Escritora inglesa, autora de ‘A cidade solitária: Aventuras na arte de estar sozinho’, fala sobre as diferentes formas de solidão. “É diferente estar só e sentir-se só”. Aproximou-se de bêbados infames como Hemingway e Fitzgerald, e problemáticos solitários como Henry Darger e Edward Hopper. Em livros indaga sobre a relação entre a arte e a dor. Transformada em uma das vozes mais interessantes do panorama literário anglo-saxão, reivindica um novo espaço para a empatia.
Por Andrea Aguilar, no El País
Pelo rio Ouse, onde ela nadava no verão e Virginia Woolf se suicidou, transcorreu o começo da carreira literária de Olivia Laing (Reino Unido, 1977), uma das vozes mais interessantes do panorama literário anglo-saxão atual. Laing deixou de lado seu trabalho como jornalista há oito anos e empreendeu sua primeira viagem narrativa em torno da autora de As Ondas, mesclando passado e presente, paisagem e literatura em To the River: A Journey Beneath the Surface (Canongate). Esse mesmo caminho, um perambular por histórias em que se cruzam análises, dados, leituras e a experiência real e direta, desembocou pouco depois em um segundo livro, A viagem ao redor da garrafa: Um ensaio sobre escritores e a bebida (Rocco), no qual esta ensaísta traçou um roteiro pelos Estados Unidos para tentar desentranhar a relação tóxica de meia dúzia de escritores com o álcool. O título original (The Trip to Echo Spring: On Writers and Drinking) ela tirou de uma frase (Echo Spring) da obra de teatro Gata em Telhado de Zinco Quente, um eufemismo para se referir ao barzinho em que se afogaram e desafogaram desde Hemingway até Cheever, passando por Tennessee Williams, Raymond Carver, John Berryman e Scott Fitzgerald.
Laing chegou depois a Nova York arrastada por uma história de amor que fracassou. Náufraga na Grande Maçã, o desamparo que sentiu e o radical isolamento que a consumia estão no centro de A cidade solitária: Aventuras na arte de estar sozinho (Rocco), o ensaio, aclamado por crítica e público, em que se aproxima da praga contemporânea da solidão em um mundo hiperconectado, o anseio insatisfeito de se conectar realmente, o crescente medo do mundo físico. Para isso toma como eixo um punhado de artistas estadunidenses que retrataram ou sofreram diferentes tipos de solidão e que encontraram na arte uma via para romper a barreira, para comover, comunicar. Os icônicos quadros de Edward Hopper, a solidão multitudinária de Andy Warhol, a vida nas margens de David Wojnarowicz ou o estranho Henry Darger se mesclam, por exemplo, com os pungentes experimentos de Harry Harlow –que demonstraram nos anos cinquenta a necessidade de afeto e calor mesmo que isso cause danos– para exaltar a empatia como única cura possível e defender a tolerância frente à diferença. “É diferente estar só e sentir-se só. A solidão a que eu me refiro tem a ver com querer compartilhar a sua intimidade e ter uma relação que você não tem. Isto não depende de quanta gente te rodeie”, explica sentada à maneira indiana no sofá de sua casa de Cambridge. “A verdadeira cura para a solidão são duas coisas. Por um lado, desfazer-se da vergonha e entender que não há nada de errado em você sentir que deseja ter mais amor. Por outro, começar a construir relações, divertir-se e brincar. Não há razão para estar em uma relação sentimental ou se enfiar no Tinder.” Jovial, relaxada e risonha, Laing confessa que não queria terminar o livro contando que tinha encontrado um companheiro porque aquilo lhe parecia um encerramento falso. Em meados do ano ela se casou com o acadêmico de Cambridge Ian Patterson e agora prepara seu primeiro romance.
P. Como ocorre com o sofrimento, a alegria ou a angústia, a solidão é intrínseca à condição humana?
R. É absolutamente inevitável se sentir sozinho em algum momento da vida. No entanto, hoje tratamos esse sentimento como algo aterrador. A solidão surge a partir de coisas como mudar de casa, trocar de trabalho ou perder alguém querido. Por isso é preciso normalizar isso e combater o estigma e a vergonha que rodeia a solidão. É muito difícil dizer que você se sente sozinho, mas se esse tabu cai poderemos vê-lo como uma experiência a mais.
P. O que caracteriza a solidão no mundo atual?
R. As redes sociais e a Internet fazem com que as pessoas sintam que o resto do mundo tem uma vida social muito melhor que a delas. Parece que os outros estão sempre em lugares lindos rodeados de amigos, e todos riem. A vida delas parece um fracasso.
P. A experiência de estar sozinho é diferente para uma mulher e para um homem?
R. Há algo heroico na figura do homem solitário, como nos filmes de Bogart, o homem sozinho na cidade de Hitchcock, é cool. Uma mulher sozinha, porém, levanta suspeitas, tem um halo de fracasso. É incrível, mas há algo cultural que nos faz ver uma mulher sozinha como alguém que não conseguiu triunfar. É tóxico.
P. Você escreve sobre o primeiro estudo científico sobre a solidão, de Frieda Fromm-Reichmann, em 1959.
R. Esta doutora estava fascinada pelo tema e tratou vez ou outra de escrever sobre isso. Quando morreu encontraram em seu escritório esse ensaio que ela não conseguia finalizar. Levou muito tempo para se estudar a solidão. Freud, contemporâneo de Fromm-Reichmann, não abordou este assunto de modo algum. E os psicólogos que começaram a fazer isso explicaram quanto era duro: dava-lhes certa repulsa, medo, era difícil os pacientes falarem sobre esse tema, e eles tinham preconceitos. A urgente necessidade de uma pessoa que se sente só para estabelecer uma conexão intimida os demais, provoca rechaço. Os estudos hoje afirmam que isto se deve a que a solidão é algo profundamente contrária a nosso instinto gregário, a nossa natureza social.
P. Paradoxalmente, sentir-se só é algo que afeta muitas pessoas.
R. E, no entanto, cada um a sente como se fosse o único.
P. A solidão alimenta a autocompaixão?
R. Biologicamente, quando você começa a se sentir sozinho entra em um estado de hipervigilância. Se alguém é um pouco grosso com você na rua, você amplifica isso. Sente que o mundo é um lugar inóspito e tenta se proteger. Não sei se autocompaixão é a palavra correta, é mais uma concentração na sua dor, você se sente incapaz de reconstruir a relação com o mundo externo. O que mais dá medo em tudo isso é que realmente você não está consciente sobre o que está acontecendo com você, de que o seu cérebro altera a sua percepção da realidade.
P. A Internet confunde ainda mais a percepção do real?
R. Hoje passamos tanto tempo nas redes discutindo e respondendo a comentários de pessoas que podem ser bots… Vivemos em um mundo muito estranho. Se tivesse escrito A cidade solitária há 30 anos, falaria da solidão de uma forma diferente.
P. Você traz parte de sua experiência pessoal a seus livros. Como decide o que incluir?
R. São escritos muito pessoais. Teria soado falso escrever sobre alcoolismo e não dizer que o motivo pelo qual estava desesperada em entender aquilo era porque vi de perto, cresci em uma casa com uma pessoa alcoólatra e aquilo me marcou. Escrever uma história cultural da solidão explorando a vida dos outros sem dizer que eu também tinha passado por isso seria uma trapaça. Além disso, usar a primeira pessoa te permite conduzir o leitor por caminhos tortuosos, ajuda a construir a história.
P. Trata da solidão em Nova York, uma cidade em que é muito aceita.
R. Quando me mudei para lá e via pessoas jantando sozinhas, pensava: “Uau!”. Havia algo sofisticado em que as pessoas se sentissem tão à vontade estando sozinhas. Mas é uma cidade que pode ser muito alienante, em que é difícil para as pessoas se manterem conectadas. Há outras cidades que facilitam a aproximação.
P. Ao falar da solidão como uma dificuldade para se comunicar escreve sobre Andy Wahrol, um artista muito gregário e reservado, mas solitário?
R. Há uma espécie de ansiedade subterrânea em torno da comunicação. Passei por um momento em que era complicado para mim me comunicar verbalmente, não entendiam meu sotaque em Nova York e aquilo me isolava ainda mais. Vi alguns vídeos em que Wahrol tenta falar diretamente ao entrevistador, mas sussurra ao ouvido de outra pessoa. Aí vi refletido quanto você se sente sozinho ao não ter claro que outras pessoas possam te ouvir e entender. Comecei a pensar sobre como os artistas usam os objetos que criam para se comunicar. Fazem uma peça e a mandam ao mundo para falar de uma maneira que cara a cara não poderiam. Constroem outra forma de intimidade.
P. No caso de Warhol, pode-se pensar que tem mais a ver com a extrema timidez do que com estar só. Mas se você é tímido, pode acabar sozinho.
R. As pessoas aceitaram Wahrol, gostavam dele; no entanto, ele não conseguia ter a relação de amor que desejava. Não era capaz de deixar que as pessoas se aproximassem ou de ele se aproximar, manteve sua distância, e aqui surge a tecnologia, as gravadoras, câmeras e polaroids que usou para atrair as pessoas. Muitos queriam que Wahrol os fotografasse ou gravasse e isto lhe permitiu estar escondido atrás da câmera, manter-se em um espaço seguro onde ninguém o iria rejeitar. Wahrol foi pioneiro no uso da tecnologia como o escudo que hoje vemos a toda hora.
P. As telas e câmeras aumentam o filtro irônico?
R. Permitem que você tenha mais controle e distância. Li há pouco tempo um artigo sobre uma garota de 22 anos que explicava como sua geração já não fala por telefone e não bate na porta das casas. Comunicam-se por Snapchat ou WhatsApp. Os nativos digitais desejam ter proximidade, mas estão aterrorizados. Alguém bate à sua porta e pensam: “Por quê? Vou fechar as cortinas!”. Isto é tão Wahrol.
P. Quanto desse anseio é um desejo de chamar a atenção? O narcisismo é um termo que você evita em seu livro.
R. Chamar alguém de narcisista é uma maneira de distanciar-se. Suspeito desse tipo de acusações, porque é uma maneira de dizer: “Eles são assim, não se parecem com a gente”, de encaixar tudo em uma patologia. Pode haver um elemento de narcisismo, mas queria refletir sobre o que está abaixo. Quando as pessoas tiram fotos várias vezes, alguém gostaria de perguntar: “Você acha que não existe? Bem, você existe, não precisa continuar provando.”
P. Você foca em vários parias que viveram marginalizados, como Valerie Solanas e David Wojnarowicz. Por que rotulá-los como solitários?
R. Eles se definem assim. O caso de David ilustra as diferentes maneiras pelas quais alguém pode acabar sozinho e isolado. Teve uma infância cheia de abusos e é gay em um mundo homofóbico. Portanto, essa solidão estrutural e política devido à sua sexualidade está separada de sua experiência na infância. No mundo da arte, encontra uma comunidade, mas logo contrai AIDS. Por meio desta doença, vem o estigma social e político. A solidão vai além de fazer uma pessoa se sentir triste: a sociedade exclui algumas pessoas e não se responsabiliza. Neste caso, é a AIDS, mas o mesmo pode ser dito sobre os refugiados ou pessoas sem-teto. Qualquer grupo que seja demonizado experimenta níveis incríveis de solidão.
P. Também de solidariedade.
R. Sim, é uma forma de resistência, um antídoto contra a solidão. A solidariedade política é uma reação.
P. Você destaca que as mulheres correm risco de se tornarem supérfluas devido ao seu desejo.
R. Eu tinha muita inveja da liberdade sexual de Wojnarowicz, dessas relações com estranhos que lhe permitiam construir uma esfera íntima. Como mulher, você não pode vagar pela cidade com a mesma liberdade, ou pode fazê-lo, mas é muito mais vulnerável fisicamente e carrega estereótipos sociais o tempo todo. Não importa como se sente a respeito e quanto queira rejeitá-lo; isso é assim. As mulheres vivem em um mundo diferente dos homens e nem sequer percebem isso.
P. Isso está mudando?
R. Você acredita? Eu não. Quando meus amigos me perguntam se as mulheres têm medo de caminhar sozinhas na volta à casa, tenho que dizer que sim, que sempre é assim para todas as mulheres, e me parece incrível que não saibam disso. Não importa o quão segura você seja, como mulher você tem que calcular os riscos aos quais se expõe. Esta é uma das coisas que diferenciam a abordagem de homens e mulheres em relação às cidades.
P. Você escreve sobre o desejo de romper com a tirania do mundo físico.
R. Tentava analisar as razões pelas quais nos sentimos tão atraídos pelo mundo da Internet, embora saibamos que não é muito satisfatório. Lá, estamos seguros. As interações físicas envolvem um perigo que, como espécie, tentamos evitar. Muitos dos projetos tecnológicos são formas de evitar as realidades físicas.
P. Por que o contato dá tanto medo?
R. Se você ama alguém, se expõe a um nível de perda que é assustador. Se não estabeleceu vínculos sólidos desde o início, algo que ocorre com muitas pessoas, você faz qualquer coisa para evitar a experiência da perda, mesmo que isso signifique não ter o amor ou o calor que deseja.
P. Como o mundo mediado por telas afeta a arte que está sendo produzida?
R. Muitas coisas horríveis são feitas. Mas também é verdade que, nesta era, as pessoas estão atentas a um tipo de beleza que, às vezes, é narcisista e superficial, mas que outras vezes é maravilhosa. Pensar que tantos querem tirar fotos bonitas, conservá-las e compartilhá-las tem algo de utópico, não é apenas infernal. Gosto de olhar as fotos de jovens que se disfarçam o tempo todo. Em que isso é diferente do trabalho da artista Cindy Sherman?
P. Você aponta no livro a gentrificação dos sentimentos, não só das cidades.
R. Em The Gentrification of the Mind (University of California Press), Sarah Schulman descreve a gentrificação de uma maneira ampla, que vai além da transferência das lojas e cafés da moda para os bairros deprimidos. Este livro analisa como o que se tenta é viver em bolhas, onde não precisamos enfrentar a pobreza ou a dor. Ao lê-lo, pensei que também existe uma gentrificação no plano emocional. Queremos ter sempre experiências agradáveis e felizes, nos envergonhamos de sentimentos mais obscuros, como a ira ou a solidão. Não queremos falar sobre isso. Penso que hoje é algo radical reivindicar essas emoções.
P. Na política, esses sentimentos viscerais parecem ter dominado a cena.
R. O ódio, sem dúvida, está no ar. Mas o desejo de demonizar um certo grupo segue essa ideia de construir um muro para nos isolar. As pessoas veem refugiados esfarrapados e com aparência de doentes, e sua resposta não é “venha, que vou te alimentar”, e sim “você vem para nos roubar, te odiamos”. Queremos apagá-los. E também é assim que as pessoas que se sentem solitárias são tratadas.
P. A sensibilidade extrema é o grande problema dos artistas?
R. É o que os torna maravilhosos, sua capacidade de ver e sentir de maneira mais penetrante. Mas é muito difícil viver assim. Tenho interesse na complexidade, [no fato de] que uma pessoa pode ser muitas ao mesmo tempo. Ninguém é uma única coisa.
–
A escritora britânica Olivia Laing, retratada em sua casa em Cambridge. Foto: Mamuel Vázquez
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.