Patricia Fachin – IHU On-Line
O estudo do Banco Mundial que aponta para a existência de 45,5 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza no Brasil, o que representa 22% dos brasileiros, demonstra “quão significativa ainda é a pobreza de renda entre nós”, comenta a socióloga Celia Lessa Kerstenetzky, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Embora o Brasil tenha avançado significativamente na primeira década do século XXI, especialmente em relação à distribuição de renda e à redução da pobreza e da pobreza extrema, a socióloga frisa que “se deixarmos de lado o topo da distribuição e olharmos para o pessoal abaixo, constataremos uma enorme desigualdade entre 98% dos brasileiros, e ela resulta de vários fatores como desigualdade de acesso à riqueza e oportunidades, como por exemplo, educação, empregos de qualidade, conexões”. Na avaliação dela, apesar dos avanços conquistados na área social nos últimos anos, “faltou atenção aos serviços sociais públicos (saúde, educação ao longo de toda a vida, cuidados, políticas ativas de mercado de trabalho) e à justiça fiscal, fonte potencial de recursos para o financiamento dessas políticas”.
Na entrevista a seguir, além de fazer uma análise da conjuntura social do país e do impacto da tributação na redistribuição social, Celia frisa que quando se trata de serviços sociais, é preciso distinguir o que são políticas estratégicas e o que é uma situação de crise como a que o Brasil enfrenta. “Acho que devemos separar a conjuntura de crise, com seu manejo específico, de políticas estratégicas. Em conjuntura de crise, faz-se intervenção de crise. Em recessões, espera-se que os governos protejam os grupos mais vulneráveis e os serviços cruciais realocando gastos e buscando receitas. Gastos dirigidos a necessidades sociais, receitas extraídas de quem tem posses, seriam uma boa oportunidade para cobrar dívidas bilionárias com a previdência, multas e outras receitas potenciais, que, ignoradas, beneficiam as empresas e os mais ricos. Seria ainda uma boa oportunidade para introduzir progressividade na tributação, por exemplo, suspendendo as isenções de impostos sobre os dividendos distribuídos aos acionistas”, sugere.
Contudo, adverte, “esse governo usa o argumento da crise não apenas para cortar gastos sociais imediatamente, como para golpear de morte a capacidade do estado de traçar políticas de longo prazo para lidar com seriedade com a questão social. Esse foi o significado dramático da emenda do teto do gasto público que vai diminuir o investimento social no Brasil ao longo do tempo”.
Celia não aposta na renda básica de cidadania como uma proposta para enfrentar as desigualdades sociais. “Como solução para os problemas sociais atuais, acho limitada, sobretudo se representar uma redistribuição que substituirá as demais formas de redistribuição e gastos sociais correntes incorridos pelo Estado. O foco exclusivo na renda é equivocado, a meu ver. (…) Acho também que a regulação do mercado de trabalho continua sendo uma ferramenta importante — e viável: a experiência brasileira na primeira década deste século mostrou que empregos formais e bons salários, a partir de um salário mínimo estatutário, estimulam o consumo e impulsionam o crescimento”, defende.
Celia Lessa Kerstenetzky é doutora em Ciências Políticas e Sociais pelo European University Institute e pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, mestra em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e graduada em Economia pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Foi pesquisadora visitante na Columbia University, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts – MIT, na Universidade de Illinois e na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, e professora visitante na Universidade de Siena, na Itália. Atualmente leciona no Instituto de Economia da UFRJ e coordena o Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento – CEDE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Segundo estudo recente realizado pelo Banco Mundial, atualmente o Brasil tem 45,5 milhões de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza, ou seja, 22% da população que vive com menos de 5,50 dólares por dia. Como devemos analisar esse dado? Qual é o significado desse percentual, considerando a realidade brasileira?
Celia Lessa Kerstenetzky – Creio que esse seja um patamar realista para falarmos em pobreza no Brasil, certamente mais realista do que a linha de pobreza de 1 dólar e 25 centavos ou de 1 dólar e 90 centavos até então adotada pelo Banco Mundial. Essa incidência de 22% da população mostra quão significativa ainda é a pobreza de rendaentre nós. Mas, se levarmos em conta os gastos que famílias pobres têm no Brasil, comparado a países com boa provisão pública de bens e serviços, a pobreza é ainda mais profunda.
IHU On-Line – Nos últimos anos, o Brasil tirou mais de 30 milhões de brasileiros da pobreza. Considerando os dados do estudo realizado pelo Banco Mundial, como avalia as políticas adotadas no país para enfrentar a pobreza e as desigualdades? Elas tiveram limites? Em que sentido?
Celia Lessa Kerstenetzky – É inegável que o Brasil avançou muito, na primeira década do século XXI, na redução da pobreza e da pobreza extrema. Mais do que em qualquer outra década desde 1976, incluindo a redução ocorrida no Plano Real. Também avançamos muito na redução das desigualdades, sobretudo da renda do trabalho (salários, aposentadorias e pensões). Políticas sociais como a valorização do salário mínimo, aposentadoria rural e programas de renda para os pobres foram cruciais. A política de salário mínimo foi de longe a mais importante para o declínio da desigualdade, mas também contribuiu bastante para a redução da pobreza.
Claro que faltou fazer coisas importantes como a expansão de serviços sociais universais, como saúde e educação. Quem sofreu particularmente com isso, além dos mais empobrecidos que encontram desde sempre serviços insuficientes e inadequados, foram aqueles que melhoraram de renda com a melhoria do mercado de trabalho e tiveram que despender esses ganhos comprando serviços de educação e saúde de qualidade duvidosa no mercado. Outra lacuna foi a completa desatenção à necessidade de dotar nosso sistema tributário de princípios básicos de justiça fiscal, com maior incidência de impostos sobre a renda e impostos progressivos sobre rendimentos de capital.
IHU On-Line – Ainda sobre a relação entre políticas sociais e justiça social, como as políticas sociais deveriam ser elaboradas para de fato garantir a justiça social?
Celia Lessa Kerstenetzky – Noções de justiça social são variadas. Mas, se igualdade social ou a eliminação de desigualdades sociais injustas estiverem no centro de nossa concepção de justiça, não parece haver dúvida, em função da experiência internacional, que os melhores sistemas de política social são aqueles que se apoiam em serviços universais, providos publicamente sem qualquer discriminação, com seguridade social abrangente, ampla cobertura de riscos sociais em um esquema solidário, e carga tributária progressiva. Esses sistemas estão muito à frente na redução das desigualdades.
IHU On-Line – Recentemente o governo brasileiro tem sido muito criticado por conta da redução dos gastos na área social. De outro lado, o governo argumenta que não tem receita para ampliar os gastos na área. O que seria uma saída para resolver esse impasse e garantir um estado de bem-estar social no país? Ainda nesse sentido, que serviços centrais deveriam fazer parte do estado de bem-estar social?
Celia Lessa Kerstenetzky – Acho que devemos separar a conjuntura de crise, com seu manejo específico, de políticas estratégicas. Em conjuntura de crise, faz-se intervenção de crise. Em recessões, espera-se que os governos protejam os grupos mais vulneráveis e os serviços cruciais realocando gastos e buscando receitas. Gastos dirigidos a necessidades sociais, receitas extraídas de quem tem posses, seriam uma boa oportunidade para cobrar dívidas bilionárias com a previdência, multas e outras receitas potenciais, que, ignoradas, beneficiam as empresas e os mais ricos. Seria ainda uma boa oportunidade para introduzir progressividade na tributação, por exemplo, suspendendo as isenções de impostos sobre os dividendos distribuídos aos acionistas. Contudo, esse governo usa o argumento da crise não apenas para cortar gastos sociais imediatamente, como para golpear de morte a capacidade do estado de traçar políticas de longo prazo para lidar com seriedade com a questão social. Esse foi o significado dramático da emenda do teto do gasto público que vai diminuir o investimento social no Brasil ao longo do tempo. Claro que com isto nos desviamos do projeto de construção de um estado do bem-estar efetivo, que inclusive contribuísse para a geração de renda e emprego e para o aumento da diminuta produtividade do trabalho no país.
IHU On-Line – Muitos pesquisadores têm atribuído à carga tributária brasileira a causa das desigualdades no país. Suas pesquisas sobre a carga tributária e a justiça distributiva no Brasil apontam para essa mesma direção? Quais diria que são as causas das desigualdades brasileiras?
Celia Lessa Kerstenetzky – A carga tributária brasileira é alta, mas muito concentrada em impostos sobre o consumo, que penalizam mais os mais pobres. Se o gasto social contribui para o equilíbrio social, a incidência dos tributos quase cancela esse avanço. Não apenas temos essa questão da incidência maior sobre os mais pobres, como temos a baixíssima progressividade do imposto de renda — na verdade a alíquota média cai com o aumento do rendimento no topo da distribuição. É evidente que isso é um fator para explicar a alta desigualdade brasileira. O 1% mais rico se apropria de algo entre 25 e 28% da renda nacional, aparentemente a maior concentração documentada em comparações internacionais. Mas, mesmo se deixarmos de lado o topo da distribuição e olharmos para o pessoal abaixo, constataremos uma enorme desigualdade entre 98% dos brasileiros, e ela resulta de vários fatores como desigualdade de acesso à riqueza e oportunidades, como por exemplo, educação, empregos de qualidade, conexões…
Enfim, nossas desigualdades resultam de injustiças passadas e presentes e de nossa inação para enfrentá-las, por indiferença, proteção de interesses, ou mesmo convicção de que “desigualdades não importam”. E é evidente que elas importam, pois se infiltram no sistema político e perpetuam os mecanismos que as engendram.
IHU On-Line – Quais são as dificuldades de fazer uma reforma tributária mais progressiva no Brasil? Que questões são fundamentais na discussão de uma possível reforma tributária? Ainda nesse sentido, que elementos não poderiam ficar de fora da reforma?
Celia Lessa Kerstenetzky – A reforma tributária será uma iniciativa do Executivo ou do Congresso Nacional e já sabemos que nenhum desses atores institucionais parece motivado pela questão da justiça fiscal. Uma razão é que seus membros pertencem ao grupo socioeconômico dos mais ricos, justamente aquele que se veria “prejudicado” por essa reforma. Claro que convicções morais poderiam conduzir a comportamento diferente: pense no bilionário americano Warren Buffett, que se declarou chocado ao saber que pagava menos impostos do que sua secretária. Contudo, não vimos nenhuma declaração do tipo na imprensa brasileira: se há convicções de justiça fiscal entre os nossos milionários e bilionários, eles as guardam para si.
Em uma pesquisa conduzida por uma mestranda da UFF [Universidade Federal Fluminense] e auditora fiscal, sob minha orientação e de um outro colega, observamos que entre os maiores rendimentos médios dos declarantes do imposto de renda, se encontrava um grupo seleto que também pagava as menores alíquotas médias, grupo este composto por presidentes de partidos políticos, de associações empresariais e empresários. A gigantesca bancada de proprietários rurais, bem como a forte representação de interesses empresariais no Congresso, constitui uma resistência capaz de bloquear essa iniciativa. Essa sobreposição de poder econômico e representação política no Brasil dificulta enormemente a adoção de impostos progressivos, os quais em outros países foram introduzidos sem maiores traumas. Mas é curioso que mesmo a coalizão de esquerda que nos governou recentemente sequer tentou mover a balança em direção a tributos progressivos. Exigências da grande aliança que se formou para avançar o progresso social possível neste país cansativamente conservador? Ou contágio de crenças econômicas neoliberais? Difícil dizer, mas certamente lamentável.
IHU On-Line – Quando se trata de enfrentar as desigualdades sociais, os pesquisadores apontam diversos caminhos, entre eles, a elaboração de um novo pacto social, tais como os que deram origem ao Estado de bem-estar social, que dê conta das mudanças do mundo contemporâneo. O que seria, na sua avaliação, uma forma adequada para enfrentar as desigualdades no Brasil, considerando a realidade do país?
Celia Lessa Kerstenetzky – Começamos a fazer algo nos governos do PT, principalmente no mercado de trabalho, e algo na seguridade. Do meu ponto de vista, faltou atenção aos serviços sociais públicos (saúde, educação ao longo de toda a vida, cuidados, políticas ativas de mercado de trabalho) e à justiça fiscal, fonte potencial de recursos para o financiamento dessas políticas. A questão da propriedade da terra e da herança social foi muito maltratada ou sequer considerada. Os serviços sociais têm um potencial gigantesco de promover equilíbrio social, porque expandem o bem-estar e a coesão social, equalizam oportunidades, geram empregos de qualidade e rendimentos seguros em mercados de trabalhos mais bem equilibrados, contribuem para aumentar a produtividade e promover justiça social. Hoje, isso é parte do conhecimento científico, codificado em farta literatura, da invenção política mais importante do século XX que é o estado social. Este só faz crescer mundo afora, e a perspectiva no Brasil de hoje é de retração.
IHU On-Line – Hoje, diante das crises econômicas que muitos países enfrentam, e das possíveis mudanças no mundo do trabalho, volta-se a discutir, em vários locais do mundo, a possibilidade de se distribuir uma renda mínima para a população. Como vê o retorno dessa proposta? Ela é adequada para os dias de hoje?
Celia Lessa Kerstenetzky – A renda básica de cidadania é uma proposta que acompanhou a modernidade e a teoria democrática moderna. Como solução para os problemas sociais atuais, acho limitada, sobretudo se representar uma redistribuiçãoque substituirá as demais formas de redistribuição e gastos sociais correntes incorridos pelo Estado. O foco exclusivo na renda é equivocado, a meu ver. Contudo, como parte integrante de um pacote abrangente de intervenções, pode ter o seu lugar — por exemplo, como remuneração aos membros de uma comunidade política pela utilização privada de recursos naturais ou outras formas novas de riqueza. Pode ser, por exemplo, uma forma de resolver a questão de como distribuir os benefícios do turismo e de uso de bens comuns (por exemplo, parques, sítios arqueológicos, novos recursos naturais explorados, riqueza cultural).
Como solução para empregos escassos e precários, me parece entregar os pontos cedo demais: em países menos desenvolvidos como o nosso, há um grande potencial de novos empregos a ser explorado justamente no setor de provisão de serviços sociais públicos. Ou seja, há uma enorme demanda insatisfeita por esses serviços que justificaria o investimento nele e a criação de novos empregos. Acho também que a regulação do mercado de trabalho continua sendo uma ferramenta importante — e viável: a experiência brasileira na primeira década deste século mostrou que empregos formais e bons salários, a partir de um salário mínimo estatutário, estimulam o consumo e impulsionam o crescimento.
IHU On-Line – Quais são as implicações da globalização financeira em termos de justiça social e como a globalização financeira também atinge a realidade brasileira?
Celia Lessa Kerstenetzky – Globalização financeira: liberdade para os fluxos de capitais internacionais; maior interdependência entre as economias nacionais e possibilidade de contágio em caso de crises financeiras. Brevemente, podemos mencionar duas implicações em termos de justiça social: o aumento da instabilidade sistêmica, que pode se traduzir, por exemplo, em súbita contração de crédito, seguida por diminuição do nível de atividade, emprego e renda das famílias, portanto, gerando riscos sociais agudos, como desemprego, pobreza, aumento das desigualdades.
Por outro lado, a busca por atrair capitais por parte dos governos nacionais tenderia a produzir uma “corrida para o fundo” em termos de tributação, o que diminuiria a capacidade dos governos de fazer frente aos novos riscos. Enquanto a primeira implicação parece inquestionável, e já justificaria a necessidade de re-regulamentação financeira, a segunda não. Não houve corrida para o fundo.
As cargas tributárias, nos países desenvolvidos, seguiram aumentando, e os gastos sociais com elas, mesmo que a participação dos impostos corporativos venha declinando em termos relativos. Ou seja, parece ainda possível financiar tributariamente a proteção da sociedade contra fortes choques de um modo compatível com investimento e crescimento econômico. No fundo, é que há vários determinantes dos investimentos; dentre eles, um ambiente econômico socialmente equilibrado em um país populoso como o nosso tem potencial para atrair investimentos, que se recuperarão em virtude de um mercado doméstico robusto e de uma força de trabalho produtiva. O que permanece evidente, aqui e em outros lugares do mundo, é a importância do estado social para a promoção dessas condições.