O julgamento de Lula no Brasil pós-democrático

Vozes se erguem neste momento para apontar a iminente derrocada do princípio da soberania popular com a consolidação do golpe de 2016 pela via de eleições cerceadas e sem legitimidade

Na Fase

O impacto da confirmação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), num julgamento farsesco, sem o menor cuidado com a simulação do devido processo legal e da produção adequada de provas, torna imperativa uma reflexão sobre o que resta da democracia no Brasil. Muitas vozes se erguem neste momento para apontar a iminente derrocada do princípio da soberania popular com a consolidação do golpe de 2016 pela via de eleições cerceadas e sem legitimidade.

Ao longo do processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, alguns interlocutores oriundos dos setores mais excluídos da população criticaram nos debates públicos a hipótese de que estava em curso a derrocada do Estado Democrático de Direito. De fato, para moradores de favelas e de outros locais empobrecidos pelo sistema, onde o cotidiano é atravessado pela insegurança e violência policial, com o extermínio sistemático da juventude negra, parecia estranho atribuir ao Estado que os oprime o caráter de Estado Democrático de Direito. Estado de Direito sim, mas não democrático. Estado a serviço dos endinheirados e, sobretudo, do “deus” mercado e da mídia que a eles servem.

O impedimento e a ofensiva brutal e sistemática de desconstrução de direitos que a ele se seguiu aprofundou, sem sombra de dúvida, a erosão da democracia no país, mas não inaugurou o Estado pós-democrático. A trágica coincidência entre o momento da redemocratização do país depois da ditadura civil-militar – com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 – e o primeiro ciclo do avanço do neoliberalismo no Brasil, com Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, estabeleceu limites bastante estreitos para o avanço e o enraizamento da democracia. A crise econômica mundial de 2008 e a nova conjuntura política internacional – para não falar dos desacertos políticos do segundo mandato de Dilma Rousseff – criaram as condições para um novo ciclo de aprofundamento do neoliberalismo no país, por meio das “reformas” antipopulares do governo golpista de Michel Temer.

As classes dominantes brasileiras, em especial as aves de rapina do capital financeiro (o mercado), aparentemente perderam a noção de limites. Agem como se a população fosse composta de idiotas incapazes de perceber a contradição entre a hipócrita moralidade que adotam para condenar Lula e a leniência com que tratam a blindagem pelo Legislativo de Temer e suas falcatruas, tudo em nome da destruição dos direitos trabalhistas, da Reforma da Previdência, enfim, do desmonte dos direitos consagrados na Constituição Cidadã de 1988.

“Agora é que eu estou descobrindo a diferença entre a democracia formal e a democracia em que nós vivemos (…) Mas onde é que todos são iguais perante a lei quando a mulher é discriminada? Como é que todos são iguais perante a lei se o negro é discriminado, se o índio é discriminado? Onde é que está a igualdade?”, questionou o ex-presidente Lula após seu julgamento. A profunda desigualdade que estrutura a sociedade brasileira – gerando a oposição entre democracia formal e democracia substantiva ora apontada por Lula – é objeto agora de grotesca manipulação política e jurídica com base na suposta imposição pelo Judiciário do princípio da igualdade de todos e todas perante a lei.

Os desembargadores de Porto Alegre, ao se arrogarem o poder de condenar o ex-presidente Lula independentemente da existência de provas, em nome da moralidade e com base em um julgamento político, solapam a base de legitimidade do seu poder de juízes, que deriva exclusivamente da fidelidade absoluta ao direito e à defesa intransigente dos direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs. O viés político-partidário na atuação do Judiciário, em nome do “combate à corrupção” e da defesa da “moralidade pública”, representa uma inequívoca usurpação da soberania popular.

Está, assim, posta com clareza a questão que divide agora a sociedade brasileira numa luta de classes que tende a crescente radicalização: a quem caberá a soberania no Estado. Ao povo, num árduo processo de reconquista do Estado Democrático de Direito, ou ao consórcio golpista formado pelos oligopólios da mídia, pelas corporações do Sistema de Justiça e pelas elites econômicas? A reafirmação da soberania popular dificilmente se dará em 2018 através de um novo pacto de conciliação entre o grande capital e o campo popular. A luta pelos direitos das classes populares só será vitoriosa numa caminhada de longa duração.

Foto: Gilka Resende/FASE.

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