Patricia Fachin – IHU On-Line
A decisão da agência norte-americana Federal Communications Commission – FCC de pôr fim à neutralidade da rede nos EUA provavelmente não terá impacto nas legislações de outros países, como o Brasil, diz Sérgio Amadeu à IHU On-Line. “É claro que uma lei aprovada nos EUA pode ser utilizada como uma tendência mundial, mas não é o caso, porque não há nenhuma obrigação de que países que têm uma legislação protegendo a neutralidade da rede, como é o caso do Brasil, devam criar novas leis alterando a neutralidade da rede”, afirma.
Apesar disso, pontua, o lobby das empresas da telecom para pôr fim à neutralidade vai continuar, porque elas perceberam que as mudanças de uso das tecnologias reduziram sua lucratividade. “Por que você vai usar telefone via telefonia fixa, se você já tem linhas de dados e pode usar sistema de voz pela internet? Ou por que você vai gastar mais para falar com um amigo que mora na Europa, se você pode falar por streaming? Isso tudo está acontecendo nos últimos anos e está alterando o que era um modelo de negócio consolidado há quase cem anos, que era o modelo de telefonia fixa. Dada essa mudança, as operadoras de telecom querem reduzir o ritmo com que a sociedade usa os dados, reduzindo assim sua necessidade de investimento, mas isso não vai ser possível, porque a sociedade tem uma demanda crescente”, resume.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Amadeu explica quais são os impactos do fim da neutralidade da rede e reflete ainda sobre a atuação do poder público na garantia da inclusão digital no Brasil. “O governo federal nunca conseguiu ter um plano único ou organizar uma política de conectividade que envolvesse as três esferas de governo e que cuidasse desde a infraestrutura até a parte final”, resume.
Sérgio Amadeu é sociólogo e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é professor da Universidade Federal do ABC – UFABC, no estado de São Paulo. Foi um dos pioneiros do debate da inclusão digital no Brasil e pesquisou as práticas colaborativas e o software livre. Foi, ainda, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Entre suas publicações, destacamos o livro Exclusão Digital: A Miséria na Era da Informação (São Paulo: Perseu Abramo, 1996).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o significado da decisão da agência norte-americana Federal Communications Commission – FCC de pôr fim à neutralidade da rede nos EUA, considerando o modo com a internet funciona?
Sérgio Amadeu – A decisão de pôr fim à neutralidade da rede foi bastante precipitada e só ocorreu porque o presidente Trump mudou a composição da FCC. O presidente tem compromissos de campanha que ele resolveu cumprir, e um deles era quebrar o princípio da neutralidade da rede, e foi isso que ele fez com um voto de vantagem na discussão que ocorreu na FCC. Trump fez isso desconsiderando que a maior parte dos eleitores norte-americanos é favorável à neutralidade da rede, ou seja, ao princípio pelo qual a internet vem funcionando até hoje.
Impactos
O impacto do fim da neutralidade da rede não é só econômico e não prejudica apenas a comunicação e eleva o custo da comunicação para toda a sociedade e os setores econômicos, mas implica em dois grandes riscos. Um deles é o controle que as operadoras de telecom passarão a ter sobre a invenção e a inovação. O segundo risco é que, dado que se poderá filtrar e bloquear o fluxo de tráfego de dados por motivos comerciais e econômicos, o fluxo também poderá ser filtrado por outros motivos, sejam eles culturais, políticos ou religiosos. Então, as consequências da decisão da quebra da neutralidade são bastante nefastas para a ideia de como a internet vinha funcionando até hoje.
Na verdade, quando se quebra a neutralidade no espírito que as operadoras de telecom pretendem e buscaram, se transforma a internet numa grande rede de supermercado e se passa não só a cobrar diferenciadamente pela velocidade, que é o modelo que temos hoje – quem tem velocidade maior paga mais -, mas se passa a cobrar agora por tipo de aplicação, ou seja, se você vai acessar música ou vídeo, você terá que pagar mais.
A falácia das telecom
No debate que ocorreu no Brasil durante a discussão do Marco Civil da Internet, o grande defensor da quebra da neutralidade e principal lobista das operadoras de telecom, foi o Eduardo Cunha. Ele alegava que a queda da neutralidade beneficiaria os mais pobres, porque eles teriam uma taxa de uso da internet diferenciada. Ocorre que isso é uma falácia, porque numa pesquisa sobre os usos de internet no Brasil, feita pelo Comitê Gestor, se observou que o estrato mais pauperizado que usa a internet, quem ganha até um salário mínimo, usa muito mais multimídia do que e-mail, o que quebra completamente o argumento do Cunha. Se as empresas passarem a cobrar mais pelo uso de serviço multimídia, estarão prejudicando exatamente aqueles que têm menores condições de pagar para se comunicar, os mais pobres, e com isso se cria um desincentivo à interação, à cultura.
IHU On-Line – Por que operadoras de telecom seriam as mais beneficiadas com o fim da neutralidade?
Sérgio Amadeu – Quem se beneficia com o fim da neutralidade da rede é um pequeno grupo de operadoras de telecom, porque o negócio de telecom é um oligopólio. Esse oligopólio mundial percebeu que a comunicação passou a ser feita pelos seus cabos, pelas suas fibras, que são concessões públicas – na maior parte dos países, até os anos 1980, a infraestrutura de telecom foi construída pelo Estado, e depois ela foi privatizada. Sempre se entendeu que esse é um setor importante para o capital porque também sempre esteve claro que todos deveriam usar a comunicação, do mesmo modo que acontece com a internet: se usa as fibras ópticas, os cabos submarinos e a infraestrutura de telecom para que a internet possa existir. A internet passou a ser o principal serviço que usa essas redes, então, esse oligopólio percebeu que por controlar a infraestrutura, poderia controlar toda a comunicação em rede, e aí resolveu ampliar a sua lucratividade. Portanto, não há nenhum outro setor que tenha um interesse tão direto na quebra da neutralidade quanto o de telecom.
É um absurdo que um diminuto grupo que forma um oligopólio possa impor a sua fúria lucrativa, sua fome de capital, e sua vontade para todos os demais setores econômicos e para a sociedade. O fim da neutralidade pode gerar, para vários setores que terão seu custo de comunicação alterado, uma redução na comunicação em rede, mas, por outro lado, os setores mais abastados continuarão usando a rede, porque para eles não fará diferença pagar mais. Novamente serão prejudicados os que têm menos recursos. Então, essa é muito medida ruim do ponto de vista da diversidade cultural, da criatividade e dos riscos políticos.
IHU On-Line – Alguns especialistas têm afirmado que o fim da neutralidade pode abrir um precedente para uma nova forma de legislar a internet em termos mundiais. Esse risco de fato existe? Quais são as chances de isso acontecer?
Sérgio Amadeu – Não, porque as leis são nacionais. É claro que uma lei aprovada nos EUA pode ser utilizada como uma tendência mundial, mas não é o caso, porque não há nenhuma obrigação de que países que têm uma legislação protegendo a neutralidade da rede, como é o caso do Brasil, devam criar novas leis alterando a neutralidade da rede.
O que vai acontecer é que essas grandes empresas continuarão fazendo lobby no meio político e junto a empresas de comunicação, contratando jornalistas e dando presentes para comunicadores defenderem as suas causas. Isso é feito em vários países para criar uma onda favorável aos interesses desses grupos econômicos. É claro que pode existir uma pressão em vários países para pôr fim à neutralidade, mas no Brasil a lei do Marco Civil da Internet garante a neutralidade da rede. Então, para que a neutralidade seja quebrada no país, é preciso criar uma nova lei, mas isso não será feito, especialmente neste ano eleitoral.
O próprio ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, disse que não vai aceitar a pressão – que provavelmente já deve estar ocorrendo – para atuar com o peso da maioria parlamentar que o governo Temer tem pela quebra da neutralidade – que é a única coisa que sustenta esse governo.
IHU On-Line – Como o fim da neutralidade da rede nos EUA repercutiu no Brasil, entre os que são a favor e contra essa medida? Como o lobby das telecom tem sido feito no Congresso?
Sérgio Amadeu – No final do ano, quando veio a notícia, para mim foi uma surpresa, porque nos EUA, o Obama, mas também parte dos membros dos partidos Republicano e Democrata, e lideranças intelectuais da sociedade civil são claramente favoráveis à neutralidade, o que gerou a decisão anterior da FCC de lutar pela neutralidade da rede. Então, a decisão foi um absurdo, mas já sabíamos que Trump é intempestivo, uma pessoa que atua sem nenhum prurido pelo capital.
Eu não vi, no Brasil, deputados, políticos e lobistas afirmando que temos que aderir ao fim da neutralidade, porque eles sabem que isso não é simples, mas eles vão atuar dizendo que o setor é deficitário, que vai melhorar para os mais pobres e vão construir um conjunto de argumentos para convencer setores da sociedade. Provavelmente o que vai acontecer nos EUA é a criação de uma lei favorável à neutralidade, então, nem lá a guerra está vencida. Mas aqui, o lobby atua a partir das suas ações, faz café da manhã para deputados, faz eventos. De todo modo, no Brasil o lobby teve que recuar, dada a articulação forte da academia e da sociedade civil pela manutenção de uma internet livre.
A lógica da liberdade só pode ser executada na internet com a neutralidade da rede, porque do contrário teremos a lógica da permissão imposta, ou seja, se a minha universidade criar um novo protocolo na internet, ela terá que pedir permissão para passar pelos cabos das empresas de telecom. É como se o criador da web, Tim Berners-Lee, tivesse que ter pedido autorização da Telefônica para criar a web, ou se os garotos que criaram o YouTube tivessem que ter pedido permissão para usar a rede. A internet mudou completamente o modo de funcionamento, que hoje é criativo e livre.
IHU On-Line – O investimento e o lucro das empresas de telecom foi diretamente afetado por conta da internet nos últimos anos?
Sérgio Amadeu – O que se percebe é que a digitalização dos fluxos de dados cresce e não se estabilizou ainda. As projeções estão dentro de um campo de crescimento, então, não é uma novidade que o fluxo de dados vai continuar crescendo na internet. Logo, tem uma certa mudança de usos, o que é muito comum no mundo da tecnologia, porque determinadas tecnologias são abandonadas por outras que resolvem melhor determinadas demanda, problemas e os interesse econômicos e culturais da sociedade. Então, por que você vai usar telefone via telefonia fixa, se você já tem linhas de dados e pode usar sistema de voz pela internet? Ou por que você vai gastar mais para falar com um amigo que mora na Europa, se você pode falar por streaming? Isso tudo está acontecendo nos últimos anos e está alterando o que era um modelo de negócio consolidado há quase cem anos, que era o modelo de telefonia fixa. Dada essa mudança, as operadoras de telecom querem reduzir o ritmo com que a sociedade usa os dados, reduzindo assim sua necessidade de investimento, mas isso não vai ser possível, porque a sociedade tem uma demanda crescente. Todos os relatórios mostram que a digitalização não vai parar e os setores terão lucro, mas esses setores querem ter uma margem de lucro maior e não querem aceitar a realidade que é a seguinte: essas empresas estão numa área indispensável para a sociedade, porque a internet não é uma moda, ela não vai desaparecer amanhã.
Aliás, há quatro anos ao lado da Biblioteca Mário de Andrade existiam ainda cabos de cobre e a prefeitura de São Paulo não podia usar esse cabo para dar mais cem megas de sinal aberto numa praça pública – isso fazia parte do projeto Wi-Fi Livre, e na região havia uma limitação de banda porque no coração da cidade economicamente mais forte do Brasil não tinha fibra óptica implantada. Então, teve um desleixo no investimento e na expansão das redes de dados e isso só foi retomado quando o ex-presidente Lula, no Programa Um computador por Criança, queria que esses computadores já fossem distribuídos com conexão à internet, para que os mais pobres pudessem usá-la, porque o grande problema não era mais adquirir um computador, mas pagar pelo acesso à conexão. Aí se percebeu que o Brasil era um país desconectado nas grandes periferias, nas regiões Norte e Nordeste. Por conta disso, o ex-presidente Lula lançou o Plano Nacional de Banda Larga, que foi apagado e não existe mais, porque ele virou o plano comercial das operadoras, que perceberam que havia uma pressão de pequenas cidades que não são populosas, mas queriam o direito de se comunicar.
Ainda existe uma carência enorme de banda larga no Brasil, apesar da ter havido uma alteração grande no uso dos aparelhos móveis. Os celulares caíram de preço e as pessoas passaram a usar sinais de Wi-Fi livre, porque ainda é muito grande no país o uso de celulares pré-pagos, porque o custo de telefonia no Brasil ainda é um dos mais caros do mundo e as pessoas não têm dinheiro para usar celular de uma maneira como uma pessoa de classe média alta usa. Então, as pessoas criam estratégias de reduzir custos e uma delas é usar o Wi-Fi, porque quem libera o sinal já está pagando pela banda. Isso é muito comum no Brasil e mostra que existe um campo grande e indispensável de crescimento de comunicação de bases e, portanto, o setor de telecomunicações tem uma entrada de recursos garantida, ou seja, é um capitalismo sem risco, mas que tem que abrir mão dessa ideia de que ele irá prejudicar todos os demais setores econômicos para melhorar a sua lucratividade. Não podemos aceitar isso.
IHU On-Line – Quais são os desafios do Brasil na disponibilização de Wi-Fi, comparando com o que outros países já fizeram?
Sérgio Amadeu – O poder público nunca atuou de maneira bem articulada no campo da chamada inclusão digital e direito de acesso, principalmente porque se percebeu que a falta de acesso à internet no país não se dá por motivos estruturais, mas por motivos socioeconômicos, porque as pessoas não têm recursos econômicos, porque vivemos num país em que a renda é extremamente concentrada.
Algumas estruturas de estados, como algumas prefeituras, realizaram planos de conectividade gratuita. O governo federal nunca conseguiu ter um plano único ou organizar uma política de conectividade que envolvesse as três esferas de governo e que cuidasse desde a infraestrutura até a parte final. O plano que mais se aproximou disso foi o Plano Nacional de Banda Larga, que foi anulado e que já estava paralisado na segunda gestão da Dilma – que foi um governo turbulento e alvejado por tentativas de golpe –, e o atual governo não moveu um dedo para colocá-lo em aplicação. De outro lado, algumas cidades grandes, como São Paulo, começaram uma política pública de acesso aberto ao Wi-Fi em locais públicos. Esse plano, na troca de gestão não foi descontinuado e também não foi ampliado.
Gargalos
Outras cidades têm começado a desenvolver essa política de Wi-Fi livre, mas o grande gargalo disso é que essas prefeituras têm que pagar pelo link da internet. Quando as prefeituras precisam ampliar o consumo de dados de 100 megas para 500, por exemplo, isso não significa que as empresas de telecom vão cobrar cinco vezes mais, mas elas cobram muito mais do que é razoável, então, quando se muda de faixa, o preço passa a ser exorbitante e uma prefeitura pequena não consegue manter um projeto de Wi-Fi livre exatamente por causa do custo da venda de dados.
No Brasil temos uma carência de uma política pública de acesso livre à internet e o que percebemos é que é possível construir cooperativas de conexão, e existem empresas menores de conectividade que estão conseguindo vender os acessos mais baratos do que as operadoras. É preciso incentivar essas possibilidades coletivas de abrir o sinal, enquanto se espera que o setor público cumpra sua obrigação de fazer uma política pública.