Todos leremos o Acórdão como testemunhas vivas de uma História inacabada

Por Roberto Tardelli, no Justificando

Conta-se que Ulisses Guimarães, então presidente do Congresso, foi chamado às pressas e comunicado da morte de Tancredo Neves, que faleceu sem que houvesse sido empossado na Presidência da República. Havia um raciocínio direto sustentando que ele seria o sucessor natural de Tancredo.

Todavia, percebendo que aquela era a oportunidade de ouro para fechar o ciclo militar, praticou o “Senhor Constituinte” o que um Ministro conservador do STF chamaria de salto twist carpado, naquilo que, na capa, alguém, de paletó e gravata, escrevera, fiel a seus amos, de uniforme verde-oliva, a exótica palavra “Constituição”, mas que não passava da expressão arbitrária dos governos militares e de sua peculiar forma de legislar, via Atos Institucionais, e fez de José Sarney, o vice da chapa de Tancredo, aquele que seria o Presidente da República.

Quando perguntado por que motivos teria agido assim, por que motivos de imediato abrira mão do que era seu, respondeu singelamente: “- Fizemos História.”

O que seria isso, fazer “História”, com agá maiúsculo?

Me dá a sensação de que é a tomada de alguma decisão grave, que importa em enorme sacrifício pessoal, em nome de um bem maior, algo que apenas a estadistas e visionários é dado fazer. “Fazer História” é ter noção de que a decisão a ser tomada será libertadora, se entendermos que o processo histórico é o da evolução das liberdades. “Fazer História” é segurar o Leme do Barco que nos leva e atravessar os nevoeiros, as tempestades, os maremotos.

“Fazer História” não é para todo mundo, mas apenas para quem que consegue enxergar muito além de seu Tempo, para quem consegue perceber que aquele gesto será significativo, se não para abrir mares à passagem de seu povo, ao menos para assinalar o caminho a que se deve seguir ou, mais heroicamente, aquele caminho de pedras envenenadas, que não se deve trilhar, por nada nesse mundo. Faz História quem, tendo nas mãos raios e trovões, arreda de si o arbítrio, porque demonstra grandeza épica e compaixão pelo próximo. Faz História quem consegue partir em direção ao Humanismo mais solidário, mesmo o vozerio dominante clamar por soluções preconceituosas, estúpidas, violentas, que negam os valores que os agentes históricos acalentam.

Faz História quem consegue se livrar da glória imediatista, porque sabe que a História não é feita pelos imediatistas.

No próximo dia 24 de janeiro, três desembargadores irão optar se vão fazer História ou não.

São centenas de juristas no Brasil e no exterior que perceberam, fosse com as lentes do saber científico que enfeixam em mão, fosse pela experiência vivida na advocacia e nos tribunais, que a condenação de Lula em primeira instância foi absolutamente esdrúxula e que negou a principiologia elementar do Direito e a própria jurisprudência construída pelos tribunais, que a sentença em querelas narcísicas e em sofismas de todos os gostos.

Centenas de juristas se juntaram para mostrar, pelo menos, cento e um motivos para que essa sentença jamais prospere. Penalistas consensualmente venerados, em sua imensa maioria,  apontaram aspectos funestos de uma sentença, prolatada por um juiz que cedeu tudo o que a judicatura tem transcendental para atender a um delírio egocêntrico e, ao invés de fazer História, preferiu construir uma farsa, da qual ainda será cobrado.

Todos já sabem que a sentença é um primor de incoerências.

Não é possível que tão experimentados juízes, com décadas de estrada, não saibam ou tenham se convencido de que a insensatez seja a diretriz a ser tomada. Evidentemente que não. Nenhuma linha de que hão de se cuidar foi milimetradamente escrita e repensada, porque todos sabem, eles inclusive, que a decisão que anunciarem há de entrar para a História e daqui a não mais de quinze dias, todas as escolas de Direito, no Brasil e no mundo a repercutirão.

Todos leremos o Acórdão, do chapeiro da padaria ao pós-doutor em filosofia, todos leremos não nos importando se vamos compreender ou não, mas vamos ler como testemunhas vivas de um tempo, de uma História inacabada. Resta saber se leremos um documento histórico ou uma página canhestra de uma farsa da qual não se livraram os Doutos Desembargadores, por essas limitações humanas que nos tornam, enfim, universalmente medíocres.

Entre a farsa e a História há, decerto, um pátio, uma praça, onde caminham democratas e fascistas, esses, que bem disse o Desembargador catarinense Lédio Rosa de Andrade, vestem a mesma toga.

Se nós, nos pastos de ódio das redes sociais, não sabemos distingui-los, a História o fará, implacavelmente.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.

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