“Queria que as pessoas nos enxergassem, que eu não fosse impedido de entrar em qualquer Fórum pelas minhas roupas”, diz advogado indígena

Em encontro da Renap, o advogado Dinamam Tuxá, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), relatou a criminalizarão que sofre no exercício da sua profissão por ser indígena

Por Catiana de Medeiros, da Página do MST

A criminalização dos movimentos populares e o Sistema de Justiça estiveram entre os principais temas de debate do encontro estadual da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap) no Rio Grande do Sul, realizado dias 30 de novembro e 1º de dezembro no Memorial Luiz Carlos Prestes, em Porto Alegre. O evento reuniu dezenas de advogados, estudantes e professores de cursos de Direito, além de representantes de diversas instituições e entidades, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

O encontro estadual acontece anualmente e desta vez tratou dos desafios da advocacia popular, das demandas jurídicas dos movimentos socais e da construção do planejamento da Renap para os próximo período. A programação começou na noite de sexta-feira, com lançamento do e-book “Defensoria Pública, Assessoria Popular e Movimentos Sociais e Populares: Novos Caminhos Traçados na Concretização do Direito de Acesso à Justiça”. Na sequência, deu-se início aos debates com as participações do advogado Dinamam Tuxá, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB); da juíza Ana Inês Latorre, da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD); da defensora Pública Mariana Py, da Defensoria Pública do Estado (DPE/RS); e de José Carlos Moreira, professor da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUC/RS) e ex vice-presidente da Comissão de Anistia.

Na ocasião, o advogado Tuxá relatou a criminalização investida contra os povos indígenas, especialmente depois que eles travaram de forma mais intensa a luta pela demarcação de seus territórios, a partir da década de 70, na região Nordeste do país. Ele acrescentou que muitos foram perseguidos e assassinados, sendo o Estado brasileiro responsável por estas mortes. “O tiro que está nos matando parte do Congresso Nacional, mas infelizmente ninguém faz nada. O STF [Supremo Tribunal Federal] é o poder que mais vem faltando na República. Nós estamos pagando com as nossas vidas por defender o bem viver, que é ter uma área demarcada para podermos praticar nossos conhecimentos tradicionais e a nossa produção física e cultural. Por defender nossos direitos é que somos criminalizados e assassinados com o braço do Estado e o poder da polícia”, lamentou.

Tuxá denunciou ainda a criminalizarão que sofre no exercício da sua profissão. “Eu, como advogado, não posso usar meu colar, porque ele [juíz] manda eu sair da audiência. Eu fico inquieto e saio às vezes chorando, porque é a minha identidade e quero defender os direitos indígenas da forma que eu nasci e cresci. Mas infelizmente sou impedido. Queria que as pessoas nos enxergassem como sujeitos, que eu não fosse impedido de entrar em qualquer Fórum pelas minhas vestimentas”, complementou.

Durante sua participação no debate, o professor Moreira defendeu a necessidade de construir estratégias e ações para mudar a “cultura preconceituosa e elitista” que há no Sistema de Justiça e que “estabelece medidas violentas contra movimentos populares e demandas de grupos vulneráveis que lutam por uma sociedade mais justa”. “Temos que mudar a relação do Sistema de Justiça e movimentos sociais e pensar o que fazer no âmbito do ensino. Espanta saber que alunos e professores têm uma visão deturpada e preconceituosa dos movimentos sociais. Espanta muito verificar que são poucos os professores que são contra a reforma trabalhista. É algo impactante e talvez seja um alerta para pensarmos como construir estratégias”, disse.

Mariana, que atua há 11 anos como defensora pública, ressaltou que é recorrente a utilização do direito penal para a resolução de questões sociais, o que muitas vezes acaba na criminalizarão dos movimentos populares e de defensores de direitos humanos. Ela também destacou que o Estado tem ampliado o seu poder investigatório e punitivo e que há seletividade na aplicação das leis. “A legislação tem possibilitado o aparto estatal para fins de criminalizarão de movimentos e defensores de direitos humanos. É isto que temos visto em diversos casos no país e no Rio Grande do Sul. Estamos vivendo uma exceção, precisamos de muita luta e resistência”, apontou.

Para Ana Inês, é necessário que os juízes considerem os aspectos sociais nos julgamentos que fazem. Ela afirmou que muitos conflitos são decorrentes da ausência de políticas públicas e pela autorização judicial para que policiais militares façam uso de violência em ações de reintegração de posse, assim como ocorreu em junho deste ano durante o despejo de famílias que ocupavam um prédio abandonado pelo Estado no Centro de Porto Alegre. “Houve o uso desmedido de violência contra a ocupação Lanceiros Negros, com autorização judicial. Ainda hoje a notícia que se tem é que o prédio continua vazio. Foi oferecido como saída para as famílias o aluguel social, mas elas têm que locar por conta própria e conseguir fiador. Por conta disto, não estão conseguindo passar por estes entraves”, declarou.

A juíza observou ainda que nos últimos anos têm aumentado o número de pessoas em situação de rua e que as soluções encontradas pela estrutura de Estado para este tipo de problema não são suficientes. “É situação de calamidade social. Nos deparamos com um Estado que está de costas para o cidadão. O desmonte do Estado, a criminalização e a repressão seguem em aumento. O imperativo para nós é a unidade e encontros como este são uma nova tentativa para construir e fortalecer nossas redes”, sinalizou.

Manifestação da Renap

O encontro estadual da Renap foi realizado com o apoio do MST, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Forum de Justiça, Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU), Acesso Cidadania e Direitos Humanos, Fundação Luterana de Diaconia (FLD) e Mais Direitos, Mais Democracia. Durante o evento também teve debate sobre conflitos socioambientais e lançamento da cartilha “O Bom Uso da Terra e os Males do Agrotóxico no Brasil”, da Fundação Luterana de Diaconia (FLD) e do Instituto Preservar. Ao final, a rede divulgou uma nota oficial marcando seu posicionamento diante a atual conjuntura. Confira:

NOTA DO ENCONTRO ESTADUAL DA RENAP-RS

A Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares no Rio Grande do Sul (RENAP-RS), reunida nos dias 1º e 2 de dezembro no Memorial Luís Carlos Prestes, em Porto Alegre/RS, vem manifestar seu compromisso com a construção popular de uma produção agrícola que respeite o meio ambiente, os territórios das comunidades originárias e tradicionais, contribuindo para a sustentabilidade social. Desta forma, repudia o modelo econômico e social imposto pelo agronegócio, concentrador de terra, produtor de commodities, que acirra a violência no campo, afeta o meio ambiente e saúde da população brasileira.

É importante a construção de uma sociedade mais inclusiva, em que a ordem econômica, realmente, observe os ditames da justiça social e respeite o meio ambiente (art. 170, da CF). A imposição de transgênicos e o uso de agrotóxicos estão trazendo danos irreparáveis a cultivos e produções sustentáveis, que emancipam a população das regras de um mercado internacional, que só se importa com sua margem de lucro. Muitas vezes, as estruturas de Estado, instituições públicas são instrumentalizadas para servir a estes interesses de poucos, em prejuízo de todos. O respeito ao meio ambiente e à produção de alimentos saudáveis significa efetivar uma vida digna. A RENAP, então, coloca-se para a defesa da agricultura familiar, da produção agroecológica, por conseguinte, da saúde e do meio ambiente (artigos 6º e 225). Nesta seara jurídica, soma-se na resistência e luta dos movimentos populares por um país melhor.

O Estado do Rio Grande do Sul possui uma legislação mais protetiva da saúde e do meio ambiente da população, vedando uso e comercialização de agrotóxicos e biocidas que não sejam autorizados em seus países de origem, conforme § 2º do artigo 1º da Lei Estadual n. 7.747, de 22 de dezembro de 1982. Todavia, esta Lei está sendo atacada pelas empresas transnacionais produtoras de agrotóxico, que junto ao Partido Democratas (DEM), impetrou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF nº 221 no Supremo Tribunal Federal-STF. Entidades socioambientalistas, assessoradas pela RENAP, entraram com Amicus Curiae, na referida ADPF manifestando-se a favor da Lei, que visa o bem comum. Esta defesa se dá em prol de toda a sociedade gaúcha.

A conjuntura política brasileira mostra-se com diversas medidas de retrocessos às conquistas e direitos da população. Importante a mobilização, que impeça tais expedientes. O agronegócio intensifica a desigual distribuição fundiária no Brasil, bem como o mau uso da terra multiplica violações, este modelo predador avança com normas violadoras, como no caso da Lei nº 13.178/2015 e da Lei 13.465/2017, que tratam, respectivamente, da faixa de fronteira e da regularização fundiária. Essas normas também se encontram em discussão no STF. Por tudo isso, a presente manifestação da RENAP ao lado dos movimentos e organizações populares, em luta pelo acesso à terra e na defesa da vida.

Imagem: Encontro Estadual da Renap – Foto: Catiana de Medeiros.

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