Como a mudança nas regras da internet nos EUA pode nos afetar no Brasil?

Por Pedro Ekman*, especial para o blog do Sakamoto

Esta quinta (14) pode vir a ser lembrada como o dia do início da transformação da internet em um mero serviço de TV por assinatura.

A decisão do FCC, a Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos, pela quebra de sua neutralidade pode desmoronar a estrutura que mantém a rede mundial justamente como uma rede.

O presidente do órgão, Ajit Pai, ex-advogado da Verizon – uma operadora de telecomunicações – e indicado ao cargo por Donald Trump, afirma que as regras anteriores prejudicaram os negócios das operadoras. E, com as mudanças, o consumidor terá mais poder para lidar com as provedoras de acesso à internet.

Obviamente, ele está mentindo em um dos casos – e é fácil descobrir em qual. Basta ver que o resultado da votação foi comemorado pelas empresas de telecomunicações e fortemente criticado por ativistas de direitos humanos e por especialistas como Mitchell Baker, da Mozilla Foundation, e o próprio inventor da World Wide Web, o professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Tim Berners-Lee.

Com isso, a internet pode estar dando seus primeiros passos para deixar de ser como a conhecemos. Um espaço onde todos podem publicar o que quiserem para ser visto em qualquer ponto ao redor no mundo por quem assim o desejar. Pois, uma vez que a regra da neutralidade de rede deixa de ser obrigatória, as operadoras poderão separar conteúdos e cobrar por pacotes diferenciados de acesso.

A rede deixa de ser um grande universo a ser explorado para se tornar um quintal apenas de quem tem dinheiro para pagar um pacote com todos os “canais”. Vai ficar mais caro acessar certos conteúdos, como plataformas de vídeos ou de voz sobre IP, em detrimento a serviços de mensagens, por exemplo. Uma operadora pode privilegiar o conteúdo produzido por um parceiro comercial ou aquele que ela mesma produz em comparação ao de um competidor, obrigando você a abandona-lo. A velocidade pode variar dependendo do conteúdo, ou seja, site ou plataforma, que você estiver acessando.

Se você decidiu criar uma ”startup” agora, lamento mas pode ter começado tarde demais. Da mesma maneira que serão capazes de bloquear conteúdos, as operadoras também poderão diferenciar a velocidade com que cada conexão funciona, criando assimetrias competitivas e aniquilando a inovação.

Quem já está consolidado no mercado terá mais condições de estabelecer acordos comerciais com as operadoras. Dessa forma, podem ser criadas dificuldades competitivas a quem estiver tentando entrar no mercado com algo novo e não testado. Sem a neutralidade de rede, provavelmente o YouTube não teria sido inventado.

Nos Estados Unidos, o debate sobre a neutralidade de rede não está restrito aos especialistas em tecnologia. Os movimentos sociais travam a batalha por esse tema na linha de frente. Malkia Cyril, fundadora e diretora executiva do Center for Media Justice, explica, por exemplo, que o movimento negro atua fortemente pela manutenção da neutralidade por entender a importância da internet na visibilidade e força do #BlackLivesMatter para o mundo.

O Brasil tem a neutralidade de rede protegida por lei. O Marco Civil da Internet, em seu artigo nono, é explícito: ”O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.

Entretanto a decisão tomada nos Estados Unidos nos afeta de duas maneiras. Primeiro: mesmo que tenhamos garantia legal em nosso território, a maior parte do conteúdo da rede trafega pelos EUA, passagem de quase toda a infraestrutura internacional de cabos de fibra ótica. E plataformas de conteúdo como Google, Facebook e Netflix, que concentram a maioria das informações geradas também estão naquele território.

Segundo: as operadoras que atuam no Brasil estão com sorrisos de orelha a orelha só esperando para somar a notícia norte-americana a um cenário político favorável a elas e tentar reverter as conquistas do Marco Civil.

É incrível pensar que cinco pessoas fechadas em uma sala nos Estados Unidos possam tomar uma decisão tão desastrosa para todo o planeta. Mas o jogo ainda não terminou, o resultado precisa ser referendado pelo Congresso norte-americano e a sociedade civil se mobiliza para tentar impedir o que seria mais um desastre global protagonizado pelo ”American Way of Business”.

No Brasil, temos apenas 54% dos domicílios conectados à internet, enquanto a TV e o rádio atingem a totalidade dos lares.

A sociedade brasileira que conhecemos hoje é extremamente desigual e violenta, forjada com a radiodifusão sendo a principal ferramenta em um cenário de absurda concentração de mercado. Se a neutralidade de rede não mais existir quando o país tiver todo seu território conectado, já teremos uma internet também concentrada em monopólios mundiais.

Que sociedade podemos criar nesse cenário?

(*) Pedro Ekman é documentarista e membro do Intervozes. É diretor do doc Freenet, sobre os direitos na rede.

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