Kenarik Boujikian, Desembargadora!

Pelo coletivo Sororidade em Pauta, no Justificando

“O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.

O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais,
no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!
A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”
(Guimarães Rosa – Grandes Sertões Veredas)

Hoje, em puro exercício de Sororidade, a coluna se adianta em 03 dias para coincidir com a Posse Solene de Kenarik Boujikian, como nova Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP).

Pois, este momento encerra de forma singular uma etapa da vida pessoal e profissional desta grande magistrada, símbolo da minoria resistente em um sistema de Justiça cujos integrantes, em sua maioria, seduzidos pelo mito da pós-verdade, das decisões fáceis e midiáticas, caminham na contramão do compromisso que fizeram de efetivar os Direitos Fundamentais previstos na Constituição de 1988.

Além disso, incentivam o aprofundamento da crise paradigmática em que se encontra o Estado Democrático de Direito nas sociedades ocidentais contemporâneas, especialmente naquelas, como a nossa, que ainda não foram capazes de outorgar o mínimo de dignidade à totalidade de sua população, e que insistem em classificar os cidadãos, como de primeira e segunda classe, distinguindo, a partir de sua visão míope e privilegiada, o tipo de direito a ser entregue a cada um deles.

Assim, como não se orgulhar de ver, no findar do complexo ano de 2017, como feministas que somos, Kenarik tomar assento no Tribunal conhecido por retratar com fidedignidade a desigualdade de gênero dentro do Poder Judiciário?

Em meio a veiculação constante de notícias promovidas pelo atual governo que, diante de uma maioria silenciosa, pratica a redução de direitos, a exemplo da reforma trabalhista, que entrou em vigor no último dia 11/11/2017 e da previdência, que será colocada em pauta ainda na semana que vem. Além das inúmeras e constantes violações a garantias constitucionais em ambientes acadêmicos e no seio do próprio Poder Judiciário.

 

Mas não só por isso, pois sua posse carrega também o simbolismo do restabelecimento da Justiça, obtida por esta incansável magistrada, após recorrer ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para anular a pena de censura, aplicada pelo Órgão Especial do TJ-SP, que considerou, em decisão administrativa, que a mesma Kenarik violou o princípio da colegialidade ao conceder liberdade a 11 presos provisórios, que já tinham cumprido pena há mais tempo do que o previsto na sentença.

Para tanto, contou com uma grande campanha a seu favor capitaneada por alguns setores da mídia, entidades e juízes progressistas, em prol da independência judicial. E em 29 de agosto de 2017, em decisão histórica, obteve, com 8 votos favoráveis, vencido o relator, a nulidade da punição, com ampla repercussão dos mais variados órgãos de imprensa e aplaudida pelos diversos setores da sociedade, do mundo jurídico aos movimentos sociais.

Kenarik sempre esteve em evidência. Dona de uma alteridade extrema sempre se orgulhou de defender posições contra hegemônicas, postura que não mudou mesmo no período atual de nossa conturbada democracia.

Recebeu críticas por muitos de seus pares, ao viajar ao Vaticano e entregar, junto com a atriz Letícia Sabatella, integrante do Movimento Humanos Direitos – MHuD, Carta ao Papa Francisco que denunciava os perigos que assolavam a democracia brasileira, no período em que antecedeu a deposição da Presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff.

E participou dos primeiros protestos contra o governo Temer, até então interino, e foi vítima de bala de efeito moral no supercílio, no mesmo dia em que Debora Fabri, aluna da Universidade Federal do ABC, perdeu a visão, ao ser atingida por estilhaço de bomba, o que a fez redigir texto em solidariedade à jovem estudante, denunciando a violência policial durante os protestos pacíficos.

Na verdade, a defesa intransigente dos direitos humanos a acompanha desde o início de sua carreira, pautando toda a sua vida pessoal e profissional, o que a levou a criar em 1991, juntamente com um grupo de juízes progressistas, a Associação de Juízes para a Democracia – AJD, a qual se orgulha de ser co-fundadora e ex-Presidenta, em dois mandatos.

E explica porque a proteção às ditas minorias sempre esteve entre suas principais pautas, seja na firme condenação a um famoso médico que abusava sexualmente de suas pacientes, seja ao denunciar o preconceito de gênero ínsito à estrutura do Poder Judiciário. Ou na dedicação a projetos que buscam dar visibilidade e maior dignidade às mulheres encarceradas e ao povo indígena.

Esta última causa ainda se reverte de um ingrediente que a torna ainda mais especial, pois Kenarik faz um paralelo do extermínio do povo indígena, em território brasileiro, com o genocídio do povo armênio, do qual advém, sempre lembrando da árdua luta de seus ascendentes, ao deixarem seus lares, terras e costumes pelo puro espírito de sobrevivência, fazendo do Brasil sua nova morada, chegando aqui ainda criança.

Cresceu, escolheu o Direito, formou família, construiu uma sólida carreira na magistratura, que, com a ajuda de sua mãe Marie, a conciliou com a maternidade.

E nessas intervenções debitadas ao destino, ao acaso ou ao sagrado, sua grande companheira de jornada teve saúde para acompanhar a reviravolta triunfal de sua filha e ver a nulidade da punição junto ao CNJ, mas não tempo suficiente para presenciar o mesmo órgão que proferiu a punição a sua filha promovê-la por merecimento, faleceu em 06 de novembro de 2017, 03 dias antes da sessão.

Hoje não estará presencialmente compondo as primeiras cadeiras ao lado daqueles que verão sua filha trilhar o caminho destinado aos que não desistem, mas estará na alma e no coração de todos os que amam e admiram sua filha e que repetirão de forma feliz e altiva: Kenarik Desembargadora!

Essa trajetória explica o motivo do nosso singelo exercício de Sororidade a essa mulher que habita em tantas de nós, que sofre injustiças, e, como nos ensina o poeta, luta com coragem contra elas. E no dia em que as vence tem um coletivo de mulheres sorrindo com e por ela. Assim nos sentimos hoje, vitoriosas com e por Kenarik.

E todas nós, de batom vermelho, seguramos uma só bandeira e gritamos num só coro: Você nos representa, Kenarik! Parabéns por esse dia, você merece vivê-lo em sua plenitude. Das Sororas!

Sororidade em Pauta. Foto: arquivo/Elinay Melo

Kenarik Boujikian é mãe de Marcelo, Mariana e Isabel, Desembargadora do TJSP desde 16/11/2017, co-fundadora da Associação de Juízes para a Democracia – AJD, tem um longo trabalho na defesa dos direitos humanos, com destaque para a luta em favor da dignidade das mulheres encarceradas e do respeito aos povos indígenas do país.

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