“A população do território hoje conhecido como Brasil em 1500 era, calcula-se, de mais de cinco milhões[2] de pessoas distribuídas por centenas de povos, com línguas, religiões, organizações sociais e jurídicas diferentes” (MARÉS, 2003, p. 49). Há mais de cinco séculos o latifúndio continua sendo a estrutura básica fundiária no Brasil e, ultimamente, sob a hegemonia do agronegócio, a luta pela terra necessita de crítica permanente, isso para diminuir, no mínimo, os riscos de perdurar e repetir ad infinitum a estrutura latifundiária, um dos fundamentos da sociedade do capital, “estruturalmente incapaz de dar solução às suas contradições” (MÉSZÁROS, 2007, p. 116).
Como pode o Brasil continuar desde 22 de abril de 1500, há 517 anos, sem fazer reforma agrária, sem democratizar o acesso à terra? “Desde o século XIX, com a ascensão da burguesia em vários países, foi a reforma do direito de propriedade e a democratização do acesso à propriedade, de maneira a abolir privilégios nele baseados, dinamizar o mercado e incrementar a igualdade jurídica que dinamizaram a economia capitalista e acentuaram o papel transformador do mercado” (MARTINS, 1999, p. 75).
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no livro anual que edita, desde 1979, Conflitos no Campo Brasil, nos últimos anos, as ocupações de terra tem acontecido em menor número, tanto na atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) quanto em outros movimentos camponeses, diante da avalanche do agronegócio e sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) no plano federal, que findou com o golpe parlamentar-jurídico e midiático de 31 de agosto de 2016. Depois de ter atingido 79065 famílias em ocupações no ano de 1999, iniciou-se um decréscimo no número de famílias que vão para ocupações no campo anualmente. Em 2004, tivemos 76.000 famílias e depois foi reduzindo o número até chegar a apenas 16.858 famílias no ano de 2010, apresentando de 2011 a 2014 pouco mais de 23 mil famílias por ano, em 2015 um ligeiro aumento com 32.927 famílias e, em 2016, em uma grande queda, foram para ocupações apenas 21.776 famílias sem-terra, o que é muito pouco em relação às 79.065 famílias do ano de 1999.
O número de conflitos agrários no Brasil tem sido muito alto desde o ano de 1500, com momentos de forte questionamento da ordem estabelecida da propriedade privada capitalista nas épocas das lutas camponesas de Canudos (1896-1897), do Contestado (1912-1916), de Trombas e Formoso (1950-1957) e das Ligas Camponesas (1955-1964). “De 1985 a 2014 contabilizou-se mais de 19 milhões de pessoas envolvidas em conflitos no campo brasileiro” (MATOS; CUNHA; GOMES DE ALENCAR, 2014, p. 68). A luta pela terra no Brasil é histórica e continua acirrada sob múltiplas formas.
Ocupar latifúndio é algo radical, que envolve graves riscos, mas já está sedimentado no imaginário dos Sem Terra que “se os Sem Terra não ocupam, o governo não faz nada!” Melhor dizendo, faz tudo para o fortalecer a propriedade capitalista da terra, eixo essencial do capitalismo no Brasil. O Estado, no Brasil, tem permanecido nas mãos de partidos que garantem a reprodução e ampliação do capital. Martins assinalava isso em 1989. “Os partidos que realmente representam uma alternativa democrática e transformadora são ainda fracos – e são impedidos de crescer, acrescentamos – e não têm condições de interferir significativamente nesse círculo vicioso do poder. No Brasil o Estado tem o seu partido, o que empurra o processo político contra qualquer tendência democrática real” (MARTINS, 1989, p. 65).
O Estado brasileiro faz o pior: investe pesado no agronegócio e no fortalecimento do iníquo regime da posse e do domínio da terra – estrutura fundiária – no Brasil, baseado no latifúndio. Referindo-se à luta de mil mulheres da Via Campesina, que em 08 de março de 2006, destruíram um viveiro de mudas de eucalipto de uma transnacional no Rio Grande do Sul, Plínio de Arruda Sampaio comentou: “A ação das Mulheres da Via Campesina, na sede da Aracruz Celulose, está em consonância com as ações de Gandhi e Martin Luther King Jr., mártires dos oprimidos. Elas e eles fizeram desobediência civil: desafio a leis injustas sem agredir pessoas. Como gesto extremo, querem acordar consciências anestesiadas que são cúmplices de sistemas opressivos. A não violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas, mas, sim, às pessoas humanas” (FSP, 24/3/2006, p. A3).
O boicote do sal e do tecido inglês na Índia, o dos ônibus segregacionistas no Sul dos Estados Unidos e tantos outros movimentos de desobediência civil em todo o mundo causaram grandes prejuízos materiais aos capitalistas, mas trouxeram conquistas para a humanidade. Vivemos dias muito sombrios, para não dizer dramáticos. Ficou natural encarcerar pessoas em massa que, tratadas como gado, sucumbiram ante o brilho do ouro dos tolos: as mercadorias produzidas pelo capital à custa da dignidade e da liberdade de tantas pessoas e da vida do nosso Planeta. Tornou-se natural violentar pessoas apenas porque lutam por moradia, transporte decente, contra a homofobia ou por um pedaço de terra para cultivar e morar. Vivemos dias tenebrosos por sentir na própria pele as consequências de condutas tão contrárias à ética nos espaços públicos e privados.
Notas:
[1] Padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações Urbanas; professor de “Direitos Humanos e Movimentos Populares” em curso de pós-graduação do IDH, em Belo Horizonte, MG. e-mail: [email protected] – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Estimativa fruto de pesquisa demográfica parcial apresentada no livro CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisa de antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
Referências.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisa de antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1999.
______. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.
MATOS, Helaine Saraiva; CUNHA, Gabriela Bento; GOMES DE ALENCAR, Francisco Amaro. Panorama dos conflitos e da violência no espaço agrário brasileiro de 1985-2014. In: Conflitos no Campo Brasil 2014. Goiânia: CPT Nacional, p. 68-73, 2014.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007.