Crise de suicídios indígenas no Brasil: o que nós sabemos sobre a psicologia indígena?

Por Vilma Reis*, na Abrasco

No início de 2018 o Ministério Público Federal e as Defensorias Públicas da União e do Estado de Mato Grosso do Sul ajuizaram ação civil pública para obrigar a implementação de política pública destinada à saúde mental da população da Reserva Indígena de Dourados, a com mais alto índice de suicídio no Brasil: em 2015, enquanto a taxa brasileira foi de 9,6 suicídios por 100 mil habitantes, a mesma taxa entre os indígenas foi de 89,92, a maioria entre 15 e 29 anos. Entre 2012 e 2014, o Brasil teve taxa média de 29,2 homicídios por cem mil habitantes. A taxa para os indígenas da reserva foi de 101,18 por cem mil habitantes. O número é quase 400% superior aos não indígenas do Mato Grosso do Sul, de acordo com a ação. Embora representem apenas 6,79% da população de Dourados, os indígenas responderam por 67% das internações de menores por delitos.

Diante destes números a Abrasco ouviu Luiza Garnelo, membro do Grupo Temático Saúde Indígena da Abrasco e pesquisadora da Fiocruz. Luiza é bacharel em Medicina e Filosofia e doutora em Ciências Sociais/Antropologia.

Para Luiza, dar visibilidade a essa temática é absolutamente relevante no contexto da análise da violência em saúde, tal como concebida pela saúde coletiva no Brasil:

Os poucos trabalhos disponíveis sobre o tema mostram taxas alarmantes, pari passu a ausência de uma política adequadamente traçada para iniciar o enfrentamento de tais problemas no âmbito do subsistema de saúde indígena.

As razões habitualmente levantadas como correlacionadas ao suicídio indígena apontam problemas ligados à violenta história da colonização, invasão de terras, discriminação e desigualdades relativas aos modos de vida do mundo não indígena, abuso de álcool e diversos processos sociais que redundariam num clima propício a auto agressão indígena, resultando em suicídios. São questões certamente relevantes que expressam iniquidades sociais, que incidem de modo mais profundo e agudo sobre as minorias étnicas que vivem em território brasileiro e que podem e devem ser objeto de preocupação e de investigação desse delicado problema de saúde.

Entretanto, uma adequada abordagem do problema demanda também a preocupação com um componente que não tem sido objeto de preocupação das autoridades de saúde e da maioria dos pesquisadores nesse campo. Trata-se da investigação de dimensões internas dessas sociedades, tais como o regime do parentesco, as dimensões mito cosmológicas que instituem os fundamentos das subjetividades indígenas, as relações intergeracionais, os conflitos que dilaceram a vida de jovens indígenas – população em que são maiores os índices de suicídio – frente à impossível conciliação entre as exigências de escolarização e profissionalização demandada pelo mundo moderno e os papeis sociais propriamente indígenas, marcados pelo limitado espaço para a individualização que parece ser uma característica inerente ao sucesso no mundo do branco, em detrimento da família e do grupo social.

Nesse contexto não sabemos, de fato, que dimensões qualitativas envolvem o ato suicida, já que todos os grupos estão sujeitos a pressões e violências advindas do mundo do branco, mas nem todos se suicidam e algumas etnias sofrem com maiores taxas de suicídio do que outras. Quais seriam as contradições e impasses existenciais que impeliriam jovens indígenas ao suicídio? Que problemas eles enfrentam e que, consideram de tal forma insolúvel que o caminho a trilhar lhes parece ser a morte? Ou seja, o estudo das dimensões sociais, econômicas e fundiárias certamente deve ser parte integrante da investigação desses eventos, mas não se deve descurar de investigar o lado interno desses eventos, sob pena de reduzirmos os povos indígenas a meras caixas de ressonância que respondem às pressões externas de modo mais ou menos mecânico e mais ou menos desesperado na forma de autoagressão.

Por fim, cabe uma reflexão sobre a organização de serviços de saúde nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, muitos dos quais contam com psicólogos que devem se responsabilizar pela “saúde mental” da população atendida. Nesse âmbito, em que pese a boa vontade e motivação da maior parte deles, faz-se necessário perguntar o que seria “saúde mental” do ponto de vista indígena, ou seja, de um ponto de vista não etnocêntrico? O que sabemos nós sobre a psicologia indígena? Quais seriam os modos de sofrimento e expressões derivadas em grupos culturalmente diferenciados que não partilhem a lógica da razão ocidental disseminada há pouco mais de dois séculos pela psicologia e psicanálise, que mais do que descrever, produziram um constructo do que seja a razão ocidental?

Que fundamentos temos para as ações de saúde mental, cujas teorias são essencialmente ligadas à organização das sociedades ocidentais modernas e pouco conhecimento acumularam sobre mundos, imaginários e sentimentos não ocidentais que instituem a base do que chamamos de saúde mental. Em suma, há que se problematizar também se a atenção dita diferenciada que é preconizada pela política nacional de saúde das populações indígenas dispõe, no seu componente de saúde mental, de fundamentos que permitam aos profissionais abordar os modos de ser, de viver e de sofrer dos indígenas nos cuidados ofertados em sua rede de serviços, assegurando-se de que os mesmos não padeçam dos males do etnocentrismo que é, na base, parte inerente dos determinantes sociais e culturais do adoecimento dos grupos que a própria política se propôs a assistir“, pontua Luiza.

*com informações do HuffPost Brasil e The Globe and Mail.

Destaque: Ilma Gomes é uma rezadeira Guarani-Kaiowa que chora o suicídio de 17 adolescentes. Foto A.V. Elkaim.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Marcelo Porto.

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