Precisamos falar sobre gênero

Enquanto a precarização da vida dilui vínculos e constitui novas subjetividades, a construção política das inseguranças pode obscurecer os circuitos reais em que essa precarização se estabelece. Diante de mudanças profundas no mundo do trabalho e com a financeirização da vida, trata-se da mobilização política de estereótipos e preconceitos presentes na sociedade para ativar inseguranças e situá-las como questões de ordem moral. 

Por Flávia Biroli, no blog da Boitempo*

As fronteiras entre o que é conversa de casa, coisa de família ou problema de cada um e o que é considerado um problema coletivo e que merece atenção pública configuram uma questão política fundamental. A história dos feminismos pode ser lida como a das formas assumidas pela contestação dessas fronteiras. As mulheres têm reivindicado que seja reconhecida a relevância política de seus corpos, das violências sofridas no cotidiano e dentro de quatro paredes, do trabalho que realizam todos os dias de forma quase invisível e sem o qual a sociedade se desorganizaria profundamente.

Não há nada de natural na violência contra as mulheres e na exploração do seu trabalho. Não há, também, qualquer explicação natural para que tenha se tornado mais intensa a fusão entre o feminino e a maternidade no processo histórico em que os homens brancos, por outro lado, tornavam-se “indivíduos” definidos abstratamente por sua condição de liberdade. O controle sobre a capacidade reprodutiva das mulheres também tem uma história bem concreta e matizes que mostram que as preocupações que já ganharam a forma de políticas públicas, de temas sensíveis, não foram sempre as mesmas. Uma das variáveis históricas importantes é a relação entre religião e política. Mas mesmo dessa ótica, muito se modificou ao longo do tempo e a história das instituições religiosas, na sua relação com o Estado, explica mais do que textos originais e fundamentos eclesiásticos.

Em todos os casos, estamos falando de arranjos que tomam forma nas relações de poder cotidianas e nas instituições, que são ativados no âmbito familiar, na ação de organizações da sociedade civil e em políticas e normas no ambiente estatal.

Assim, apresentá-los como naturais é difundir falácias, enganos. É o que se passa na campanha contra o debate sobre gênero, que tem sido organizada por setores religiosos conservadores, católicos e evangélicos, em diferentes países, denunciando supostas investidas contra a dicotomia “natural” entre os sexos, o desenvolvimento “natural” das crianças e o exercício da autoridade pelas famílias. Discursos pseudocientíficos são utilizados para confirmar a ordem estabelecida, posicionando o conhecimento sobre as relações de gênero produzido há décadas em universidades e centros de pesquisa ao redor do mundo como um conjunto de ideias cujo defeito maior é o de tomar posição em uma ordem injusta e violenta, defendendo o valor das vidas das pessoas em sociedades plurais e diversas independentemente de como se definem suas identidades e de como se organiza sua vida sexual e afetiva.

Nas disputas atuais, há bem mais do que crenças religiosas e convicções compartilhadas. Trata-se da mobilização política de estereótipos e preconceitos presentes na sociedade para ativar inseguranças e situá-las como questões de ordem moral. Medos e inseguranças quanto ao futuro das crianças e dos próprios adultos são mobilizados como um elemento central na ofensiva conservadora hoje. O debate sobre gênero tem sido conveniente para a canalização pública desses medos. Mobilizam um fantasma, o de que o que coloca em xeque as vidas das crianças é seu contato com visões plurais e modificadas da sexualidade, dos afetos, da conjugalidade.

Com base no Índice de Homicídios na Adolescência, um levantamento realizado pela Unicef, pela Secretaria dos Direitos Humanos, pelo Observatório das Favelas e pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), divulgado em outubro de 2017, projeta para o período de 2015 a 2021 a perda da vida de 43 mil adolescentes brasileiros, numa média de 16 assassinatos de crianças entre 12 e 16 anos por dia. Outros dados, divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que, em 2016, houve registros de 185 estupros por dia, em média, no Brasil. No mesmo ano, 4.657 mulheres foram assassinadas, com mais de 10% dos casos classificados como feminicídio. Dados nada tranquilizadores, parece-me, para quem tem filhas e filhos, sobretudo se são negros e vivem na periferia de grandes cidades. Enquanto isso, na cena pública brasileira, nos legislativos e nas igrejas, tem sido propagado que as famílias e a infância são ameaçadas pelo debate sobre gênero, pelo combate à homofobia e, claro, por Judith Butler.

Em outra frente no debate atual, a falácia é que a violência está na livre decisão de uma mulher quando interrompe uma gestação não desejada e não no assassínio de filhas e filhos já vivos de tantas delas. Maternidade compulsória e luto compulsório são parte da vida de muitas mulheres brasileiras. As que decidem interromper uma gestação não desejada são criminalizadas e humilhadas, as que são mães nas periferias do país temem constantemente pela vida dos filhos. Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 181/15) aprovada recentemente em Comissão Especial na Câmara dos Deputados pode tornar crime o aborto nos casos que hoje constituem exceção à lei penal, como o de gestação resultante de estupro. Quem aborta no Brasil, em condições precárias, são mulheres comuns, mulheres que já são mães, de diferentes idades, crenças e regiões do país. É o que mostram os dados da Pesquisa Nacional de Aborto (2016) e é, também, o que foi exposto, corajosamente, por Rebeca Mendes, na ação em que solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o direito de interromper uma gestação indesejada com segurança e sem que seja, por isso, enquadrada como uma criminosa.

Os grupos mobilizados contra o debate sobre gênero na cena política têm, no entanto, outras preocupações. Em nome d“a família” (de qual, afinal?), seria preciso manter códigos morais que alimentam o sofrimento e os riscos reais para a integridade das pessoas e para os vínculos entre elas. Ao mesmo tempo, as bases reais desses riscos seguem intocadas em suas abordagens.

Os processos de precarização da vida que estão, de fato, em curso remetem a mudanças profundas no mundo do trabalho e à financeirização da vida, assim como à reorganização das relações em circunstâncias de precarização dos vínculos. A vulnerabilidade que produzem vem da desproteção e do encolhimento de soluções coletivas para os muitos desafios que confrontamos em um mundo em transformação.

Com menor proteção social e a retirada de uma série de direitos, a possibilidade de viver de maneira mais plena, de garantir acesso a educação para filhas e filhos, de ter acesso a recursos e equipamentos de cuidado enquanto crescem, de ter acesso a tempo para a atenção amorosa, é cada vez mais remota para a maior parte da população. A fragilidade que podemos tomar como parte da vida humana é, assim, transformada no que Isabel Lorey (State of Insecurity: Government of the Precarious, Verso, 2015) definiu como a indução, pelo neoliberalismo, da “precariedade como uma forma de vida” que constitui sujeitos que têm a insegurança como preocupação central. Meu ponto é que enquanto a precarização da vida dilui vínculos e constitui novas subjetividades, a construção política das inseguranças pode obscurecer os circuitos reais em que essa precarização se estabelece.

A privatização de várias dimensões da vida, que se estabelece com o avanço do neoliberalismo como lógica ampla, é acompanhada hoje de esforços para a reprivatização de temas que foram trazidos a público pelas lutas feministas, LGBT e antirracistas nas últimas décadas. Há um elemento capcioso que remete justamente ao problema com que comecei esse texto, o das fronteiras entre o público e o privado, entre o que teria e o que não teria relevância política: a temática de gênero é agora ampliada na cena pública por atores conservadores justamente numa reação à politização e publicização de injustiças e violências realizada pelos movimentos feministas e LGBT.

Isso explica por que a produção de conhecimento é um alvo da ofensiva conservadora. A contestação feminista das fronteiras entre o que é e o que não é reconhecido como problema público é um aspecto central dos estudos de gênero. Joga luz sobre hierarquias, explicando que são feitas na história, costuradas em normas e instituições e que podem, como tal, ser desfeitas e transformadas. A contestação que assim vem a público inclui relatos de experiências, permitindo que sejam analisadas e percebidas como mais do que um problema individual, como realidade compartilhada. Inclui dados e fatos que nem sempre foram considerados quando se falava do “bem público” e do próprio interesse das mulheres. E pode ferir significativamente uma ordem, a de privilégios longamente resguardados. Pressiona, dessa forma, a agenda pública. No cotidiano e na política, pode incidir sobre posições já estabelecidas.

Aqueles que têm, historicamente, acesso facilitado ao Estado e ao debate público querem garantir que com eles permaneçam as “chavinhas” que abrem e fecham a passagem entre o que ganha visibilidade e é visto como objeto legítimo de preocupação e de discussão pública e o que é legado à invisibilidade – ou à desimportância; ou, ainda, à categoria do ruidoso, impertinente, esquisito porque traz aos olhos e ouvidos trajetórias, histórias e linguagens que nem deveriam estar ali.

Falar sobre gênero é transformar a dor e o cansaço de muitas mulheres em um problema que demanda ação coletiva, reconhecimento público e alternativas construídas também no âmbito estatal. É tornar visível a história de cada garoto ou garota humilhado/a por não se enquadrar aos padrões de masculinidade/feminilidade hegemônicos, mostrando que seu sofrimento individual é replicado em muitas histórias. E, principalmente, que temos responsabilidade conjunta pelas feridas porque, como sociedade, olhamos de lado por muito tempo e aderimos a códigos que colocam, de um lado, quem mereceria respeito e, em um canto qualquer da vida privada, aquelas e aqueles que poderiam ser descartados e desconsiderados em seu sofrimento.

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*Este texto se soma ao “Movimento em defesa dos estudos de gênero” e à campanha #precisamosfalarsobregênero, lançados pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Universidade Federal da Bahia. O movimento toma forma em um contexto de ataques sucessivos a pesquisadoras e professoras, a uma produção de conhecimento ampla e consolidada ao longo de décadas e ao andamento regular das atividades de ensino e pesquisa.

Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução  (Boitempo, 2014).

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