Carta Política: A morte do Velho Chico ameaça a Convivência com o Semiárido

A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) soma-se às muitas vozes das lideranças, comunidades ribeirinhas, povos tradicionais, movimentos sociais, comitês de bacias, pastorais sociais e especialistas para denunciar a morte do Rio São Francisco e exigir do Estado brasileiro ações imediatas para reverter tal quadro de penúria, abandono, exploração, descaso e privatização de suas águas.

O rio totalmente brasileiro sustenta milhares de ribeirinhos nos 160 municípios que banha, ao longo dos cinco Estados que percorre: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. O rio é fonte de vida e renda para quem vive em seu entorno e garante vida digna para muita gente que vive no Semiárido. Passa, no entanto, por um dos piores momentos de sua existência.

Ao analisar todos os números de vazão do rio desde  1931, constata-se que, atualmente, o Velho Chico apresenta seus piores índices: menor quantidade de água no seu leito; menor quantidade de água no conjunto dos reservatórios (em torno de 5% do volume útil); menores vazões praticadas, com destaque para Sobradinho, que foi construída para garantir uma vazão segura de 2.100 m³/s e hoje não garante sequer 590 m³/s.

Na foz, a vazão média que antes era de 2.943 m³/s, não ultrapassa os 554 m³/s. Como consequência, o mar avança “rio adentro” por mais d e 50 Km e já causa um colapso no abastecimento de água potável para as populações rural e urbana e aumento dos casos de hipertensão dos moradores por conta da alta taxa de salinidade da água.

Esta situação não é resultado apenas dos seis anos prolongados de estiagem que passa a região, mas, sobretudo, do desmatamento do Cerrado e dos usos ligados à irrigação, mineração e transposição de águas.

Quando se amplia o olhar para a Bacia do São Francisco, a situação parece ainda mais grave. O rio e seus afluentes ocupam uma área de 64 1.000 Km², ou seja, 7,5% do território brasileiro. Neste percurso que abrange o Distrito Federal e os Estados de Goiás, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, o manancial contava com mais de 150 afluentes ou rios tributários. Muitos destes não existem mais ou estão em vias de extinção. Sua diversidade biológica é formada em grande parte pelo Cerrado e pela Caatinga, e nestes espaços vivem mais de 16,5 milhões de pessoas, entre povos originários, povos negros e europeus, espalhados pelos campos e cidades.

A exploração degradante da Bacia teve início com a chegada dos colonizadores por volta de 1.500 e se prolonga e se mantém até os nossos dias, com a mineração, os vários projetos de barragens, derrubada da Caatinga e do Cerrado. Com essas construções, todo ciclo biológico foi alterado, com duas finalidades principais: gerar energia e segurança hídrica para grandes perímetros irrigados. Instala-se na Bacia o Projeto Desenvolvimentista lastreado pelas grandes obras de infraestrutura.

Em 2012, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF) encomendou ao setor de engenharia do Exército Norte-Americano um estudo sobre a navegabilidade do rio. Um dos pontos do estudo era descobrir se o forte assoreamento, implicando grande quantidade de dejetos no rio, era resultado do desmoronamento das margens ou do assoreamento dos afluentes. A conclusão, divulgada apenas parcialmente neste final de 2017, é devastadora: pelo assoreamento são despejados no curso do rio, a cada ano, nada me nos que 23 milhões de toneladas de sedimentos, sendo a maior parte causada pelo assoreamento dos afluentes resultante da ampliação dos perímetros irrigados. O que vem ocorrendo com o São Francisco nada mais é do que a consequência de um modelo de desenvolvimento baseado na depredação acelerada das condições básicas das diversas formas de vidas, em nome do que chamam de progresso.

Os mais de 500 anos de exploração do rio, em especial o barramento de suas águas, provocaram o assassinato e expulsão de povos originários dos seus territórios, escravização de povos negros, alagamento de grandes áreas e inundação de cidades ribeirinhas, devastação das matas, águas demandadas e poluídas. O Cerrado está sendo destruído! Em seu lugar, implanta-se o agronegócio com suas monoculturas para exportação e a mineração, o que provoca a destruição das áreas de recargas de águas da Bacia. A Caatinga está sendo retirada para dar lugar à fruticultura e à cana-de-açúcar irrigada. Este desmonte da cobertura vegetal natural provoca o entulhamento do rio e, neste cenário de devastação e exploração das águas do Velho Chico, espalham-se diversos conflitos por terra e águas dos povos tradicionais que resistem em luta. Ao analisar a iminente morte do São Francisco, pesquisadores/as apontam que a solução é paulatina e se dará a médio e a longo prazos, com o processo de desconstrução das barragens instaladas ao longo do curso do rio. Mas, para que o manancial volte ao seu leito natural, é necessária muita vontade política.

A agenda em pauta é a disputa de projetos e as sociedades brasileira e internacional precisam se posicionar! Vivenciamos a disputa injusta entre o projeto do lucro que a qualquer custo prioriza a acumulação de riqueza por meio do saque dos bens naturais públicos e da concentração e o projeto do Bem Viver que tem na sua gênese o equilíbrio nas relações entre humanos e natureza. Neste âmbito , a ASA Brasil se manifesta denunciando o projeto que provoca o assassinato paulatino da Bacia do Rio São Francisco e se posiciona firmemente na defesa e na construção do projeto de vida da Bacia, tendo como base o paradigma da Convivência c om os biomas que a compõem.

Semiárido Brasileiro, 20 de novembro de 2017.

Coordenação Executiva da ASA Brasil

Imagem: Pescador pega dois peixes no São Francisco em Pau Preto. Foto: João Roberto Ripper.

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