidade de São Paulo) recentemente, em sua coluna naFolha de São Paulo. Ele comenta que a direita se percebe hoje como antissistêmica (veja que ironia, novamente). E era a esquerda que sempre esteve nessa posição. Portanto, a reconstrução da esquerda passa por reflexões profundas que não são apenas de estratégia e de projeto, mas também de identidade, por ocupar um lugar no sistema de lutas e de poder que nunca ocupou. A direita acusa a “geração de 68” de ocupar o mainstream intelectual — as universidades, os meios de comunicação etc.

Os neoconservadores veem “comunismo” espalhado por tudo. Espalhar que o terror comunista está implantado em todos os lugares é muito inteligente, porque motiva a partir do ódio e do medo. Táticas terroristas que funcionam de forma visceral e apaixonada. O que os neoconservadores estão chamando de comunismo intelectual é nada mais nada menos do que um espaço conquistado pelo campo progressista, um espaço para colocar pautas liberais e progressistas, na segunda metade do século XX. Uma grande parte da esquerda deixou de disputar grandes projetos e aceitou certo pacto reformista do final do milênio. Veja bem, não me refiro de forma alguma a toda a esquerda (é possível livrar vários grupos no Brasil e no mundo dessa crítica, como os movimentos por justiça global e antiausteridade, por exemplo), mas a uma parte importante que aceitou o pacto burguês no reformismo liberal.

IHU On-Line – Qual diria que é o projeto intelectual dos neoconservadores e em que aspectos ele se diferencia do que seria um projeto à esquerda? Quais são, na sua avaliação, as disputas na agenda econômica do século XXI entre neoliberais e progressistas?

Uma grande parte da esquerda deixou de disputar grandes projetos e aceitou certo pacto reformista do final do milênio

Rosana Pinheiro-Machado – Depende. Isso varia de país para país. Na Europa e nos Estados Unidos, há uma tendência a rever os preceitos da globalização, a livre circulação, do cosmopolitismo e da igualdade dos direitos humanos, tudo isso com uma mistura de agenda neoliberal em que a globalização só serve para determinados interesses. No Brasil, ainda é um campo se formando, e poucas e confusas referências intelectuais. Os neoconservadores ainda surfam muito no experimento do que é popular. Mas é claro que existe uma agenda neoliberal de aprovar medidas de restrição do Estado para o povo — aqui e acolá.

A esquerda hoje não tem um projeto, vive uma crise de sentido profundo, está lutando reativamente entre a defesa pela dignidade dos mais vulneráveis, a defesa do estado de direito e a sua própria reconstrução na era pós-PT.

No campo econômico e governamental, a diferença entre esquerda e direita tornou-se uma diferença de nuance não de grandes projetos econômicos. Afinal, entra e sai governo, segue o Meirelles. Isso significa dizer que hoje temos grupos interessados em passar reformas neoliberais  — austeridade,  previdência  e trabalhista — a toque de caixa, enquanto o governo do PT estaria negociando cortes e pautas, mas de uma maneira mais popular, democrática e negociando com a base. Isso não significa que não estivesse tocando essas agendas, mas que isso seria feito com mais tempo, debate e certamente mais dificuldade para aprovar tudo. E é claro que existia uma preocupação, por parte do PT, em manter na sua agenda social, de mobilidade, de inclusão financeira e redução da pobreza — pautas muitas delas liberais e incentivadas pelo Banco Mundial, mas que exerciam papel fundamental para garantir o acesso a instituições e a ampliação de direitos dos grupos marginalizados brasileiros. São essas políticas públicas — amplamente aprovadas pelo sistema financeiro e setor privado, como o FIES — que serão lidas como pautas comunistas, excludentes e indenitárias pelos neoconservadores.

IHU On-Line – Depois da crise envolvendo o PT, muitos têm chamado atenção para a crise da esquerda de forma geral. Quais diria que são hoje as razões da crise da esquerda brasileira?

Rosana Pinheiro-Machado – A questão de fundo maior foi que o maior movimento social da América Latina se transformou em governo, em doze anos de governo, e todos os problemas vinculados à governabilidade que vêm junto. Você transforma movimento e militância em sistema e com isso se afasta do trabalho de base, da politização cotidiana. Além é claro do giro do “orçamento participativo” para o “Bolsa Família” que, apesar de muito importante, despolitiza e financeiriza a base popular. A política, em grande medida, passa a ser a pequena política: a luta constante para manter a máquina para garantir as poucas conquistas concedidas em meio à governabilidade. E é um círculo vicioso. Desmoronado o governo, as esquerdas encontram-se entre um rearranjo de apoio ao PT e à candidatura de Lula e à formação de novos, radicais e independentes grupos de esquerda. E de tudo isso nasce a constatação de que nenhum nome ou força nova está sendo investida pelos partidos tradicionais de esquerda. Todos querendo eleger os seus, enquanto os movimentos feministasnegros e LGBTs, que desabrocharam no Brasil pós-Junho, estão pulsando nas ruas, nos jovens e nas novas formas de articulação via redes. Mas essas novas forças são ignoradas, quando não temidas. E quando olha para elas é para emparelhar.

A esquerda tradicional teme tanto os neoconservadores quanto as forças feministas e antirracistas espontâneas, autônomas e juvenis que emergem dos novíssimos movimentos

Há, ainda, uma outra crise, que deriva dessa incapacidade de enxergar o que vem de novo no pós-Junho: a incapacidade de uma grande parte da esquerda tradicional de rever a composição racial e de gênero de seus quadros. Em quem Lula está investindo? Já existem nomes hoje simpatizantes do PT que possuem uma base popular impressionante e espontânea. Mas muitos partidos estão mais interessados em reproduzir antigos nomes e antigos cargos. Vão perder o rumo da história.

IHU On-Line – Em um outro artigo recente, você disse que a “disputa narrativa sobre os pobres é intelectualmente desestimulante, academicamente perigosa, politicamente ardilosa e socialmente ineficaz”. Como, na sua avaliação, a situação econômica e social desse estrato da sociedade tem sido abordada pelos intelectuais e pelos partidos? O que seria uma abordagem legítima dessa questão, especialmente considerando a situação brasileira?

A esquerda partidária hoje se relaciona com o povo de forma patética: quando perdeu as eleições municipais, saiu correndo atrás de materiais, pesquisa e debates para entender “os pobres”, pesquisar os “pobres”. Quem está atuando na base não precisa encomendar pesquisa de mercado para entender o papel da religião, por exemplo

Rosana Pinheiro-Machado – Esse estrato não está sendo disputado — da maneira como deveria ser disputado na política cotidiana — pela esquerda tradicional de partidos. Está sendo disputado como objeto de estudo. Reproduzindo os mesmos erros do projeto colonial ocidental. A esquerda tradicional perdeu sua base popular e no lugar dela entrou o mercado, as igrejas e o tráfico (não necessariamente assim tão mecanicamente). A esquerda partidária hoje se relaciona com o povo de forma patética: quando perdeu as eleições municipais, saiu correndo atrás de materiais, pesquisa e debates para entender “os pobres”, pesquisar os “pobres”. Quem está atuando na base não precisa encomendar pesquisa de mercado para entender o papel da religião, por exemplo. Então, eu critico a forma utilitária — muito semelhante à da direita — como os “pobres” são acionados em determinados momentos de campanha. Na esquerda tradicional, o povo continua sendo objeto de intervenção, e não sujeito. Sobre a esquerda partidária, essa é apenas a própria constatação de sua falta de projeto; sem projeto não precisa atuar na base, sem projeto a base é apenas para eleição.

Mas há muito vindo e sendo feito nas periferias, nos coletivos de quebradas, nas escolas públicas. Mas essa é uma força que ainda a gente não consegue mensurar, mas é potente e transformadora. A esquerda, intelectual, partidária geralmente masculina e branca precisa fazer o que tenho chamado de “se periferizar”, que não é fazer um uso pragmático do povo, nem querer entender o povo, mas ser o próprio povo, entender as forças emergentes e, principalmente, não temê-las. A esquerda tradicional teme tanto os neoconservadores quanto as forças feministas e antirracistas espontâneas, autônomas e juvenis que emergem dos novíssimos movimentos.

Foto: Canal Brasil

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