‘A casa é derrubada, Maria da Penha não’: a permanência da memória na Vila Autódromo

Por Luisa Fenizola, no Rio On Watch

“A casa é derrubada, Maria da Penha não.” Foi com essa frase, repetida inúmeras vezes em um vídeo projetado na parede da Casa de Estudos Urbanos, que iniciou-se a fala pública sobre o projeto Céu Aberto na última terça-feira, dia 7 de novembro, denotando que a memória da Vila Autódromo vive nos corpos e na luta de seus moradores, dos quais Maria da Penha talvez seja a mais ilustre. Desenvolvido pelos moradores da Vila Autódromo juntamente a um grupo de artistas, arquitetos, pesquisadores e curadores, o projeto Céu Aberto faz parte de uma iniciativa desenvolvida pelo Instituto Goethe em seis cidades da América Latina chamada O Futuro da Memória. A iniciativa busca articular a memória aos processos históricos de violência do Estado, conflitos armados e movimentos de resistência social, buscando disputar as narrativas oficiais e contribuir para as lutas locais.

“A luta não acabou. A Vila formava uma grande família que infelizmente foi dividida. Mas conseguimos nos reerguer e formar uma nova família com todos os apoiadores. E agora é hora de honrar a luta de cada morador que lutou pela comunidade e cada apoiador. Aqui tudo foi sempre feito no amor e de forma coletiva. Quando realizamos um protesto interrompendo o trânsito, pensamos em como podíamos tornar a situação mais agradável para quem não tinha nada a ver com isso. A gente fez um café da manhã pra servir, explicando a causa, por que a gente estava incomodando, e teve uma troca muito legal. Um protesto com um cafezinho e um biscoitinho arranca um sorriso. É uma luta com amor, com alegria”, resumiu Maria da Penha.

A partir de oficinas realizadas com os moradores para estimular a recuperação de símbolos e lembranças, para entender as projeções e vontades para aquele espaço urbano e para estimular a expressão corporal, foram desenvolvidas intervenções artísticas e urbanas na comunidade. As intervenções integram o Museu das Remoções, um museu a céu aberto que se aproveita dos restos de casas demolidas e dejetos de obras abandonadas para contar a história daqueles que não são tradicionalmente lembrados na historiografia oficial. É um museu que tem sede, mas que ocorre também fora das paredes dela, na rua, no resto, no corpo e na voz de cada morador e apoiador da luta.

Um resultado das oficinas foi a recuperação da lembrança de uma bandeira do Brasil que, em um episódio em que a prefeitura entendeu a presença da bandeira durante uma festa de aniversário na comunidade como um protesto, foi ordenada a ser retirada. A bandeira, que antes não tinha um simbolismo maior para os moradores do que para qualquer outro brasileiro, tornou-se um elemento de resistência. Assim, foram produzidas várias bandeiras, que hoje servem a dupla função de concretizar a memória e realizar uma função estética de visibilidade, de sinalizar para os motoristas que passam pelas vias expressas que a circundam a existência de uma comunidade, hoje pequena e quase invisibilizada no meio do concreto do seu entorno. A ideia inicial era apenas colocar uma placa que servisse o propósito de sinalizar a existência da Vila para quem passasse, mas a partir das oficinas participativas percebeu-se que haviam outros espaços simbólicos a serem disputados.

Outra dimensão importante do projeto foi a retomada dos espaços públicos negados pela intervenção da prefeitura, que desarticulou a área de lazer das crianças, reduziu a área verde e acabou com as esquinas da comunidade, entendidas como espaço de encontro, ao transformá-la em uma única rua. Para isso, dentro do orçamento disponível, optou-se pela confecção de uma churrasqueira portátil como mobiliário urbano que permitisse a retomada desse espaço público, especialmente simbólica pelo histórico de churrascos coletivos promovidos nos eventos de ocupação cultural e resistência da comunidade, e pela construção de uma praça. A opção por construir uma praça com pedras refletiu uma reivindicação vocalizada por Sandra Maria, uma das líderes da resistência na comunidade, na época, de que mesmo que a verba fosse pouca, os moradores não queriam mais nada provisório, queriam algo fixo, que permanecesse no ambiente.

Houve ainda a realização de uma cartografia do acervo de imagens construído pelo Luiz Cláudio Silva, morador e documentarista ativista, como ele foi definido pelos participantes do projeto. Ao examinarem as milhares de fotografias que documentavam o processo de luta e também as alegrias, e tentarem mapear a lógica de sua organização, perceberam que elas estavam organizadas em pastas que levavam o nome do evento em que foram tirados, do aniversariante da festa, de uma data simbólica, de um elemento que distingue a comunidade das outras, de um morador específico. Assim, chegaram à conclusão que o elemento orientador dessa catalogação era o afeto e chamaram-na de uma cartografia afetiva.

“Por mais de um ano eu ganhei a presença dessas novas pessoas na comunidade e foi encantador. O projeto foi feito no amor. Criamos um grande laço, que não tem preço: do carinho, da fraternidade, da compaixão, do entendimento, do abraço, da partilha. A gente aprende um pouco de arquitetura, de arte, de música. É uma grande troca. Espero que esse trabalho continue em outras comunidades e lhes dê voz e que a gente possa continuar trabalhando em coletivo e crescendo essa grande família”, disse Maria da Penha. Essas visitas e conversas foram compiladas em uma publicação-glossário intitulada “vocabulários em movimento /\ vidas em resistência“.

Os moradores remanescentes da Vila Autódromo ainda resistem. Essa resistência está fortemente marcada no plano simbólico da memória. Memória para não esquecer das centenas de famílias que se foram, das casas que foram demolidas, de um histórico de ameaças de remoções que remonta à 1992 e do processo de resistência ao ciclo Olímpico de remoções que durou cerca de seis anos. “Nossa história, nossos direitos, nossa moradia não têm preço. Nem todos conseguiram ficar, porque a luta é muito cruel, muito desigual, muito desgastante. Eu lutei e nunca foi com ódio. Foi difícil, mas eu não saí. Continuo aqui firme e forte. Ô baixinha abusada, né?”, disse Maria da Penha com o seu característico bom humor.

 

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