Nem censura moral, nem dirigismo cultural

Por Frederico de Almeida, no Justificando

Anunciado esta semana, o acordo celebrado pelo Ministério Público Federal e pelo banco Santander encerrou a intervenção da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão na polêmica do cancelamento da exposição Queermuseu, patrocinada pelo banco em seu centro cultural em Porto Alegre. A emenda ficou pior do que o soneto.

A exposição foi encerrada abruptamente pelo banco, em setembro do ano passado, após a ação do Movimento Brasil Livre (MBL) que denunciava o conteúdo da mostra – voltada para a temática da diversidade sexual – como sendo depravado, apologista da pedofilia e da zoofilia, e ofensivo a religiões. Além de gerar um intenso debate público sobre liberdade de expressão, moralidades e censura, a decisão do banco levou a uma intervenção do MPF, que resultou no recente acordo.

Segundo o combinado entre Santander e MPF, o centro cultural do banco deverá realizar uma série de exposições, no prazo de 120 dias, sobre temas como gênero e sexualidade, diversidade racial, cultural e sexual, e liberdade de expressão. Além disso, o banco está obrigado a adotar medidas de indicação de conteúdos das obras de acordo com uma classificação indicativa por idade. A multa para o descumprimento das cláusulas do acordo é de R$ 800 mil.

Resumo da ópera: saímos de uma situação de patrulhamento moral e censura da expressão artística para um dirigismo estatal da atividade de curadoria realizado por um órgão público não eleito e sem controle social efetivo.

É evidente que há um sentido pedagógico aparentemente positivo no resultado final da intervenção do MPF sobre o assunto, já que se garante a possibilidade de novas exposições com conteúdo que valorize a diversidade e a liberdade de expressão. Mas a que custo chegamos a esse resultado? E mais:o quanto ainda pode ser considerada positiva e eficaz uma ação pela diversidade feita dessa maneira pouco transparente?

Parece-me razoável que em um acordo como esse o banco se comprometesse a adotar medidas de educação para a diversidade e a liberdade de expressão, mas que não precisassem ser necessariamente exposições culturais. Da mesma forma como é inaceitável que moralistas conservadores (e o poder privado do banco, sensível economicamente àquele moralismo) determinem unilateralmente o encerramento de uma exposição de arte, também me parece pouco adequado que um órgão de funções judiciais sem qualquer vocação específica ou mandato para a elaboração de políticas culturais determine calendário e temática de exposições de um centro cultural.

Confio tanto nas habilidades curatoriais do MPF quanto nas do MBL.

Os reais problemas levantados pelo episódio são outros. Em primeiro lugar, a falta de políticas culturais que valorizem espaços públicos e diversidade de conteúdo e formas de expressão, reduzindo a centralidade do mecenato privado na oferta de bens culturais no Brasil. É inegável que foi o patrocínio privado que propiciou muitas das melhores atividades culturais nos grandes centros urbanos nas últimas décadas, e podemos definir um espaço para ele em uma política cultural num país diverso e grande como o Brasil; mas foi justamente o caráter capitalista desse mecenato que fez com que o Santander censurasse a exposição, sensível aos possíveis impactos da repercussão negativa sobre sua marca e sua clientela.

Além disso, as medidas acordadas pelo banco não reparam a situação ocorrida em setembro. Como bem criticou o curador da exposição Queermuseu, o centro cultural do banco simplesmente se obrigou, nesse acordo, a continuar fazendo o que faz ou deveria fazer. Não há qualquer medida de reparação em relação ao curador, aos artistas ou ao público daquela exposição específica – a melhor saída, na minha opinião, seria a obrigação do banco em retomar a exposição por prazo igual ou maior do que o da mostra original.

Precisamos lembrar também que o banco Santander teve lucro líquido de R$ 2,33 bilhões no segundo trimestre de 2017, o que torna tanto as obrigações curatoriais quanto a multa estabelecidas no acordo irrisórias.

Também não há nenhuma responsabilização dos patrulheiros morais que forçaram o cancelamento da exposição. Nem punição, nem advertência, nem educação, apesar de todos serem facilmente identificáveis pelas suas manifestações públicas na internet.

Por fim, voltamos ao papel do MPF nessa história toda. Além de suas questionáveis expertise e legitimidade para a elaboração de políticas culturais, é preciso lembrar que os acordos feitos pelo MPF extrajudicialmente não estão submetidos a nenhum controle externo, judicial ou social, o que dificulta avaliar não só a pertinência das medidas acordadas, como os efetivos graus de coação e consenso que orientaram a elaboração do acordo.

Tenho dito que o protagonismo judicial que viabilizou o golpe e tem viabilizado diversos retrocessos políticos e sociais não é diferente daquele protagonismo das instituições de justiça a favor da cidadania e dos direitos que muitos de nós, progressistas, aplaudimos na sequência da Constituição de 1988.

O MP e os instrumentos judiciais e administrativos que ele mobiliza para obrigar mecenas privados a cumprirem determinados calendários e temas de exposições são os mesmos utilizados para patrulhar o pensamento crítico nas universidades públicas, para se ocupar das cores das ciclovias em São Paulo, para (não) realizar o controle externo das polícias e para promover cruzadas morais contra a corrupção e a política representativa.

Creio que já temos exemplos suficientes para perceber que a construção de uma sociedade mais justa, plural e democrática não pode ficar a cargo de instituições elitizadas, voluntaristas e pouco submetidas a controles sociais democráticos.

Frederico de Almeida é cientista político e professor na Unicamp.

Entre os autores expostos na “Queermuseu”, estavam Adriana Varejão, Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Clóvis Graciano e Ligia Clark. A mostra reunia pinturas, gravuras, fotografias, colagens, esculturas, cerâmicas e vídeos. Na foto, “Cenas do Interior II”, de Adriana Varejão. Foto: Divulgação

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