Vicente Cañas, jesuíta, trinta anos depois do assassinato, acontece um novo julgamento. Entrevista especial com Aloir Pacini

Patricia Fachin – IHU On-Line

No dia de hoje, 29-11-17, depois de 30 anos do assassinato do Irmão Vicente Cañas, acontece em Cuiabá, no Mato Grosso, o segundo julgamento do assassinato do jesuíta espanhol que se dedicou à causa indígena no Brasil durante os anos 60, 70 e 80, antes de ser assassinado, aos 48 anos de idade, no barraco em que vivia, nas proximidades do território indígena dos Enawenê-nawê, em Mato Grosso. “O Irmão Vicente iniciou esta inculturação quando auxiliou a socorrer os Ivetin (Tapayuna); depois foi morar com os Pareci, na aldeia Rio Verde ainda próximo de Utiariti -MT. Com a intermediação dos jesuítas se conseguiram as primeiras identificações de terras para os Pareci e Rikbaktsa, em 1968. Em seguida, os amigos Thomaz (Lisbôa) e Vicente fizeram os primeiros contatos com os Mÿky (1971) e com os Enawenê-nawê (1974), com quem passaram a conviver, segundo os princípios do Vaticano II e as orientações da Companhia de Jesus e do Cimi”, resume Aloir Pacini, ao contar a trajetória de Vicente Cañas à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o antropólogo relembra a atuação de Vicente Cañas junto ao Conselho Indigenista Missionário – Cimi, à Operação Anchieta – Opan e ao Grupo de Trabalho da Fundação Nacional do Índio – Funai, em sua luta pela demarcação das terras indígenas, e afirma que ela “continua no martírio dos irmãos e irmãs que até hoje lutam pelo direito à terra”. E acrescenta: “O legado do Irmão Vicente é o resgate da luta dos povos originários quando a legislação brasileira está flexibilizando o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 e colocando em grande fragilidade os indígenas pelos quais o Irmão Vicente Cañas deu a vida”.

O primeiro júri que julgou os acusados do assassinato de Vicente Cañas ocorreu em 2006 e os réus foram inocentados por 6 votos a 1. O segundo júri, marcado para o dia de hoje, julgará o delegado de polícia aposentado Ronaldo Antônio Osmar, único acusado que ainda está vivo.

Aloir Pacini é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje. Padre jesuíta, é mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor na mesma área pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem foi o Irmão Vicente Cañas? Pode nos contar sobre a trajetória e atuação dele na Companhia de Jesus e no Brasil?

Aloir Pacini – Vicente Cañas Costa nasceu em Alborea (Albacete) em 22 de outubro de 1939, numa família de 10 irmãos, filho de Miguel e Angela. O Irmão Vicente (conhecido pelos indígenas como Kiwxi) foi um jesuíta autêntico. Ingressou na Companhia de Jesus, em Raimat, na Espanha, no dia 21 de abril de 1961 e fez os votos de castidade, pobreza e obediência em 22 de abril de 1963. Depois do Juniorado, renovou os votos e recebeu o crucifixo de missionário em 3 de dezembro de 1965 na Igreja dedicada ao missionário São Francisco Xavier e veio para o Brasil. Aqui começou os trabalhos na Casa de Retiros em Baturité (no Ceará) e ainda hoje os vizinhos recordam como ele socorria as pessoas da redondeza em épocas de penúria por causa das secas periódicas.

Como desejava trabalhar com os indígenas, veio para a Missão de Diamantino – MTem 1968 e ali atuou primeiro como cozinheiro. Assim foi sendo iniciado na vida de missionário nos trabalhos com os indígenas especialmente pelos Padres Thomaz (Lisbôa) e (Antonio) Iasi. Era a época em que a Igreja do Vaticano II pedia uma forma diferente de estarmos neste mundo, transformar a sociedade estabelecida com visíveis traços de injustiça enraizada na América Latina. Uma das formas gritantes da injustiça era desalojar os indígenas e tomar seus espaços para estabelecer novas colonizações, formar novos municípios. Com isso, os indígenas que não eram mortos passavam a morar nas periferias das cidades ou a trabalhar nas fazendas em busca de migalhas.

Com esta análise de conjuntura, fechou-se o Internato de Utiariti em 1968, depois da visita do Padre Pedro Arrupe. E os missionários foram morar nas aldeias com os indígenas para ali aprender com eles o Bem Viver e garantir a demarcação dos seus territórios tradicionais. O Irmão Vicente iniciou esta inculturação quando auxiliou a socorrer os Ivetin (Tapayuna); depois foi morar com os Pareci, na aldeia Rio Verde ainda próximo de Utiariti. Com a intermediação dos jesuítas se conseguiram as primeiras identificações de terras para os Pareci e Rikbaktsa, em 1968. Neste tempo é que vive o Padre Thomaz um tempo com os Ivetin (1970) que sobreviviam do contato com os seringueiros e os que fundaram a cidade de Porto dos Gaúchos no rio Arinos. Em seguida, os amigos Thomaz e Vicente fizeram os primeiros contatos com os Mÿky (1971) e com os Enawenê-nawê (1974), com quem passaram a conviver, segundo os princípios do Vaticano II e as orientações da Companhia de Jesus e do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.

IHU On-Line – Como Irmão Vicente começou a trabalhar com as comunidades indígenas? Qual era a relação dele com as comunidades, em particular com os Ivetin (Tapayuna), os Pareci, os Mÿky e os Enawenê-nawê? Que tipos de atividades ele realizou junto a esses povos?

Aloir Pacini – No final da década de 60 e na primeira metade da década de 1970, no noroeste do Mato Grosso os jesuítas fizeram a grande mudança no trabalho indigenista missionário. O Irmão Vicente Cañas participou intensamente destes momentos e foi tentar auxiliar os Ivetin (Tapayuna ou Beiço-de-Pau) em 1969, com quem começou um trabalho sério e cheio de desafios. No dia 26 de novembro de 1969, escreveu ao Provincial:

Hace 8 días regresé de una tribu de indios, Beiço de Pau. Estamos comenzando la pacificación y, gracias a Dios, todo sigue bien. Tenemos un grupo de 33 que están menos bravos, aunque uno no puede confiar mucho, sobre todo en los más viejos que, de un momento á otro, pueden ‘revoltarse’ y hacer cualquier cosa contra nosotros. También de la misma tribu hay más en la selva, pero no sabemos dónde están y como todavía no entendemos el idioma de los indios que tenemos es el motivo de no encontrar a los otros. Estos indios son de la raza cayapó. Duermen en el suelo con un trozo como cabecera. Son grupos de 3 a 5 familias en las malocas, distribuidos por la selva. Lo que comen es toda clase de animales y peces. De higiene nada: la mayor suciedad del mundo. El último trabajo que hice para ellos fue el – hacer dos malocas de paja para que ellos se sintiesen como en un palacio; y también otra para el Padre y para mí. Dos días antes de terminarlas, se apoderó de mí la malaria: de dos a cuatro días con fiebre, seis días sin comer nada y siete días sin dormir. Quedé hecho un esqueleto. Ya soy delgado y perdí siete kilos! Tuve que regresar a Diamantino e internarme en el Hospital. Después de seguir el tratamiento y recuperar fuerzas espero volver otra vez con los mismos indios, dentro de unos 10 días”.

Imagem cedida pelo entrevistado

Convivência com os indígenas

Padre Adalberto já havia sido flechado na perna pelos Ivetin no rio Arinos. Com o fechamento de Utiariti, o Irmão Vicente havia estabelecido moradia entre os Pareci. No começo de 1970, aprendeu, entre os Ivetin, o drama de uma etnia arrasada pelos contatos com a sociedade envolvente que invadia o norte do Mato Grosso pelo rio Arinos. Depois da experiência acima indicada na carta, foi novamente, a pedido do Padre Antônio Iasi e da Funai, para salvar cerca de 7% dos Ivetin (conforme texto: Um diário que não quer falar [1]). Uma reportagem encomendada pela Funai para registrar a “pacificação” foi o golpe fatal para os que ainda restavam dos contatos catastróficos com as frentes de expansão no vale do rio Arinos. O repórter disseminou uma epidemia de gripe entre os indígenas. O Ir. Vicente Cañas com o Pe. Thomaz Lisbôa foram para este trabalho e ali ficaram com os 41 Ivetin (Tapayuna) sobreviventes até abril de 1970, quando os Ivetin foram transferidos, no avião da Força Aérea Brasileira – FAB, para o Parque Indígena do Xingu, onde se mesclaram com os Kinsêdjê (Suyás). O Estado estava no projeto de distribuir as terras tradicionais indígenas para a iniciativa privada e precisava liberar estes espaços, colocando os indígenas num Parque como num zoológico para que pudessem ser vistos e apreciados de forma exótica.

Durante os cinco anos seguintes o Ir. Vicente Cañas se dedicou aos Pareci, no noroeste do Mato Grosso. A partir desta experiência dramática, a decisão foi fazer os primeiros contatos com mais cuidados com os povos em situação de isolamento. Os missionários, fundadores do Cimi e da Operação Anchieta – Opan, decidiram acessar os grupos por conta das frentes de colonização que se aproximavam cada vez mais das áreas indígenas. Sabiam como fora trágica a aproximação dos Rikbaktsa, dos Ivetin… pois uma estratégia de ocupação pelas frentes de expansão era exterminar os indígenas para ficarem com suas terras. Os jesuítas Kiwxi e Thomaz Aquino Lisbôa encontraram 23 Mÿky e alcançaram os primeiros contatos pacíficos em 13 de junho de 1971, e com eles passaram a conviver, sem baixas para os índios. Em 1977 recebeu dos Mÿky o nome de Kiwxi.

Esta dupla de amigos consegue, com o auxílio dos indígenas Tapema Rikbaktsa e Roberto Nambikwara também os contatos pacíficos com os Enawenê-nawê em 28-07-1974, uma aldeia única com 97 pessoas vivendo em sete casas comunais, falando língua parecida com a dos Pareci. Em fins de 1975 o Irmão Vicente passou a se dedicar mais aos Enawenê-nawê, da mesma família linguística dos Pareci (língua aruaque). Passou a ser um deles numa convivência intensa que marcou sua vida definitivamente. Inseriu-se neste novo mundo participando dos seus rituais, pescarias, trabalhos de roça, coletas de mel, de frutas e de tubérculos, confeccionando cestarias e outros artefatos próprios da habilidade masculina… Dedicou-se ao profundo aprendizado da sua língua, meio privilegiado para transmitir sua cultura. Seus diários mostram os cuidados com as pequenas coisas, anotava as finalidades de cada parte do habitat tradicional Enawenê-nawê.

Os contatos pacíficos por parte dos missionários e o mapeamento dos territórios tradicionais dos povos indígenas tornavam a colonização menos agressiva, mas não a sustaram, porque o governo projetava incorporar esta parte amazônica como fonte de renda para o Estado. As posturas proféticas dos jesuítas questionavam duramente as frentes de colonização que viam os indígenas como empecilhos para a implantação de seringais, das madeireiras, das fazendas, dos garimpos… E assim muitos que viam suas oportunidades de enriquecer rapidamente prejudicadas, tomavam a peito o projeto de civilização e se tornavam inimigos violentos e sanguinários dos que com os indígenas se identificavam. Isso deve ser dito também para dentro da igreja, pois muitos católicos eram os que queriam enriquecer desta forma. Apareceram assim na vida de Kiwxi também pessoas dispostas a fazê-lo desaparecer, mas o Irmão Vicente Cañas se tornou um mártir do nosso tempo, por causa da sua identificação com os indígenas e do seu sangue derramado em nome de Cristo! Os sinais de que foi assassinado: barraco todo desarrumado indicando luta corporal, óculos e dentes quebrados, tira do chinelo rasgado, uma perfuração acima do estômago, lesões no crânio etc.

IHU On-Line – Qual é o legado de Vicente Cañas?

Aloir Pacini – O Irmão Vicente Cañas era um homem despojado, pronto para o trabalho, não havia tempo nem hora ruim para auxiliar o próximo. Tinha um senso de justiça que é próprio da época e percebia com clareza o modo capitalista de exploração do mundo que vinha se aproximando das populações indígenas que ainda viviam na Amazônia o Bem Viver. Tratava-se de um homem prático, capaz de pensar as coisas no dia a dia e sempre a serviço, algo que é próprio da vocação de muitos Irmãos jesuítas que não quiseram ser padres para poder se dedicar a questões mais práticas na construção do Reino de Deus. Por exemplo, não teve dúvida em arrancar ele mesmo seus próprios dentes, quando a auxiliar em saúde (Rosa), que estava com ele na Missão, não aceitou fazer esta proeza pois ele tinha ainda os dentes bons. Fez isso para não ter que sair durante dias para ir ao dentista na cidade e assim aprender em si mesmo a fazer moldes de dentadura para os indígenas que tinham muitos problemas com a queda dos dentes. Com estas e outras podemos ver que procurou viver de forma inculturada entre os indígenas, como vimos acima, trabalhar para contatar de forma pacífica os que ainda não estavam em relação com a nossa sociedade e trabalhar para demarcar as terras que tradicionalmente estas populações ocupavam.

Por outro lado, sabia compreender as diferenças culturais de uma forma intuitiva, mais que reflexiva. Para estar com os indígenas não havia dificuldade, estava sempre pronto, manifestava grande capacidade de compreender o diferente, possuía um amor que impressionava e era o ideal que sustentava seu modo despojado de vida. Percebia no modo de vida tradicional dos índios as experiências mais plenas de vida humana, por isso talvez era desprendido de si mesmo para estar com eles a maior parte do tempo, segundo as suas necessidades, sempre pronto para servir. Destemido na inculturação junto aos Enawenê-nawê, enfrentava os grileiros que passaram a reivindicar como propriedade sua parte das terras indígenas. O Irmão Vicente Cañas chegou a ir na Fazenda Londrina conversar com os peões para deixarem esta vida de exploração, procurando “conscientizá-los” de que estavam sendo usados pelo fazendeiro e que a terra pertencia aos Enawenê-nawê.

Capacidade de modificação

Com isso também podemos perceber que os indígenas sabem discernir quem quer de fato dar a vida para eles e perceberam que muitos missionários, que assumiram com eles suas lutas, foram capazes de transmitir a vida como Cristo. Assim perceberam que dar a vida como estes missionários vale mais do que todo ouro, diamantes ou qualquer bem nesta terra. Assim fica mais fácil aprender com os que nos precederam e recolher os tesouros para os céus onde a traça não come e a ferrugem não corrói. Contudo, o legado que considero mais importante é a capacidade que o Irmão Vicente tinha de se modificar. Não somos de modo algum pessoas fixas e os indígenas são extremamente pacienciosos conosco. Ao lermos o que o Irmão Vicente escrevia nos inícios da sua vinda para o Brasil e a visão que tinha da Missão Indígena, impressiona o aprendizado que teve com os outros jesuítas e outros missionários, mas principalmente com os indígenas. Ele progressivamente foi modificando o seu modo de pensar e agir, na medida em que foi se relacionando com as pessoas, ou seja, se deixava impactar pelos dramas que as pessoas viviam e nas relações humanas foi aprendendo o que realmente importava na vida missionária.

Neste momento em que vemos os poderes ExecutivoLegislativo e Judiciário corrompidos no Brasil, precisamos refundar a nação brasileira. O legado do Irmão Vicente é o resgate da luta dos povos originários quando a legislação brasileira está flexibilizando o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 e colocando em grande fragilidade os indígenas pelos quais o Irmão Vicente Cañas deu a vida. A condenação dos envolvidos neste homicídio é para dizer que existem limites para o capital, que vivemos num Estado de Direito e este direito dos trabalhadores, das pessoas menos favorecidas e dos indígenas precisa ser preservado. Não se pode pensar a nação para uma elite, tratar os indígenas e os missionários a bala. O capital precisa ser colocado a serviço de todos e o Estado deve cumprir esta função, porque ser humano precisa de limites, precisa ser disciplinado pela ética do bem viver de todos, até da natureza, dos rios, das montanhas, das florestas.

IHU On-Line – Como, por que e em que contexto Irmão Vicente foi assassinado?

Aloir Pacini – Esta pergunta foi feita no Seminário que fizemos no início de abril deste ano e foi duro perceber que houve maldade extrema dos que planejaram e organizaram os detalhes deste assassinato. Ou seja, a morte do Irmão Vicente Cañas foi preparada a longo prazo: primeiro criaram falatórios negativos sobre o Irmão Vicente, dizendo que ele não era um jesuíta autêntico, que não vivia a castidade, que não ia na Missa etc, o que poderia justificar sua morte ou ao menos dar a entender que esta morte era necessária numa igreja que se pensava mais autêntica, fundamentalista. Quando vamos nos aproximando da verdade, a vontade é vomitar para ver se podemos superar tamanha atrocidade atingindo um inocente como o Irmão Vicente, que estava sozinho. E o mesmo vemos que foi feito com Jesus de Nazaré, pois todos o abandonaram, ficou sozinho no suplício final.

Assassinato

Conforme as provas e depoimentos, o delegado agenciou os capangas para o serviço sujo, emboscaram o missionário em seu barraco, na margem do rio Juruena. O Irmão Vicente Cañas foi brutalmente assassinado no dia 06 de abril de 1987, quando tinha 46 anos de idade. Seu corpo foi encontrado mumificado pela natureza no dia 16 de maio de 1987. O laudo médico-legal apontou que foi atingido a golpes de porrete na cabeça e uma peixeira foi fincada no abdômen com a finalidade de atingir o coração. As investigações indicam um acordo entre o delegado da Polícia Civil de Juína na época [2] e os fazendeiros da região, que não aceitavam a posição firme do jesuíta defendendo que a demarcação do território tradicional indígena deveria ser na quantidade que os indígenas indicassem.

Sua atuação era, inquestionavelmente, na defesa e garantia dos direitos indígenas. Como missionário jesuíta, integrava os quadros do Cimi e da Opan e, à época do crime, era membro do Grupo de Trabalho da Fundação Nacional do Índio – Funai para a demarcação do território Enawenê-nawê, trabalho que implicava de modo especial na retirada de alguns fazendeiros que já tinham invadido a terra dos Enawenê-nawê. Mas a Funai, herdeira de mais de uma década de ditadura militar e então presidida pelo hoje senador Romero Jucá, já naquela época não conseguia fazer frente a todo tipo de invasão dos territórios indígenas.

Reconstruindo os fatos do crime, conforme o processo, os assassinos recrutados pelo delegado e pagos pelo então proprietário da Fazenda Londrina e outros, armaram uma tocaia para o missionário jesuíta que estava no barraco esperando para ver se tinha alguma doença e não ir à aldeia com perigo de epidemia entre os Enawenê-nawê. Chegaram por uma picada na mata da sede da fazenda e esperaram o Irmão Vicente Cañas sair para tomar banho no rio ao amanhecer. Os jagunços entraram no barraco e esperaram o retorno do jesuíta. Quando este retornou sem ainda se vestir, foi rendido facilmente porque estava de mãos limpas e atingido na cabeça com a mão de pilão. Em seguida, os assassinos o mataram com faca, provavelmente segurado pelos braços. Depois de atingido mortalmente, o corpo foi arrastado para o quintal e colocado atrás do barraco para ser devorado pelos animais. Quando os jesuítas e outros do Cimi perceberam que o missionário não entrava no rádio por muito tempo, foram procurá-lo e encontraram seu corpo mumificado.

IHU On-Line – Como se deu o processo do julgamento do assassinato dele ao longo desses 30 anos?

Aloir Pacini – É triste falar, mas participei do júri anterior iniciado em 24-10-2006, mais de dez anos atrás, e não foram levadas em consideração as provas do crime. No recurso contra o resultado do primeiro julgamento, o MPF argumentou que o Conselho de Sentença desconsiderou provas substanciais colhidas durante o processo, envolvendo testemunhos e o laudo cadavérico. Por isso o resultado do Júri foi pela absolvição dos réus no Tribunal do Júri Federal de Cuiabá, por 06 votos a 01. Mas o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região determinou a realização de um novo júri e, assim, estamos novamente aqui.

Conseguir que este crime passasse do Fórum da Comarca de Juína/MT, para ser julgado na Justiça Federal em Cuiabá, em 1997, foi fundamental para que se pudesse avançar na busca da verdade e colocar no banco dos réus os responsáveis por este crime bárbaro. Isso tem que ser dito porque, se o próprio delegado envolvido presidia o inquérito, pode-se concluir que as provas fossem sumindo na medida em que aparecessem. Isso foi possível porque Kiwxi integrou o grupo interministerial para a demarcação das terras Enawenê-nawê, da qual necessitam para sua sobrevivência enquanto etnia diferenciada no mosaico multicultural e pluriétnico que é o Brasil.

Engajamento político

Tivemos o tempo na Igreja dos anos 1960 no qual tínhamos que mostrar o engajamento político e social; era importante que não fôssemos alienados a uma vida mais justa e fraterna na terra, pensando somente no Reino dos céus. Foi neste momento que os jesuítas Padre João Bosco Burnier (12/10/1976) e o Irmão Vicente Cañas (06-04-1987) deram a vida, pois sabiam que os indígenas poderiam cuidar melhor do seu território tradicional do que os fazendeiros que os invadiam.

Este tempo passou e vimos que o socialismo, ou pior ainda, o comunismo, era uma idolatria e oprimia igualmente grande parte da população. Por isso o muro de Berlim tinha que cair. Agora temos por obrigação lutar contra o capitalismo e o “desenvolvimento” de forma mais engajada e articulada, estabelecendo um diálogo com toda a sociedade para que o envolvimento religioso que guarnecia o nosso mundo fosse mantido e nem tudo se tornasse mercadoria para enriquecer parte da sociedade em detrimento de poucos e também à custa dos recursos do planeta que são finitos. Por isso é tão importante o chamado do Papa Francisco para o cuidado da nossa casa comum (cf. Laudato Si), para que não destruamos a floresta Amazônica e o Cerrado para acumular capital.

Os vários volumes do Processo 2006.36.00.003829-6 protocolado na Justiça Federal em 20-10-1998, cujos réus Marinez Abadio da Silva e outro (19983600064875) são acusados do homicídio do Irmão Vicente Cañas Costa SJ, podem ser acessados para ver mais detalhes destes meandros da justiça humana.

IHU On-Line – Qual é a situação dos indígenas com quem o Irmão Vicente trabalhou, especialmente as comunidades da Terra Enawenê-nawê?

Aloir Pacini – Os Pareci estão com parte do seu território tradicional assegurado. A Terra Indígena Juininha e Uirapuru possuem processos judiciais de questionamento de sua tradicionalidade naqueles lugares próximos da BR 364. A Terra Indígena Pareci (identificada em 1968; demarcada em 1984; registrada no CRI e SPUem 1987 e DH 287 de 29/10/91) tem quinhentos e sessenta e três mil e quinhentos e oitenta e seis hectares (563.586 ha) e é habitada pelos Pareci (Haliti) dos subgrupos Waimaré, Kózarini, Kazíniti e Warére; a Terra Indígena Utiariti (identificada em 1982; demarcada em 1984; registrada no CRI 85; no SPU 87 e DH 261 de 29/10/91) tem quatrocentos e doze mil e trezentos e quatro hectares (412.304 ha) e é habitada pelos Pareci dos subgrupos Waimaré, Kózarini, Kazíniti e Warére; e a Terra Indígena Tirecatinga (identificada em 1982; demarcada em 1983; registrada no CRI 85; no SPU 87 e DH 291 de 29/10/91) tem cento e trinta mil e quinhentos e setenta e cinco hectares (130.575 hectares) e é habitada majoritariamente pelo povo Nambikwara (subgrupos Wakalitesu e Halotesu), além de alguns habitantes Iranxe (Manoki) e Pareci.

Demarcações das terras indígenas

A Terra Indígena Enawenê-nawê foi demarcada extraoficialmente pelos próprios indígenas, logo após a morte de Vicente Cañas. Eles mesmos foram pregando as placas da Funai no seu entorno e assim se manteve o que eles puderam fazer, mostrando que não era o Irmão Vicente que queria esta demarcação que se encontra nas divisas dos municípios de JuínaComodoro e Campo Novo do Parecis, identificada com 742.089 hectares em 1984; demarcada oficialmente somente em 1995; registrada no CRI 96; no SPU 98 e DH s/n de 02/10/96. Atualmente os Enawenê-nawê reivindicam o Rio Preto, afluente do Juruena, que é parte do território tradicional, onde eles ficam dois meses por ano fazendo as barragens para as pescarias, local que precisa ser demarcado porque o desmatamento cresce a cada ano na região. Os Enawenê-nawê ainda sofrem principalmente nas relações interétnicas e nas relações com a sociedade envolvente, onde acontecem vários tipos de agressões de ambos os lados. A instalação das Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCH nos rios da região impedem as migrações dos peixes para as cabeceiras e interferem diretamente nos seus rituais tradicionais [3].

Os Mÿki também possuem sua terra demarcada, mas reivindicam uma região onde possuem tucum e castanha. Os Manoki (Iranxe) estão na justiça para conseguir o outro lado do rio Cravari onde moravam e que a carta de 1971 do Irmão Vicente mostra escancarada. Mas o caso mais grave no momento são os Ivetin (Tapayuna ou Beiço-de-Pau) que estão retornando do Parque Nacional do Xingu e querem de volta a sua terra tradicional entre o rio do Sangue e o rio Arinos. Esta luta merece atenção especial, pois o governo já tinha uma região reservada para estes indígenas e a sua remoção “forçada” para o Xingu permitiu que muitos grileiros tomassem esta parte do território indígena. O sangue derramado destes índios nestas terras do Mato Grossotambém clama por justiça. A memória de Kiwxi tem fecundado a todos nós e nos despertado para a responsabilidade de continuar a sua luta.

Uma Igreja a serviço

As críticas que o Irmão Vicente fazia à sociedade ocidental e à Igreja eram contundentes, servia como um profetismo da classe operária que observa o enriquecimento do patrão com o fruto do seu trabalho. Sendo mais claro, o Irmão Vicente não criou uma Igreja Católica dentro da aldeia, nem batizou nenhum Enawenê-nawê, porque considerava que a vida que levavam tradicionalmente era plena de tudo que eles precisavam. Assim uma Igreja institucionalizada lá dentro só atrapalharia. Hoje, com o recurso mensal que entra da indenização por causa da instalação de Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs na região, o pedido deles por uma Escola, a estrada construída pelo prefeito de Juína dentro de sua terra e as dezenas de barcos a motor que receberam em troca deste “favor” e que precisam de gasolina, o uso indiscriminado de refrigerantes – só para dizer um dos produtos que eles levam da nossa sociedade e que prejudica enormemente sua saúde -, já não sei se a Igreja mais formalmente entre eles atrapalharia tanto ou auxiliaria para o diálogo e o discernimento.

Claro que tem que ser uma Igreja serviço, uma Igreja comunhão, Católica, que sabe acolher as diferenças, se alegrar com o progresso espiritual dos fiéis e assim acolher a todos sob o seu telhado de palha de buriti como vemos agora entre os Wapichana, formando assim uma grande orquestra para tocar e cantar a paz e a justiça, cada um tocando seu instrumento que mais se adapta aos seus dons e à sua cultura. Não uma igreja crente, fanática que fecha as pessoas aos demais e ao próprio Deus que é Espírito e Verdade para construir a sua igreja que é egoísta, não se alegra com o progresso espiritual das outras denominações, que quer lucrar em cima dos fiéis etc. Coisas que Jesus já muito criticou na forma de os fariseus, saduceus e sacerdotes conduzirem a religião judaica.

Contudo, mesmo de longe, o Cimi tem acompanhado para ver como caminhar junto com eles, mas é difícil encontrar alguém que queira estar com eles dia e noite, mês a mês, ano a ano, dando a vida. O que eles pedem é que alguém fique com eles como o Irmão Vicente Cañas ficava. Pois eles sabem que o prefeito de Juína que pediu para abrir a estrada também tinha interesse em explorar o minério nas suas terras. E o que fazer? Quais as instâncias de decisões que se manterão neste momento em que eles estão encantados com o mundo ocidental e os seus “bens” e possibilidades? Quem auxilia a pensar, quem realmente se aproxima deles de forma gratuita e que não esteja atrelado aos poderes que querem explorá-los e ao seu território?

Muitas são as pessoas e entidades indigenistas [4] que se juntaram aos jesuítas no empenho para que este assassinato não passasse impune. A todos agradecemos a vida doada pelo Reino da vida eterna que é a ressurreição! A participação no plenário do Júri que está aberto ao público o tempo todo é algo que impressiona, mas é frio, desgastante. Por isso juntar-se para rezar nas dependências da Justiça Federal em Cuiabá às sete horas da manhã para abençoar o dia torna-se necessário e no pôr do Sol, às 18 horas, novamente para recordar a caminhada do dia e rememorar Kiwxi faz muito bem para o coração.

A presença de cinco sobrinhos do Irmão Vicente, oito Enawenê-nawê, quatro Mÿky; dois Kawaiweté (Kayabis), Chiquitano e outros indígenas, de vários missionários do Cimi, entre eles o presidente Dom Roque Paloschi e o secretário Cleber [Buzatto], quatro advogados, entre eles Carol e Irmã Michael e muitos jesuítas, entre eles o Superior regional Padre Tabosa etc, indica que estamos entrelaçados na busca por justiça. As nossas velas acesas, os artefatos indígenas e outros símbolos da resistência indígena servem como metáforas do que não conseguimos dizer com palavras.

saga desenvolvimentista tem trazido a contaminação por agrotóxicos e as pequenas centrais hidrelétricas nas cabeceiras dos rios ameaçam a sobrevivência física e cultural de agricultores familiares, comunidades tradicionais e povos indígenas, entre eles as pescas tradicionais dos Enawenê-nawê. A luta do Irmão Vicente Cañas continua no martírio dos irmãos e irmãs que até hoje lutam pelo direito à terra. Assim vamos alcançando alento, e a solidariedade ao Irmão Vicente Cañas atualmente passa pelo respeito aos povos indígenas e pela demarcação urgente das terras dos povos Chiquitano e Ivetin e tantas outras ainda pendentes em todo o Brasil.

IHU On-Line – Qual é a expectativa para o novo Júri dos assassinos de Vicente Canãs?

Aloir Pacini – O Seminário feito por ocasião dos 30 anos é mais importante que este Júri, penso eu. Bartomeu Melià Lliteres, que viveu com o Irmão Vicente entre os Enawenê-nawê, assim se expressou: “Los tres días de conmemoración de Vicente Cañas y el libro Provocando rupturas, me hicieron conocer detalles que ignoraba, y en ciertos aspectos despertaron mi examen crítico. La Misión Anchieta vivía en gran soledad y aislamiento, casi como hueso descoyuntado, y creo que esto no era bueno. Sin embargo, se hizo camino y se abrieron las puertas para el protagonismo de los indios, que es lo deseable. La empresa es enorme.” O vídeo que se produziu a partir do Seminário Kiwxi: Memória, Martírio e Missão de Vicente Cañas expressa o que fazemos enquanto se deixou de punir ou dar àqueles que planejaram o assassinato o que eles merecem.

Sabemos que nem todos os cidadãos são tratados com igual consideração quando buscam o serviço público da justiça. O que se vê no caso do Ir. Vicente é mais um exemplo deste descaso que acontece em nosso país. Só não vê quem não quer! Passados mais de 30 anos, ainda não temos uma sentença definitiva sobre o caso. De fato, as várias maquinações dos réus para dificultar o processo investigativo e esconder as provas do homicídio acontecido com intenções propositais de matar trouxe uma influência nociva e fez a justiça agir tardiamente. E, como dizem os sábios juristas, “a justiça que tarda, falha”. A justiça que não tem compromisso com sua eficácia é justiça que impacta direta e negativamente sobre a vida do cidadão, permitindo que se reproduza a impunidade.

Entretanto, para quem ingressa nas fileiras do discipulado de Jesus Cristo não existe fracasso. Aprendemos com Dom Pedro Casaldáliga que “quanto maior a crise tanto maior deve ser a nossa esperança”. E, mesmo com toda lentidão da justiça, queremos aproveitar da ocasião, mais uma vez, para reafirmar o desejo de restaurar a verdade e ver os responsáveis pelo terrível crime punidos. Estamos confiantes e queremos que se faça Justiça. Por outro lado, estamos agora diante de um Processo judicial e nos embrenhando nos seus meandros. Como Processo, trata-se de uma floresta ou de um manancial e a gente tem que encontrar o que queremos, ou seja, uma árvore de buriti, pupunha, açaí, castanha etc para alimentar a nossa esperança, vamos continuando em busca de uma compreensão do que realmente importa e, a longo prazo, chegar a futuro melhor.

Quando do acontecido, uma atrocidade sem limites, não se podia pensar no sofrimento que os indígenas estavam passando por verem seu território invadido, nem se podia pensar nas dores que o Irmão Vicente passou ao ser atingido tão barbaramente por pessoas cruéis – que Deus os tenha para que percebam o mal que fizeram, e assim possam interceder por nós que ficamos – com isso conseguiremos que ninguém mais sofra desta forma tão cruel. Este é um dos objetivos que temos como jesuítas para levar avante este Processo judicial que custa tanto em esforço humano e também em termos de recursos financeiros.

Resultados práticos

Em relação à perspectiva dos resultados práticos, parece que não vamos conseguir que um novo Júri pense tão diferente do anterior. Contudo, não podemos saber, pois não somos adivinhos do futuro, mas podemos anunciar alguns dados que poderiam influenciar neste momento. Há dez anos tínhamos um governo, no Brasil, que era popular e que pensava em distribuir a renda do país, mas o Papa era avesso a toda a crítica. Por isso as críticas do Irmão Vicente à Igreja eram guardadas como uma afronta. Por isso tínhamos que internamente tomar todo o cuidado dentro da própria Igreja, e a atitude das críticas que o Irmão Vicente Cañas fazia à Igreja não pareciam soar bem como profecia. Hoje temos o contrário, o Papa Francisco abre a possibilidade de ordenar padres casados na Amazônia e isso o Irmão Vicente já falava abertamente que deveria acontecer para poder atender aos indígenas de forma adequada às suas culturas.

Limites da justiça

Quando a justiça dos seres humanos não levou em consideração as provas da morte deste Irmão jesuíta, que são contundentes para quem quer ver, ela se tornou pequena demais. Só não vê quem não quer todas as maquinações para esconder as provas de que aconteceu homicídio com intenção de matar, pois é evidente que o Irmão Vicente Cañas foi morto… trata-se de um absurdo jurídico pensar que o Irmão Vicente Cañas morreu com dor de barriga ou outra coisa que o valha, que foi usado com requintes de teatro para induzir o júri a não condenar ninguém.

Quando encontro ainda hoje escritos de pessoas sérias com equívocos propositais ou ignorâncias, penso que temos que nos ocupar com a verdade dos fatos. Um exemplo sério disso é o caso do Padre João Bosco Burnier, SJ que teria sido morto “por engano” no dia 12 de outubro de 1976. Ao ler o que Dom Pedro Casaldáliga deixou escrito, testemunha ocular dos fatos, sabemos que foi o Padre Burnier que disse ao soldado que ele estava indo a Cuiabá e o denunciaria aos seus superiores. Foi este fato que levou o soldado a dar uma coronhada na cabeça do Padre Burnier e, depois de ele ter caído, disparar o tiro fatal de revólver na sua cabeça. Assim, não poderia ser por engano esta morte, nem poderia ser que os soldados quisessem matar o bispo e pensavam que o padre fosse o bispo porque se vestia de forma mais formal. O assassinato deste outro missionário jesuíta foi resultado da sua forma contundente de defender as mulheres, denunciar as torturas que elas estavam sofrendo, ou seja, foi a consequência da defesa que este jesuíta fez das mulheres na Delegacia de Ribeirão Cascalheira, que como Cristo estavam sendo torturadas. Isso me leva a buscar de todas as formas elucidar os fatos para que fique declarada a verdade dura e crua, doa a quem doer…

Nestes momentos de dúvida em relação às provas materiais do crime que motivou este Júri, todo o contexto do Processo tem que ser levado em consideração, pois o Irmão Vicente Cañas estava ameaçado. Optou por não tirar as férias na Espanha como estava planejado e foi para o seu barraco para proteger os indígenas; ficaria assim com seu povo, pois a situação era tensa neste momento chave da demarcação das suas terras, e por isso foi morto. Darci Pivetta expressou num momento de santa revolta por ter sugerido ao irmão uma atitude semelhante a Malinowski, ter um barraco um pouco distante como estratégia para preservar os indígenas das doenças, mas não podia imaginar o que aconteceria no futuro: “maldito barraco!”

Assim, recorrer do Júri anterior de 2006 é o mais lógico, pois a justiça se mostrou muito superficial. Chegou-se a dizer, no Processo do júri, que não havia provas de que o Irmão Vicente Cañas foi morto. E, em decorrência de que foi o delegado de Juína que articulou este horror, e ele mesmo presidia o inquérito, parece óbvio que as provas tendiam a desaparecer. Ali, desta forma tão ingênua, a justiça humana falhou lamentavelmente! Contudo sempre é possível retornar ao Processo de busca da Justiça e é isso o que estamos fazendo. Colocar num mural esta dor que perpassa todos nós para que nunca mais se tome atitude semelhante de eliminar o outro. Creio que isso é o mínimo que podemos fazer. Quem sabe um dia nossa justiça pequena chegue mais próxima do que deveria ser, e, talvez assim, encontremos algo da Justiça de Deus já aqui na Terra, pois esta seguramente vai além deste tempo e transcende a todos nós seres humanos.

Sepultamento

O sepultamento definitivo do corpo do Irmão Vicente envolto em sua rede, como é costume tradicional dos indígenas, ocorreu em 22 de maio de 1987 e o Padre Iasipresidiu os ritos funerários com os missionários do Cimi, os índios Rikbaktsa e Enawenê-nawê. Em comunhão também seguimos com os peregrinos que vão seguir as pegadas do Irmão Vicente Cañas, passando por Diamantino e rezando no sepulcro do Padre João Bosco Burnier, depois seguindo para a aldeia dos Mÿky e depois para o sepulcro do Irmão Vicente Cañas junto ao barraco que foi reformado e depois para os rituais dos Enawenê-nawê.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Aloir Pacini – Como a massa no tipiti [5] sendo amassada para se tornar farinha de mandioca, como a palha trançada na esteira para abrigar o corpo nos rituais funerários definitivos dos Boe (Bororos), ou mesmo como os fios trançados em uma rede de tralha (fios do broto do tucum ou do buriti) que abrigou o corpo do Irmão Vicente para ser sepultado pelos jesuítas, Enawenê-nawê e demais indigenistas… assim a vida e a morte do nosso Irmão não foi em vão, porque ele ressuscitou, fecundou a terra. O corpo do Irmão Vicente foi desidratado pela própria natureza para que se pudesse ter uma ideia dos princípios pelos quais Kiwxi viveu e como ele morreu dando a vida para que os Enawenê-nawê tivessem mais vida, em especial, sua terra demarcada. Assim, com pessoas nobres desta natureza temos esperança, pois nós, a Igreja, podemos sonhar em Bem Viver, ter mais vida, alcançar a vida plena.

Uma convicção nos acompanha: muitas Missões não desejavam matar a alma dos indígenas; o genocídio e o etnocídio não eram de forma alguma um desejo dos missionários. Foi importante Pierre Clastres alertar para estas possibilidades, pois assim ficamos mais alertas, mas quem deseja a morte dos indígenas é o capitalismo.

Opção jesuíta pelo trabalho com os indígenas

Para quem pesquisa mais a fundo, fica claro nas opções que a maioria dos jesuítas faziam pelo trabalho com os indígenas tinha como objetivo a vida cada vez mais plena para os indígenas, que esta vida plena tinha em vista “salvar almas”, isso estava associado a auxiliar para que chegassem aos céus, pois a vida não é somente na terra. Isso é algo que os missionários tinham claro, pois não se pode querer o bem viver somente num momento da vida, mas transcender estes momentos do Reino de Deus na terra com irradiações para a eternidade. Ou seja, com a alegria da comunhão, da partilha e vida em abundância, a graça de Deus poderia levar aos lugares mais distantes, aos céus.

Esta viagem se dá, tanto para dentro de nós mesmos, tanto quando vemos e compreendemos nossas possibilidades enquanto seres humanos abertos ao Transcendente, quanto nas viagens que fazemos para fora de nós, passando pelo cuidado da criação, pela vida fraterna com outros seres humanos para chegar ao Deus Criador, uma compreensão que traz equilíbrio e vida plena. Assim nos afastamos da ganância e outros vícios que nos levam ao acúmulo de capital e a nos sobrepor aos outros, destruindo a criação e corrompendo a sociedade, pois, como diz Santo Inácio de Loyola, somos criados para louvar, reverenciar e servir a Deus e aos nossos irmãos.

Com disposição e discernimento podemos chegar ao lugar onde Deus nos quer, sem pretensão de tomar o lugar do outro, ir além de nosso egoísmo para nos tornar indiferentes para estar somente onde o Deus Criador nos quer. Assim o Pai Criador nos enviou Jesus Cristo que nos chamou para estar com ele, para experimentar como Ele a alegria e a dor de sermos o que somos, filhos de Deus encarnados neste mundo de pecado, que nos atrai para a morte. Contudo, depois desta presença sagrada na terra toda a criação geme em dores de parto pela manifestação deste Filho e Deus e de todos os seres humanos, também os indígenas Por isso estamos cheios de esperança, porque Deus já venceu o pecado e a morte em Cristo Jesus e nos chama a fazer a mesma experiência no dia a dia.

Neste momento, como jesuítas, estamos vivendo um kayros, fazendo o nosso discernimento para pensar o que podemos fazer na Missão indígena com os pés no chão e pensando alto, num projeto da CPAL e da Igreja a partir de Laudato Si’. A presença dos jesuítas nas fronteiras por iniciativa do Padre Fernando Lopes tem que chegar a criar raízes, como diz o Padre Roberto Jaramillo, criar vínculos dentro de um programa mais interligado e orgânico na SJ e na Igreja.

No Mato Grosso o kayros do trabalho com os indígenas possui um aprendizado histórico que era mais intuitivo que reflexivo e os passos dados com coragem e desprendimento pelos indigenistas missionários jesuítas articularam este resto de Israel que ainda está nesta Missão desafiante. Penso que deram o tiro errado, o inimigo era outro, pois se destruímos o planeta com agrotóxicos, todos vamos morrer, os fazendeiros também. A casa comum que é o planeta terra, associada à mãe-terra, nas palavras do grande pajé Davi Kopenawa:

Direito do nosso lugar, onde vivemos, precisa conhecer nossa mãe-terra. Precisa explicar porque índios quer terra! Nosso mundo, Machitaoriri […]. Nossos antepassados já conheceu nossa terra, nossa mãe que cuida da água, dos rios, das cachoeiras, dos pássaros… Escolheu caminho bom para nós. […] Terra carrega a água que a gente usa, bebe… Não é para ficar sujando rio, ficar doente. Nossa Mãe é generoso para todos os povos do nosso planeta… Vocês aprende, cuidar primeiro dos direitos da floresta amazônica […]. Precisa aprender olhar longe, árvore em pé… pele da terra!” (Seminário 10 anos da Declaração dos Direitos Indígenas, UFRR, 21-11-2017).

Para os Enawenê-nawê, o mundo começa no pátio de sua aldeia Halataikiwa, agora com 22 casas comunais (hakolo) e uma Casa de Flautas (Yãkwa ehakolone), onde são armazenados os instrumentos musicais e algumas indumentárias rituais. Este é o lugar onde começa propriamente o Bem Viver, a rituais que equilibram todos os seres vivos na terra e os espirituais. Dali brota a iniciativa das pescarias, da roça, as plantações de mandioca, de milho etc.

Os Macuxi falam da casa geral (yewî´ta) e os Wapichana falam da nossa casa como udapu. Os Warao, que estão em situação de calamidade na Venezuela, por isso vêm para o Brasil para ter comida, saúde e educação. Na visita aos abrigos dos venezuelanos, encontrei mais de 400 crianças Warao e Panare em situação de vulnerabilidade em PacaraimaBoa Vista e Manaus. Na parede do abrigo do município de Pacaraima, divisa entre Roraima e Santa Elena (Venezuela), está o letreiro ilustrativo em língua Waraujanokoida… “nossa casa grande”, a casa comum. Isso lembra o alerta de Davi Kopenawa, que os céus vão cair se continuarmos a destruir o planeta terra. Está chegando o Natal e parece que não tem mais lugar para os indígenas, como a Sagrada Família não encontrou hospedagem em Belém e teve que retornar para a gruta que abrigava os animais!

Notas:

[1] Assim acabaram os Beiço-de-Pau, ou Tapayuna ou Ivetin indo de caminhão até Cuiabá e ali pegaram o kamri titá para o Xingu. Por isso o Irmão Vicente Cañas deixa registrado uma frase no final do Diário que mais parece uma incógnita. Como até homens iluminados, com intuição do que deve ou não ser feito, podem ser induzidos a fazer o que não querem? “Tem que notar que o índio ficó como bobo e sem minha iniciativa” (em 01/05/1970). (Nota do entrevistado)

[2] Os outros envolvidos no crime “morreram” ou tiveram a punibilidade extinta em razão da idade. (Nota do entrevistado)

[3] Os rituais de pescarias coletivas estão apresentados de forma bela no vídeo Yãkwa: Banquete dos Espíritos, CTI. (Nota do entrevistado)

[4] O Cimi e a Opan estiveram sempre juntos nesta Missão. (Nota do entrevistado)

[5] Os indígenas de Roraima acreditam em Kanaimé, uma entidade que foi popularizada na cultura local, muitas vezes associada ao mal. Assim, quando alguém da comunidade falece, geralmente este acontecimento seria causado por Kanaimé, algo semelhante ao Bope, entre os Boe (Bororo) no Mato Grosso. Quando uma pessoa mostra traços de perversidade seria por causa do espírito de Kanaimé que assim a inspira e, geralmente, a acusação de feitiçaria recai em alguém. Os Wapichana afirmaram-me que no caso de feitiço, é necessário pegar água e passar esta água por dentro do tapiti na hora do banho para tirar o feitiço da pessoa. Neste sentido, o princípio de reciprocidade exige a vingança. No caso dos Boe, eles matam uma onça para retornar ao equilíbrio diante desta perda. (Nota do entrevistado)

Vicente junto com Pe. Thomaz Lisboa fez os primeiros contatos com os Enawenê-nawê e os Mÿky. Era a presença dele junto aos povos, respeitando sua cultura e participando nas suas vidas o que era importante e não o que ele realizou | Foto cedida pelo entrevistado

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