Como surgiram essas heroínas de nomes extraordinários e imensas jornadas
Por Eliane Brum, no Amazônia Real/El País
Gumercinda, a heroína dessa reportagem, é a única entre oito tartarugas-da-amazônia que segue com sua antena mandando sinais para os pesquisadores Cristiane Costa Carneiro, a “Cris das Tartarugas”, e Juarez Pezzuti, o “Juca”. Mas é justamente ela a única entre as oito cujo nome não tem nenhuma tradição. Observem bem. Angelina é a avó do Juca. Carmela, a outra avó do Juca, desta vez a paterna. Maria é a mãe do Juca. Dany é a mulher do Juca. Tereza é a filha do Juca. Lúcia é a mãe da Cris. Há ainda a própria Cris, que batizou com seu nome uma delas. Mas, e Gumercinda?
É o cachorro do tio Murilo. Sim, tio Murilo, parente do Juca, tem um cão beagle de nome Gumercindo que, segundo o sobrinho, não tem nada de especial. Se Gumercinda, a tartaruga, soubesse disso, talvez tivesse enfiado a antena no rabo de um jacaré e comido ela mesma o rádio. Mas ela não sabe.
Enquanto Gumercinda tem o nome do cachorro do tio Murilo, Carmela e Maria ostentam nomes quase míticos na história da resistência à ditadura. Carmela Pezzuti, a avozinha do Juca, falecida em 2009, foi presa, torturada e deportada para o Chile em 1971, junto com 70 guerrilheiros trocados pelo embaixador suíço, que havia sido sequestrado pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária).
Maria, que deu nome à tartaruga, participou do célebre assalto ao “cofre do Adhemar”
Maria, a mãe do Juca, tem hoje “cachinhos de algodão”, segundo o filho. Mas foi militante da Colina e de outras organizações clandestinas que lutavam contra a ditadura civil-militar (1964-1985). Com o codinome de “Lia”, ela planejou e participou do célebre assalto ao “cofre do Adhemar”, um cofre escondido na casa da amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. Tornou-se então, possivelmente, a primeira comandante mulher de uma organização guerrilheira, a VPR. Maria do Carmo Britto foi presa, torturada e deportada no grupo de 40 libertados em troca da devolução do embaixador alemão, em 1970, e enviada para o exílio na Argélia. “Na época em que dei os nomes pensei que fazia uma homenagem silenciosa”, diz Juca.
Maria, a tartaruga, parece ter um caráter menos arrojado do que a dona do nome. Das oito, ela é a única que mora no Tabuleiro do Embaubal. O monitoramento por rádio permitiu aos pesquisadores descobrir que as tartarugas-da-amazônia que desovam no tabuleiro fazem viagens de mais de mil quilômetros e vêm de diferentes pontos do mapa amazônico. “Nossas matronas do Xingu apresentam um fantástico padrão de deslocamentos e área de vida imensa”, constata Juca.
A descoberta é consequência direta do conhecimento dos ribeirinhos Luiz Cardoso da Costa e Antonio Davi Gil, o Tuíca. Cris pretendia instalar os oito rádios de uma vez só, mas Luiz e Tuíca a aconselharam a botar um rádio a cada duas semanas. E explicaram: “As tartarugas andam em bando. Pode ser que o primeiro bando que encoste aqui na praia venha de mais perto. E o último bando pode vir de mais longe. Se você pegar um bando só, as tartarugas vão pra um lugar só. E você não vai saber de onde elas vêm”. Cris escutou seus professores. E hoje comemora: “Salvaram nossa pesquisa!”.
Das oito, só a tartaruga Cris não vive numa unidade de conservação
Dany e Carmela moram no igarapé chamado Marajoí, em Gurupá, na Reserva Extrativista Gurupá-Melgaço. Angelina e Lúcia moram na mesma região de Gumercinda, o município de Afuá, no Arquipélago de Marajó, já no rio Amazonas. A tartaruga Cris vive no município de Almeirim, também no rio Amazonas. E Tereza fez seu lar no município de Monte Alegre, perto de Santarém. Todas no estado do Pará. De todas elas, apenas a tartaruga Cris não vive numa unidade de conservação, o que mostra como a política de criar áreas de proteção federais e estaduais é decisiva para a sobrevivência das espécies.
Entre todas as oito, foi Angelina a que mais “causou”. Durante dias o menino voltava e dizia pro pai: “Pai, tem uma tartaruga de chifre no poço”. E o pai achando que o menino tinha endoidado. E o menino voltava: “Pai, tem uma tartaruga de chifre no poço”. E o pai cada vez mais preocupado. Decidiu ver ele mesmo que tipo de criatura estava botando visagens na cabeça do menino. E não é que tinha mesmo uma tartaruga de chifre?
O chifre tinha nome: “Universidade Federal do Pará”. Seu Valdo achou melhor não bulir. Homem sábio, ele logo entendeu: “É tartaruga de pesquisa”. Depois que descobriu o paradeiro de suas cascudas, Cris visitou todas as regiões em que as tartarugas fizeram lar e conversou com os ribeirinhos para explicar o que fazia. Quando chegou a vez de Angelina, o povo da comunidade achava que seu Valdo tinha é comido a Angelina. Cris foi lá bater na casa do extrator de açaí. E ele a levou para conhecer a Angelina. “É a mais exibida!”, antecipou seu Valdo.
E não é que era mesmo? Logo que Cris apareceu, Angelina já deu um saracoteio, boiou e o chifre apareceu. Na despedida, seu Valdo tranquilizou: “A senhora cuida da tartaruga de chifre lá no Tabuleiro e nós cuidamos dela aqui no Marajó”.
Em breve, Cris pretende viajar até o Arquipélago de Marajó pra ver se Angelina, desaparecida para o satélite, continua aparecida para a vida.
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“Cris das Tartarugas” no Tabuleiro do Embaubal, à espera do nascimento dos filhotes. Foto: Lilo Clareto
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