Lei Maria da Penha: Quando Cileide achava que nada mais ia mudar, tudo mudou

No dia em que a lei Maria da Penha entrou em vigor, em 2006, pernambucana denunciou agressor. Segundo ONU Mulheres, 17% das nordestinas já foram agredidas alguma vez

Por Felipe Betim, El País Brasil

“Eu acho até bom contar minha história, porque chega mais longe, chega em mais pessoas que vivem o que eu vivi”, começa dizendo Cileide Cristina da Silva, que por muito tempo sentiu na pele o fato de ter nascido mulher e pobre em uma cidade do nordeste do Brasil. “Outro dia eu e minha filha estávamos olhando que eu tenho dois perfumes fechados. Aí eu lembrei que ele dizia que mulher que usava perfume era para ‘botar gaia’ [trair]. Minha filha não podia usar creme no cabelo, ele dizia para colocar óleo de cozinha. Hoje a gente ter um perfume fechado é muito, sabe? E faz a gente pensar em coisas que já passou”, prossegue. “Ele” é seu ex-marido Francisco, que durante duas décadas agrediu Cileide de todas as formas possíveis.

Mas na manhã de um sábado de dezembro de 2017, em uma barraca que fica embaixo de uma passarela no acostamento da rodovia BR-101, Cileide trabalha tranquila. Vende água de coco, amendoim, biscoitos e frutas para os motoristas que passam por lá, na altura do município de Cabo Santo Agostinho, região metropolitana do Recife (Pernambuco). Sua jornada é longa e vai até o fim do dia, mas ela tem a certeza de que, ao chegar em casa, poderá dormir em paz. Há 11 anos, quando achava que nada mais ia mudar, tudo mudou: encontrou o apoio de um centro de mulheres da cidade, juntou coragem e denunciou seu algoz. Fez isso no mesmo dia em que a lei Maria da Penha entrou em vigor. “No dia 22 de setembro de 2006 aconteceu tudo”, diz ela.

Cileide, hoje com 48 anos, é considerada a primeira mulher a usufruir da lei Maria da Penha no Brasil, essencial para romper o ciclo de violência ao qual estava submetida. Sua história é a mesma de outras milhões de mulheres que sofrem nas mãos de homens e demonstra a importância de uma legislação que aumentou o rigor das punições sobre os crimes praticados contra elas. Mas ainda que represente um avanço no combate à violência de gênero no país, ela não impediu que, nos últimos 12 meses, 11% das mulheres nordestinas fossem vítimas de violência psicológica, 5% de agressões físicas e 2% de estupro no contexto doméstico e familiar, segundo um estudo divulgado em novembro deste ano pela ONU Mulheres. Elaborado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com o Instituto Maria da Penha e o Institute for Advanced Study in Toulouse, o documento, que foca na região Nordeste, também revelou que 17% das mulheres nordestinas foram agredidas fisicamente pelo menos uma vez na vida.

Cabo de Santo Agostinho (200.000 habitantes), a cidade onde ainda mora Cileide, registrou nove feminicídios em 2016 e oito até julho de 2017, segundo dados da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco reunidos pela ONG Centro Mulheres do Cabo. O município, que é o décimo mais violento do país segundo o Atlas da Violência do IPEA, está em sexto lugar no ranking de cidades de Pernambuco mais violentas para mulheres. Em todo o Estado, 280 feminicídios foram registrados em 2016 e 181 até julho deste ano.

O estudo da ONU Mulheres também revela uma transmissão da violência entre gerações: quatro de cada dez mulheres nordestinas que cresceram em um lar violento sofreram o mesmo tipo de violência na vida adulta. Ou seja, há uma maior incidência de violência doméstica “em lares onde a mulher, seu parceiro ou ambos estiveram expostos à violência na infância”. Cileide concorda: “Quando uma mulher passa a ser agredida quando casa, é porque a infância dela já foi ruim. Ela se coloca naquela posição de casar cedo, de não estudar, por conta da infância”, diz ela, que conta ter passado por alguns traumas.

Seus pais se separaram quando ela tinha dois anos — até hoje ela não sabe o motivo, mas garante que sua mãe não era agredida — e ela acabou entregue para tias e avó. Rejeitada, cada ano mudava de casa. Praticamente não ia na escola e até hoje é analfabeta. Muito apegada ao pai, foi morar com ele aos 10 anos, mas sua vida ficou pior do que já era: quando sua madrasta brigava com ele, algo que ocorria com frequência, os dois acabavam expulsos. Decidiu então morar com a mãe, mas, para ajudá-la, começou aos 12 anos a trabalhar como babá. Teve então de enfrentar empurrões, gritos e tapas de suas patroas.

Ansiosa por deixar para trás uma infância difícil, Cileide decidiu se casar com Francisco quando tinha apenas 15 anos e logo após engatar o namoro. Ele era dez anos mais velho e parecia uma boa pessoa. Era o momento, ela pensava, de finalmente ser feliz. “Mas o agressor tem esse dom, de esconder o que ele realmente é. Quando a mulher vem perceber, ela já tá presa”, afirma. Isso porque um ano depois de se casar, e quando já estava grávida do primeiro dos quatro filhos, começaram as agressões verbais. “Ele começou me proibindo de ver minha família. O começo de tudo é isso. Ele dizia que minha família ia me botar no mau caminho, ia dar conselhos ruins pra mim. Ele já sabia o que ia fazer pela frente e sabia que minha família ia atrapalhar”, conta Cileide, que tampouco podia dar ou receber um simples bom dia da vizinha. “Eu passava semanas ou meses sem ver minha mãe, e isso porque ela morava numa rua e eu na outra”, lembra.

Enquanto relata suas memórias, emenda com algum comentário sobre o que hoje pensa à respeito do que acontecia. Sua fala é simples e seu relato, seguro. Depois de passar por acompanhamento psicológico na ONG Centro das Mulheres do Cabo, ela hoje compreende a lógica machista que envenenava seu casamento. “Eu achava normal não poder ver minha família, achava que era ciúmes. Tem mulheres que até hoje acham que ciúmes é uma coisa boa, que é bonito, que ele ama. Mas ciúmes é uma doença, um vírus que quando toma conta, acabou-se. Não tem nada a ver com amor”.

Um dia, quando ela tinha uns 18 anos e sua segunda filha já tinha nascido, Francisco levou uma “colega” para almoçar em casa. Dizia que era prima dele, mas uma vizinha dissera ter visto os dois juntos. Cileide então se recusou a servir comida para a moça. “E aí ele não teve demora, pegou todas as panelas que estavam no fogão e jogou tudo em cima de mim. Na frente dela. Daí em diante começaram as agressões físicas”, recorda.

A lista de agressões é longa e envolvia também os quatro filhos do casal — dois meninos e duas meninas. Quando grávida, aliás, Cileide chegou a levar pancadas em sua barriga. Se acontecesse algo com o bebê, “melhor assim, uma boca a menos para sustentar”, dizia ele. De madrugada, Francisco costumava acordar os filhos para espancá-los. Ele dizia o seguinte para eles: “Sabe que painho é casado com mainha, né? Sabe que marido e mulher tem filhos através de uma relação que eles fazem a noite, né? E mainha arranjou um homem lá fora e tá fazendo com ele, e não quer mais fazer com painho. Aí por causa disso painho ficou aperreado e vai bater em vocês. Mas vocês não tão apanhando porque painho tem raiva de vocês não. Painho ama vocês. Vocês vão apanhar por quê? Porque mainha tá com outro”.

O espancamento só parava quando Cileide finalmente cedia aos seus desejos. No dia seguinte, acordava envergonhada dos filhos, dos vizinhos… Apanhava em silêncio que para que ninguém escutasse. Não adiantava. “Ele ia pro lado de fora de casa e ficava dizendo em voz alta, para todos escutarem: ‘Isso é pra tu aprender a me respeitar, pra você saber que eu sou o dono da casa, que eu mando em tu e nos meninos'”. Mandava tanto que ela e seus filhos só podiam usar roupas doadas, enquanto Francisco geralmente se vestia de modo impecável. “Eu não tinha prazer em nada. Tudo na minha vida era decidido por ele. Eu não tinha direito de fazer almoço diferente, de escolher a roupa que eu ia vestir…”, recorda.

Quando chegava o ano novo, Francisco reunia Cileide e os filhos para prometer que iria melhorar. A cada ano novo, ela pensava que sua história seria diferente dali em diante, que sua felicidade teria que vir. Mas cada dia era pior. “As amizades dele eram todas machistas. Na época eu não entendia o porquê daquilo. Ele dizia que isso era desde o início dos tempos. Que desde que o homem pisou na terra, já tinha direito de trair. E que mulher apanha, porque é desaforada”, recorda. “Também falava homem tinha que bater na língua da mulher, que o avô dele fazia isso, que o pai fazia isso e que com ele não seria diferente. E que homem é homem, e mulher é mulher”. E assim foi sua vida durante 20 anos.

Com medo de ser morta, não pedia ajuda aos seus familiares e nem denunciava Francisco para a polícia. Embora fosse ela quem de fato trabalhasse pesado — sempre como ambulante —, ele costumava dizer que, sem sua presença, os filhos morreriam de fome. A humilhação era constante e só aumentava. Até que, no dia 20 de setembro de 2006, sua filha ganhou um panfleto sobre a lei Maria da Penha, que entraria em vigor dias depois. Encorajada por ela e por uma “irmã” da igreja evangélica que frenquenta, decidiu buscar auxílio na ONG Centro das Mulheres do Cabo. “Quando eu cheguei lá, a recepção foi tão bonita… Me abraçaram sem nem me conhecer. Fiquei deslumbrada. E também assustada, com medo. Meu pensamento era que ele ia descobrir, que alguém ia contar pra ele”, recorda.

Ela levou então um pequeno gravador para registrar as agressões verbais e físicas que sofria e, dessa forma, gerar a prova contra Francisco. Mas ao chegar em casa se deparou com ele, já pronto para agredi-la. No meio da confusão, “por sorte ou por azar” o panfleto sobre a lei Maria da Penha caiu “bem no pé dele”, ela conta. “Quando ele leu, me fez comer pedacinho por pedacinho. Disse que eu tava me movimentando pra me botar na cadeia e que, no dia em que pisasse na delegacia por causa disso, o mundo ia se acabar”. Sua filha mais velha interveio e ele então parou. Saiu de casa, bebeu e voltou para a última de suas agressões. “Já chegou pegando minha filha pela garganta, começou bater minha cabeça na parede e na geladeira… No meio dessa agonia, agarrou minha filha de novo e jogou ela sob um espelho que a gente tinha na parede. Quando ela caiu, o vidro caiu tudo em cima dela. Ela ficou toda cortada”, recorda.

Cileide se apartou da confusão, se escondeu e pediu socorro. Ligou para o 190 e para o centro das mulheres. Seu agressor deixou então a casa tranquilamente para ir trabalhar, mas horas depois acabou detido. No mesmo dia em que a lei Maria da Penha entrou em vigor. O delegado, recorda Cileide, nem estava preparado para aplicar a novidade. Mas deu certo: Francisco ficou preso por quatro meses e ela pôde respirar aliviada.

Depois ele até tentou voltar para casa, mas ela não apenas rejeitou suas investidas como conseguiu que a juíza emitisse uma ordem de afastamento. Francisco também chegou a processá-la para conseguir pensão, mas também não obteve sucesso. Na ocasião, Cileide ainda abriu mão de demandar qualquer tipo de pensão alimentícia. Queria se ver livre de seu marido, que acabou condenado a quatro meses de prisão. Como já havia ficado preso por este período, não precisou voltar para lá. Mudou-se para uma cidade vizinha e nunca mais fez qualquer tipo de ameaça. “Ainda tenho medo. Não é o pavor de antes, mas tenho medo de dar de cara com ele, sabe”, diz Cileide. “Meu filho mais velho também tem medo e ainda vai na casa dele. Ele fala mal de mim, mas minha nora, que é uma filha pra mim, sempre me defende”.

Hoje, com seus filhos já crescidos — 30, 28, 20 e 18 anos —, cinco netos para ajudar a cuidar e genros e noras incorporados à família, Cileide finalmente encontrou a felicidade. “Tudo tudo tudo mudou. Não existe mais nada daquele passado, só as lembranças, que a gente só busca quando necessário. Até as fotos daquela época mancharam, do nada. Não tem uma”, conta, orgulhosa de hoje poder comprar uma roupa nova ou escolher o que vai comer. “São coisas pequenas do cotidiano que, para mim, é viver. Eu to vivendo, to dominando minha vida, meus passos. Nesses 11 anos foram tantas descobertas, tantas coisas boas acontecendo… Minha filha diz que eu sorrio até quando o vento passa”.

Imagem: Cileide Cristina da Silva, durante a entrevista. ALEXANDRE GONDIM.

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