A guerra civil como forma de governo, por Vladimir Safatle

Na Folha

Há dias um juiz negou o pedido de uma ex-funcionária do banco Itaú para processar seu antigo empregador por fazê-la trabalhar em horas extras não pagas, além de praticar assédio, obrigá-la a acúmulo de função e desrespeitar outros direitos trabalhistas elementares.

No entanto, baseado na nova lei trabalhista, o juiz em questão resolveu obrigar a trabalhadora a pagar os custos dos advogados do banco, ou seja, R$ 67 mil. Ele deve esperar, com isto, criar uma jurisprudência que desestimule de vez trabalhadores a acreditar terem o direito de usar a Justiça para se defender de seus empregadores.

Na mesma semana que ficamos sabendo desta nova modalidade de Justiça, uma das maiores empresas nacionais de expropriação de alunos, uma empresa que não teme macular o termo “universidade”, demitiu sumariamente 1.200 professores. Sem se preocupar minimamente com o impacto de tal decisão no ensino oferecido aos alunos, nas pesquisas desenvolvidas e orientações, a dita empresa de expropriação estudantil espera aproveitar-se das nova legislação trabalhista para oferecer salários ainda mais aviltantes a professores atemorizados em regime precário.

Esses dois fatos não são fenômenos isolados, mas expressam de forma cristalina a razão pela qual atualmente existe governo no Brasil.

Há governo no Brasil para levar ao extremo uma guerra civil não declarada contra aqueles que vivem de salários, para submetê-los a um regime de medo e insegurança social absoluta a fim de quebrar qualquer ímpeto possível de mudança nos padrões de circulação do dinheiro e das riquezas. Por isto, o paradigma para entender o Brasil atual não é o paradigma do governo, mas o paradigma da guerra.

Ele começou com o uso da instabilidade política para insuflar a crise econômica por meio de pautas-bombas no Congresso, de assalto aos cofres públicos por meio de aumentos aviltantes ao Poder Judiciário, de queda completa da credibilidade internacional do Brasil por meio de um governo de presidentes indiciados. Uma crise do tamanho da que vemos atualmente não foi resultado apenas de descaminhos econômicos. Colaborou de forma decisiva uma dose maciça de produção política. Pois em situação de crise, o paradigma da guerra civil pode reinar.

Mas para que esta guerra avance a ponto de levar a população à capitulação faz-se necessário o golpe final da reforma previdenciária, que deve ser dado na semana que vem. É digno de um cinismo diabólico ver a casta de privilegiados que passa incólume da crise econômica atual (representantes do sistema bancário-financeiro, grandes empresários, políticos com aposentadorias garantidas, juízes) tentar vender à população a necessidade de destruir o sistema previdenciário brasileiro sob a capa exatamente do “combate aos privilégios”.

A não ser que, de agora em diante, o simples ato de aposentar-se seja descrito, na novilíngua neoliberal, como “privilégio”.

No entanto, “privilégio” não foi o termo usado para a decisão da Câmara de conceder isenção fiscal a gigantes petrolíferos que explorarão o pré-sal (MP 795/2017) impondo perdas de até R$ 1 trilhão em 25 anos. O governo aponta que tal isenção gerará bilhões para o país.

Deve ser um processo de geração da mesma natureza dos empregos que o mesmo governo prometia com a aprovação da reforma trabalhista. Algo cuja existência é da mesma ordem do círculo quadrado, do unicórnio e da honestidade do presidente Michel Temer. Se democracia houvesse em nossas terras, o fato de a maioria esmagadora da população preferir candidatos fora do horizonte de sustentação do “governo” atual seria elemento fundamental impedir sua guerra travestida de política econômica.

Como democracia aqui é só uma fachada já bastante puída e degradada, o “governo” de menor aprovação popular do mundo, que inveja até mesmo os índices de aprovação de Nicolás Maduro, pode usar todo seu aparato jurídico-policial para quebrar o ímpeto de defesa da classe trabalhadora. O que passa por prisões arbitrárias, “condições coercitivas” surreais, multas milionárias para sindicatos que procuram exercer o direito de greve, ameaças de golpe militar, entre outros.

Melhor seria que a população brasileira entendesse de vez que estamos em uma forma de guerra civil de baixo impacto no qual Estado brasileiro mostra claramente sua face de instância beligerante.

Bandeira queimada no Rio Grande do Sul. Foto: Caco Konzen/ Ag. RBS.

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