A (i)moralidade do juiz moralista

Por Frederico de Almeida, no Justificando

Quando se descobriu que o juiz Marcelo Bretas, responsável pelo braço fluminense da Operação Lava Jato, obteve auxílio-moradia para si e para sua esposa, também juíza, a resposta do magistrado foi no sentido de dizer que ele apenas pleiteou judicialmente um direito que considerava ter. Vamos deixar de lado, por enquanto, o fato de que a resposta de Bretas veio por meio de seu perfil no Twitter, cheio de ironias, gracinhas e emojis.

O auxílio-moradia é um daqueles penduricalhos que juízes recebem e que, somados a outros tantos, fazem que seus salários não raro ultrapassem o teto constitucional, fixado como sendo o salário de um ministro do Supremo. Sim, há juízes que ganham mais do que ministros do Supremo, e há ministros do Supremo que recebem mensalmente mais do que o valor formal do teto. Isso porque esses auxílios são considerados “indenizatórios” e não “remuneratórios”. Ou seja: pela interpretação que os juízes fazem (em seu próprio benefício), o teto se refere à remuneração, e portanto os valores indenizatórios que extrapolam o teto não são ilegais.

Desde 2014, uma liminar do ministro Luiz Fux – decisão monocrática até hoje não apreciada pelos demais juízes do STF – garante pagamento do auxílio-moradia a todos os juízes federais do país. Após essa primeira liminar, solicitada pela associação corporativa dos juízes federais, em outras duas decisões monocráticas tomadas na sequência o mesmo Fux estendeu o pagamento dos benefícios a todos os juízes brasileiros, mediante solicitação de outras entidades corporativas.

Também na sequência, e em decorrência das decisões (precárias, provisórias, individuais) de Fux, o CNJ regulamentou o auxílio-moradia para todos os tribunais do país. Dizem que o STF deve julgar muito em breve e em definitivo a questão – como se fosse possível falar em brevidade após tanto tempo e tanto dinheiro gasto.

Uma das restrições impostas pelo CNJ diz respeito a casais de juízes. A regulamentação do Conselho diz que o auxílio não pode ser pago se um dos cônjuges já o recebe e ambos vivem na mesma cidade. Foi contra essa restrição que Bretas ajuizou ação, ao lado de outros colegas, tendo seu pedido julgado por outros colegas.

A teoria do direito se debate há séculos sobre a relação entre direito e moral. Se normativamente é difícil traçar a fronteira entre uma coisa e outra, sociologicamente é possível entender a questão de um ponto de vista mais realista: há diferentes sentidos do direito, assim como há diferentes moralidades que circulam no meio social; os sentidos do direito, assim como as moralidades, submetem-se a disputas para se definir qual norma, qual interpretação do direito, qual moralidade será prevalente.

Mais do que isso: o estabelecimento de novas regras de direito, e de novas interpretações das regras existentes reflete a disputa sobre moralidades, sobre visões do mundo que se traduzem em direito.

O casal Bretas, os colegas coautores e os colegas julgadores da ação judicial que derrubou a restrição imposta pelo CNJ não agiram de maneira ilegal. Assim como todos os juízes que recebem acima do teto não estão em situação formalmente ilegal. Assim como Fux não agiu ilegalmente ao conceder a liminar até hoje não apreciada pelos seus colegas. Assim como a filha de Fux, feita desembargadora aos 35 anos de idade por pressões de seu pai (estas sim, que desafiam os limites da legalidade) também age de forma legal ao receber auxílio-moradia do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mesmo sendo proprietária de dois imóveis na cidade onde reside e trabalha.

A resposta de Bretas no Twitter, com toda sua ironia, pressupõe, justamente, que direito e moral são coisas diferentes. Mas sabemos que não é bem assim. Não só as regras vigentes respondem a certas moralidades (no caso, a dos juízes que se têm em tão alta conta que defendem e garantem, pela força das próprias decisões, privilégios aos quais a grande maioria dos trabalhadores brasileiro não tem direito); também a oposição a elas demonstra moralidades desafiantes, ou no mínimo desafios às moralidades dominantes (no caso, a crítica amplamente difundida a esses privilégios, independentemente de sua legalidade, em um país obscenamente desigual e em um momento de recessão econômica e de reforma regressivas, que afetam justamente os mais pobres enquanto preservam os ganhos dos mais ricos).

E não pode agora Bretas querer sentar-se em cima do muro imaginário que separa o direito da moral. Ele mesmo pulou esse muro várias vezes, de um lado para o outro, quando fez de sua atividade judicial e do julgamento de casos concretos e de responsabilidades individualizadas uma atividade cunho claramente moral: a “cruzada” contra a corrupção; a condenação pública, indiferenciada e extrajudicial da atividade política como um todo; a aceitação vaidosa e sem ressalvas da transformação de sua figura em herói; o proselitismo político e religioso em decisões judiciais, entrevistas, campanhas midiáticas e posts em redes sociais.

Assim como o juiz Sérgio Moro. Assim como os procuradores da República Deltan Dallagnol, Carlos Fernandes dos Santos Lima e Thaméa Danelon. Assim como as associações corporativas da magistratura e do Ministério Público que, ao invés de criticar abusos e debater limites, endossaram o voluntarismo daqueles moralistas e acusaram todos os seus críticos de atentarem contra as instituições judiciais.

Todos eles se aproveitaram dos compreensíveis e justificáveis anseios populares contra a impunidade e a corrupção dos poderosos para misturarem, como lhes convinha, o direito e a moral; que enfrentem agora a indignação moral, igualmente compreensível e justificada, contra os privilégios de suas carreiras, independentemente de sua (questionável) legalidade.

Frederico de Almeida é cientista político e professor na Unicamp.

Foto publicada pelo juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, em sua conta pessoal do Twitter, no final de novembro de 2017

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