Mapeando favelas ‘desconhecidas’: o crescente papel das cartografias participativas e insurgentes

Por Raine Robichaud, no Rio On Watch

Apesar de a original e mais antiga favela do Rio ter celebrado seu aniversário de 120 anos no mês passado, foi apenas 50 anos depois, em 1947, que as favelas da cidade passaram a ser incluídas nos mapas oficiais da cidade, uma exclusão visual que refletiu exclusões espaciais mais amplas de oportunidades e até mesmo de serviços básicos como entregas do correio. Em anos mais recentes, bairros que não foram mapeados digitalmente também foram excluídos de serviços com base na localização, como o Uber.

Em antecipação à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016, o Google e a Microsoft competiram para ver quem seria o primeiro a mapear as favelas “desconhecidas”do Rio, embora durante o mesmo período de tempo, o Google tenha removido a palavra “favela” de seus mapas online a pedido da prefeitura. Em agosto de 2016 nas Olimpíadas, o Google e a ONG local parceira, o AfroReggae, haviam mapeado 26 das mais de 1000 favelas do Rio. Contudo, a página de seu projeto “Tá no Mapa” sugere que os avanços pararam por aí.

As iniciativas do Google e da Microsoft indicam um aumento da visibilidade das favelas no mapeamento. Entretanto, não importa a aparente sofisticação técnica, pois esses mapas que existem tendem a falhar quanto as representações físicas e sociais mais significativas e práticas das favelas, indicando uma necessidade não atendida de incorporar conhecimento local a essas representações.

Michel Silva, jornalista da Rocinha, fundador do jornal comunitário Fala Roça e criador do Mapa Cultural da Rocinha, notou que “a presença das favelas no Google Maps era muito deficiente”, então ele construiu seu mapa em resposta. O Mapa Cultural documenta mais de 100 pontos locais de interesse, como um parque ecológico, locais de reunião de diversos grupos de ativistas do Rocinha Sem Fronteiras, um coral comunitário e numerosas escolas, creches, e unidades de saúde, todas que servem para destacar a extensão da vida local que está ausente de outros mapas da comunidade.

Além disso, as limitações dos mapas online do Google e dos mapas oficiais da prefeitura incluem a falta de confiabilidade em relação à habilidade das imagens de satélite de distinguir entre um telhado de cimento e uma rua, o que resulta na má representação e na rotulagem incorreta da morfologia em camada das favelas. Em outros mapas, Michel diz que “as favelas –em sua maioria– são borrões verdes que sinalizam floresta. Mas nesses morros existem muitas vidas”.

Michel também critica a diferenciação do conceito de “mapear as favelas” do de “mapear a cidade”. “A favela é cidade” e deve ser representada como uma continuidade do restante da cidade nos mapas, ele argumenta. Embora alguns projetos de mapeamento desenvolvidos localmente usem o formato aéreo padrão do Google como modelo, mudanças sutis mostram que eles foram manipulados para refletir melhor as percepções dos moradores. Descrevendo o Mapa Cultural da Rocinha, Michel disse: “Observe que quando você acessa o site, o mapa não abre em cima da Rocinha. Ele abre mostrando a cidade do Rio de Janeiro. Isso é importante porque a Rocinha também faz parte da cidade”.

O mapeamento participativo

O mapeamento participativo e a cartografia social (também chamada de cartografia insurgente) são termos que descrevem dois diferentes processos que buscam abordar o controle do cidadão sobre o processo de mapeamento. “Mapeamento participativo” pode se referir a projetos com uma variedade de níveis de participação pública em que os cidadãos auxiliam apenas na coleta de dados (como por exemplo estar com equipamentos para tirar fotos das ruas para o Google), ou projetos liderados por organizações comunitárias como a Redes da Maré, em que o processo de mapeamento uniu um projeto de censo comunitário com um projeto para compilar as histórias de bairros individuais no Complexo da Maré.

Como o mapeamento é um processo incremental, cada etapa deve ser avaliada por seu grau de participação. A arquiteta Nicoli Santos Ferraz divide essas fases do mapeamento em “ideia, iniciação, planejamento, coleta de informação e inserção no mapa”. Projetos de mapeamento participativo tendem a empregar a participação do cidadão durante a fase da “coleta de informação”, muitas vezes não incluindo grupos locais nas tecnologias de mapeamento. Alguns exemplos que seguem este modelo incluem o Mapeamento Digital da UNICEF liderado por adolescentes e jovens e o “Tá no Mapa” do Google e do AfroReggae, que envolve o público na coleta de dados, mas a montagem e a formatação final do mapa é determinada por partes externas. É importante notar o real valor que também resulta deste tipo de abordagem: o projeto de mapeamento do UNICEF, por exemplo, integra um aplicativo para capturar evidências de injustiças que, de outra forma, não seriam tornadas públicas.

A cartografia social

A cartografia social se diferencia dessa metodologia na medida em que os participantes recebem autonomia em todos os processos do projeto. Fransérgio Goulart, um membro ativo do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, descreve a cartografia social ou insurgente como sendo “construída pelo processo autônomo e solidário de grupos sociais que ao adquirirem consciência política sobre o papel da cartografia, passam a replicá-las no seu fazer cotidiano fortalecendo as suas lutas por direitos identitários, territoriais, por políticas públicas e no enfrentamento ao racismo, machismo e ao capitalismo”. Ele diz que esse processo autônomo é essencial para o afastamento do “processo normativo de mapeamento institucional”. A abordagem da cartografia social encoraja o mapeamento mental–representando a experiência individual no espaço–através de toda e qualquer forma de expressão, incluindo o desenho à mão e representações e em quadrinhos, livre da pressão de usar símbolos ou formatos consistentes.

A cartografia social ganhou fama com o sucesso do projeto da Nova Cartografia Social da Amazônia na cidade de Manaus, e tem sido utilizado pelo Fórum de Juventudes em diversas favelas da cidade e pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) para mapear os efeitos da militarização nas vidas das mulheres no Caju e em Manguinhos. A metodologia da Nova Cartografia Social da Amazônia exige altos níveis de controle por participantes: “pesquisadores ensinam técnicas de GPS e de mapeamento, além de conversar com os agentes e coletar depoimentos sobre a história social e problemas da comunidade” para permitir que os membros da comunidade deem mais opiniões bem embasadas sobre o processo de mapeamento e estejam o mais envolvidos possível.

Fransérgio explica que “a boa cartografia social é quando os símbolos e as imagens são as imagens [desenvolvidas] das próprias pessoas. Então, se a organização leva bolinhas vermelhas, isso já é externo. Não que não possa ter uma equipe externa para facilitar o processo cartográfico, mas eu acho que isso impede [o processo]. Então, os próprios símbolos trazem muitas informações”.

projeto cartográfico social do Fórum de Juventudes buscou “identificar, mapear e georreferenciar as violações de direitos e as violências específicas contra os jovens negros das favelas ‘militarizadas’”. Foi dado aos jovens participantes o poder de construir a hierarquia visual de seus mapas, decidindo que elementos destacar e como. Quando pedidos a refletir sobre a presença da polícia nas comunidades, os jovens contribuíram com “informações que vão até de encontro com as que temos… [nos] dados oficiais”, observa Fransérgio. Localizações significativas para os participantes, que podem, ou não, serem notadas por organizações externas, se apresentam como característica central nesses exercícios. Em uma matéria para o Ibase, Goulart explica que “aos poucos, as favelas foram aparecendo no papel com elementos que normalmente são silenciados/ocultados em mapas tradicionais. Apareceram locais de ponto de encontro dos jovens, quadras onde se realizam festas, saraus, debates, campos de futebol, creches, escolas e outros elementos que muitas vezes são invisibilizados em representações da favela feitas por pessoas de fora dela”.

Ao incentivar os participantes a se expressarem por uma variedade de meios, há a liberdade dos participantes de customizarem seus mapas com suas experiências específicas. “Essa é uma diferença [do mapeamento participativo]… os próprios indivíduos constroem as informações sobre uma determinada realidade através do desenho do mapa”, esclarece Fransérgio. Um mapa que expresse melhor as realidades locais é mais provável que ajude a revelar suas necessidades e potenciais soluções. O projeto de mapeamento do Fórum de Juventudes, por exemplo, resultou na criação do aplicativo “Nós por Nós”, que é uma plataforma para denunciar a violência policial. Os usuários podem fotografar ou filmar crimes e abusos de policiais, e o conteúdo é automaticamente carregado para a nuvem e geolocalizado em caso de danos ou destruição do dispositivo por parte da polícia.

No entanto, como a cartografia social depende fortemente das experiências individuais, ela pode ser vista com um pouco de apreensão pelos participantes. O relatório da FASE sobre seu projeto de cartografia social no Caju e em Manguinhos explica: “Desde o princípio elas [as participantes] sabiam que quando construíram os mapas, eram as suas experiências particulares que iriam narrar aquele espaço, e isso inicialmente lhes trouxe estranhamento e hesitação, mas depois culminou em uma progressiva apropriação do processo e também do produto dele: os mapas”.

Tanto o mapeamento participativo quanto a cartografia social são importantes para a reforma institucional dos mapas e para a criação de versões que sejam adequadas às necessidades e ao empoderamento das comunidades. Ambos questionam os processos tradicionais de mapeamento enfatizando a flexibilidade para ajustar a circunstâncias locais específicas e mostrar conteúdo relevante para o local em vez de seguir um formato padronizado, estático e distante. Assim, eles podem servir aos membros da comunidade e aos esforços dos ativistas para o aumento da visibilidade e da compreensão da complexa diversidade que faz parte das favelas do Rio, desafiando as narrativas genéricas e improdutivas sobre a violência e a pobreza ao destacar a ampla variedade de experiências e perspectivas que caracterizam estes bairros.

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