#Exclusivo: Decisão da Advocacia da União sobre o Marco Temporal provoca oito mandados de despejo contra a Terra Indígena de Takwara, onde Valdelice Veron chora o luto do pai
Em meio ao cerrado do Mato Grosso do Sul, na região de Dourados, as tempestades desfiguram repentinamente o céu límpido, de sol intenso. A chuva e os animais parecem prenunciar o perigo. Os canaviais, as matas ciliares e as plantações de soja escondem as lideranças indígenas juradas de morte. Na Terra Indígena Takwara, no município de Juti, onde sete etnias já vivem aterrorizadas pelos pistoleiros dos fazendeiros, o clima ficou mais tenso depois que o Governo Temer impôs medidas que tornaram o já massacrado povo Guarani e Kaiowá ainda mais vulnerável aos ruralistas. Para expulsá-los de suas terras, os latifundiários atropelam e matam os indígenas em emboscadas, sequestram-nos e estupram suas mulheres e meninas.
Por conta dos efeitos do chamado “Parecer Antidemarcação”, emitido em julho de 2017 pela Advocacia Geral da União e amplamente adotado pelo executivo, oito mandados de despejo pesam sobre o as terras retomadas no Mato Grosso do Sul. As liminares, com prazo de cumprimento até o dia 24 deste mês, repercutem na Terra Indígena de Takwara (no original, Taquara no laudo técnico): para efetuar a ação, a polícia precisará passar por duas áreas de retomada com pelo menos 12 mil indígenas, que não estão dispostos a entregar a terra de seus antepassados.
Entre o luto e a luta, a guerreira Valdelice Verón, 37 anos, percorreu muitos quilômetros sob o sol quente pela mata para chegar de manhã cedo ao local onde o pai está enterrado. O dia de ontem (13/1) foi inteiramente dedicado às cerimônias ritualísticas que marcam todos os anos a morte do grande cacique Marcos Verón, torturado e assassinado há 15 anos, quando um sanguinário ataque dizimou homens, mulheres e crianças do território. De 11 a 15 deste mês haverá cantos e cerimônias em homenagem ao líder em cada terra retomada de Takwara, onde Valdelice é líder do grande conselho de articulação Guarani Kaiowá. Até hoje a memória e a história do cacique são cultuadas pela filha que, desde os oito anos de idade, assumiu a liderança e a proteção do seu povo. Os massacres se intensificaram em 1953, quando os Kaiowá foram expulsos da Terra Indígena pelos fazendeiros do Mato Grosso e pelo Governo Federal para ocupar, contra sua vontade, as reservas, “lugar para o abate, confinamento e morte do índio”, como ela mesma define. O pai foi morto em 2003 e, em seguida, o primeiro irmão, ainda adolescente, e os outros dois irmãos, Zeca e Sérgio Verón, em 2015 e 2016, todos jovens lideranças da luta pelo direito à terra. Uma de suas irmãs perdeu dois filhos de fome quando no processo de despejo.
É no leito da terra sagrada de infância, nessa terra de doces lembranças de família e de traumas profundos, que ocorre a cerimônia fúnebre. O pequeno cortejo tem à frente a mãe sobrevivente do extermínio, Nhandecy, ou mama Júlia Cavalheiros, 79 anos, e Pietra Dolamita, 38 anos uma índia Kauwá Apurinã que veio do Rio Grande do Sul para apoiar a amiga-irmã neste momento de ameaça e triste celebração.
Pintada e vestida conforme a tradição, Valdelice entoa os cantos sagrados sob a percussão do chocalho Mbaraka e discursa sobre a luta de resistência pacífica do seu povo. Cumpre assim um ritual no qual política e espiritualidade se intersectam num único fundamento: a paz e a retomada da terra sagrada. Ao mesmo tempo que chora, canta e reza, Valdelice protesta contra a perseguição dos Guarani Kaiowá e do pai. “Até os restos mortais dele estão ameaçados de despejo”, protesta. Ao discursar no meio da desertidão do Cerrado, ela exige que os fazendeiros devolvam o corpo dos irmãos, sequestrado de seus túmulos.
Poucas mulheres acompanham a cerimônia porque o perigo das ordens de desocupação nas terras vizinhas serem cumpridas a qualquer momento torna a expedição uma missão de altíssimo risco. Aos homens e mulheres líderes cabe apoiar os caciques Ládio Verón e Arauldo Verón na proteção de seu povo e ajudar o coletivo a tomar as decisões importantes. Por isso, os líderes são tão visados pelos fazendeiros e precisam “ficar invisíveis” nestes dias temerosos. Mas o dia 13 de janeiro é uma data sagrada que não pode passar sem os devidos rituais .
Como faz todos os anos, a líder tinge o firmamento de madeira erguido sobre o túmulo do pai com o vermelho do Urucum, planta que simboliza o sangue da vida, assinalando ao mesmo tempo a sua ausência e a sua memória, que ela vive para preservar, junto aos 18 filhos que ele deixou, e outros tantos netos e bisnetos, muitos dos quais nem chegou a conhecer. Como faz também em todos os rituais, pendura no poste funeral um adereço indígena cujo significado não pode revelar. Pergunto se Taperendy é o nome do pai em Kaiowá inscrito no epitáfio da cruz e Valdelice responde que sim, mas faz questão de me corrigir com firme delicadeza: “Não é cruz, são firmamentos ancestrais que seguram a terra”. Pietra adverte que seria uma ofensa para a cultura Guarani chamar uma “Yvy Rojoasa Ropyta” de cruz, como na cultura jesuíta.Poucas mulheres acompanham a cerimônia porque o perigo das ordens de desocupação nas terras vizinhas serem cumpridas a qualquer momento torna a expedição uma missão de altíssimo risco. Aos homens e mulheres líderes cabe apoiar os caciques Ládio Verón e Arauldo Verón na proteção de seu povo e ajudar o coletivo a tomar as decisões importantes. Por isso, os líderes são tão visados pelos fazendeiros e precisam “ficar invisíveis” nestes dias temerosos. Mas o dia 13 de janeiro é uma data sagrada que não pode passar sem os devidos rituais .
Guarani e Kaiowá são dois povos diferentes que se uniram matrimonialmente na luta para retomar a Terra Indígena Takwara, que abrange 9.700 hectares, conforme o laudo oficial. Mas por direito a área seria maior, segundo Valdelice, formada em história indígena e estudante de Mestrado profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais, pela UNB. Takwara é uma das 42 áreas reocupadas que os Guarani Kaiowás chamam de “terras retomadas”.
Os despejos violentos começaram a partir de 1919, quando o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) criou as oito reservas, justamente com o objetivo de obrigar os indígenas a evadirem de seus territórios tradicionais. Valdelice simboliza a materialização dessa união interétnica estratégica, a partir do casamento com um índio Guarani. Além dessas duas etnias, outras cinco, num total de sete que habitam o Mato Grosso, também estão ameaçadas pela decisão da AGU: os Terena, Guató, Ofaiyé, Kinikinaua e Kadiwéu. “As liminares terão um efeito dominó devastador”, alerta Pietra.
Como os Guarani e Kaiowá foram os últimos a migrar para as reservas indígenas, são os mais perseguidos pela força de resistência dos seus clãs, feridos pelo sistema de matriarcado, explica Pietra, que é formada em Direito, especialista em Direito do Trabalho e Direito Público e fez mestrado em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Sul, com a dissertação “Shanenawa, o povo do pássaro azul: as possibilidades de uma educação ambiental profunda” e agora realiza mestrado na Universidade Federal de Pelotas, com um estudo sobre as mulheres Kaiowás e a violência simbólica. “Os clãs começaram a retornar para a terra de seus antepassados nos anos 80, e a cada retorno são expulsos com muita violência”. Há mais de duas décadas essa aliança ancestral produziu inúmeros movimentos de retomada da terra roubada, num combate destemido de vida e de morte. Apesar da vida desgraçada pelos governos e ruralistas, os Guarani e Kaiowá acreditam que a Terra do Sol vai um dia pôr fim à sua dor. Do firmamento, sorri a esperança póstuma de Taperendy, que significa “caminho iluminado”. Antes de ser condenado o mandante do crime que calou fundo na alma da comunidade, o neto do latifundiário Jacinto Honório da Silva Filho já investe seu ódio contra os indígenas. Mas novas lideranças também se erguem na luta pela resistência. E isso é o ciclo da vida.
Através da amiga Pietra Domitila, que estuda no seu segundo mestrado em Antropologia a violência simbólica contra os Kaiowá, converso com Valdelice por telefone. Foi estudando que a indígena despertou o interesse pela verdadeira história de seus antepassados e do seu próprio nome. “Descobri que nosso sobrenome veio de um argentino que escravizava os índios e eles iam sendo registrados com o sobrenome dele”. Num depoimento gravado no celular, emocionada e trêmula, mas também convicta e corajosa, Valdelice conta a história de seu pai, de sua família e de seu povo. E afirma: “Nós estamos demarcando as nossas terras com o nosso próprio sangue”.
As duas amigas conversam atentas aos sinais das plantas, dos bichos e do céu, pois os fazendeiros estão paramentados até com câmeras de drone para localizar a líder. Diante de qualquer suspeita, elas se embrenham na mata, onde o jagunço do fazendeiro não entra. “O mato tem uma coisa que não deixa o branco entrar”, diz Pietra. Ao anoitecer, antes de retornarem ao seu esconderijo com as outras mulheres, conversamos as três por telefone e Valdelice me dá o seguinte depoimento, que transcrevo na íntegra:
Valdelice verón vive o luto do pai temendo novos massacres
“Hoje, 13 de janeiro de 2018, nós da família do cacique Marcos Verón, juntamente com as lideranças indígenas, estamos reunidos na terra indígena Takwara, município de Juti, Mato Grosso do Sul, no Brasil, para lembrar a história de luta, de resistência do cacique.
A nossa terra indígena tradicional é Takwuara. Sempre vamos voltar nela. Tem um grande significado porque é uma terra sagrada. É onde nós temos a memória, onde nós temos a história. Por isso nós voltamos a retornar nossas terras indígenas aqui no estado do Mato Grosso do Sul, porque aqui no Brasil nós não somos ouvidos.
Nossos governantes que era pra fazer respeitar nossa Constituição Federal, que é a nossa lei que está escrita, eles não respeitam, eles rasgam, queimam a Constituição Federal e matam nós quando nós lutamos por nossa terra. Nós somos perseguidos pelos latifundiários e mortos pelos pistoleiros dos fazendeiros aqui no Mato Grosso.
Apesar de termos já o cacique Marcos Verón e 289 líderes indígenas assassinados no Mato Grosso, entre eles Kurissiope, a matriarca indígena da terra. Eles atiraram nela à queima-roupa, uma matriarca de 80 anos, na terra de Makurissiambá, no Mato Grosso do Sul. Outro também foi morto e cercado pelos pistoleiros. E assim nós seguimos demarcando nossa terra indígena com luto e sangue. Nós estamos demarcando as terras indígenas com nosso próprio sangue.
Hoje quando a gente lembra o cacique Marcos Verón foi um pai, foi um avô, foi um genro, um sogro, um amigo, um companheiro. Ele foi um guerreiro Kaiowá para nós. Por isso vão passar várias gerações e nós vamos lembrar dele. Vamos lembrar dele, esse guerreiro que ele é. Todos nós, os 18 filhos e filhas, netos e bisnetas ele vai se lembrar dele e da resistência e vamos lembrar da bandeira dele que é terra, vida, justiça e demarcação.
No dia 13 de janeiro de 2003, fomos cercados pelos pistoleiros na nossa T.I. Takwara, quando a minha família, as mulheres, crianças foram espancadas estupradas, mulheres e meninas foram violentadas. Nosso cacique foi torturado e morto. Estamos lembrando nossa forma de resistência com muita força e coragem. Lembrando a luta dele fazendo esses ritos de canto e dança com mbaraka. Nossa forma de luta Kaiowá é pacífica. Isso é o que estamos fazendo hoje 13 de janeiro de 2018, ainda com muita tristeza.
Eu agradeço vocês que são poucas jornalistas, que faz o papel falar, que leva a nossa luta, a nossa tristeza, para as pessoas saber que nós ainda estamos aqui, ainda estamos de pé, ainda estamos vivas. Agradeço a todos vocês.
Terra Indígena de Takwara sofreu o primeiro despejo em 1953. O povo foi arrancado da terra e jogado nas reservas indígenas criada pelo Serviço de Proteção ao Índio e pelo governo. Nós, índios kaiowá, nunca aceitamos a reserva porque significa área de abate, de confinamento, área de morte.
Esse fazendeiro sem coração que torturou e matou nossa cacique Marcos Verón, de nome indígena Taperendy, que significa Caminho Iluminado, não vai ficar impune. Na terra, toda a divindade sabe, o que aconteceu com o povo indígena Kaiowá aqui no Mato Grosso do Sul”.
Na prática, o parecer da AGU paralisou as demarcações de vez”, afirma em nota o Instituto Socioambiental (ISA). Mas a tese do marco temporal faz pior do que isso. Como uma estratégia do governo Temer e da bancada ruralista capaz de deflagrar a desocupação das áreas retomadas e favorecer ordens de despejo violentas a prerrogativa da terra raposo da serra tende a produzir um drástico retrocesso, se não houver ampla reação nacional e internacional.”
Com seu poder de influência sobre a Justiça Federal, a Advocacia Geral da União (AGU), que deveria ser o principal órgão de defesa do cumprimento do direito à terra dos indígenas brasileiras, acabou criando um mecanismo desencadeador de ordens de despejo e de reintegração de posse contra os povos indígenas. A ameaça de novos massacres provocada pela decisão pode ser sentida por todas as etnias de terras retomadas do Mato Grosso do Sul, sobretudo na região de Dourados, conforme posição oficial do Conselho Missionário Indígena. Isso porque o estado concentra o mais acentuado passivo de regularização fundiária dos territórios tradicionais no país.
Publicado em julho pela advogada-geral, Grace Mendonça, e adotado pelo presidente Temer para todos os órgãos federais, o parecer 01/2017 teria, conforme as lideranças indígenas, a função de manter o quadro de não-reconhecimento dos direitos ao território como está. O dispositivo obriga toda a administração pública, inclusive a Fundação Nacional do Índio (Funai), a obedecer as condições estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (Roraima). “Na prática, o parecer paralisou as demarcações de vez”, afirma em nota o Instituto Socioambiental (ISA). Mas a tese do marco temporal faz pior do que isso: como uma estratégia do governo Temer e da bancada ruralista capaz de deflagrar a desocupação das áreas retomadas e favorecer ordens de despejo violentas, ela tende a produzir um drástico retrocesso, se não houver ampla reação nacional e internacional.
Prova disso, é que a AGU também está anexando o parecer aos processos judiciais em que está arrolada como parte interessada, conforme nota do Instituto Sócio-ambiental, que está articulado com o movimento indígena #Resistência2018 para tentar revogar o parecer. “O resultado provável serão decisões judiciais desfavoráveis às comunidades indígenas. Assim, o governo Temer consolida o pior desempenho nas demarcações desde a redemocratização do país”, denuncia a entidade.
O Marco Temporal restringe os direitos territoriais dos povos determinando que só podem ter reconhecidas as terras que estavam sob sua posse na data em que a Constituição Federal foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. Explica o artigo publicado pelo CIMI: “Existe uma crise humanitária na Reserva de Dourados se arrastando há pelo menos duas décadas. Os 16 mil indígenas Guarani Kaiowá e Terena vivem confinados em três mil hectares e buscam terras para desafogar’ a situação”.
Sem a sua participação ou concordância, os indígenas foram levados para a Reserva no decorrer do final da primeira metade do século XX, como política de colonização de “terras devolutas” do então estado do Mato Grosso. Portanto, em 5 de outubro de 1988, esses povos já não estavam nas terras tradicionais de onde foram retirados à base de força e violência, explica o documento. “Dessa maneira, a cada retomada ou ocupação de terra fora da Reserva, eles sofrem ações de reintegração de posse que desde o ano passado têm como principal argumento deferidor a tese do marco temporal”, diz ainda.
Em entrevista a jornalistas de Brasília, Sônia Guajajara, uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), afirmou que se trata de medida do Poder Executivo como um todo, justamente o que tem como papel efetuar a política de demarcações: “Como a retomada de terra é a alternativa dos povos para garantir o território tradicional, esse parecer é o combustível necessário para abastecer a usina de reintegrações de posse, com destaque para as decisões de primeira instância”.