No início deste mês, o Brasil ratificou um tratado que oferece mais segurança às trabalhadoras. Número de profissionais está em declínio pelo esforço das novas gerações em buscar outros trabalhos
Por Felipe Betim, no El País
“Levanto todos dias às cinco da manhã, e todos os dias minha vida é uma luta”. Edilene Pereira divide seu tempo entre trabalhar como diarista duas vezes por semana e cuidar sozinha de seus quatro filhos. Faz quatro anos que ela deu à luz a duas meninas gêmeas, sendo que uma delas, Alícia, nasceu com microcefalia e paralisia cerebral. Quando Edilene não está trabalhando, se dedica a levar a menina bem cedo a sessões de fisioterapia e fonoaudiologia em três lugares diferentes. Seu sonho, ela conta, é ver os filhos formados na faculdade e todo seu esforço recompensado. “Qual mãe não sonha com isso?”, questiona ela da casa onde trabalha, no bairro Alto de Pinheiros, em São Paulo.
A cerca de sete quilômetros dali, no bairro Consolação, Gildete Carvalho de Souza, de 49 anos, limpa um apartamento de quarto e sala, um dos vários que ela trabalha quase que diariamente. Ela tem ao menos cinco trabalhos fixos toda semana ou a cada 15 dias. “Eu gosto, é minha profissão. Tem gente que tem vergonha, mas eu tenho como profissão que me satisfaz em tudo, naquilo que eu preciso diariamente e mês a mês. E não tenho o que reclamar, graças a Deus encontrei patrões muito bons”, diz. Assim como Edilene, quer que seus filhos estudem e tenham uma “vida diferente da nossa”. Um desejo que está mais perto de se realizar: sua filha Dara, de 21 anos, acaba de ser aprovada no curso de Agronomia na Universidade Federal de Santa Catarina. “É a primeira da família, tanto da minha como a do meu esposo, a entrar numa universidade. Está todo mundo muito orgulhoso. Só olham pra mim e perguntam como vou ficar. Eu digo: ‘Ué, vou ficando, né. Os filhos partem. Fazer o quê?'”, conta.
Ryder destacou ainda que os trabalhadores domésticos são o contingente que mais sofre com condições precárias e salários baixos. No entanto, o número de pessoas com carteira assinada aumentou de 17,8% em 1995 para 30,4% em 2015, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Foi nesse ano que a chamada PEC das domésticas foi regulamentada, garantindo a esta categoria os mesmos direitos das demais, como jornada de trabalho de oito horas diárias e 44 semanais, seguro desemprego, auxílio doença, entre outros. Já a renda média saltou 64% neste mesmo período de 20 anos, chegando a 739 reais em 2015 e aumentando para 852 reais — menos que um salário mínimo — em dezembro de 2017.
Apesar de ser o país com o maior número de trabalhadores domésticos, os dados também indicam que a cifra vem caindo nas últimas décadas — ainda que, devido ao alto desemprego e à necessidade de se buscar bicos, tenha sofrido um pequeno aumento em 2016. Segundo o IPEA, há cada vez menos jovens no emprego doméstico: em 1995, 51,5% das mulheres com até 29 anos buscavam trabalhos nesta área; em 2015, esta proporção era de 16%, uma queda de 35,5 pontos porcentuais. Trata-se de toda uma geração que ganhou mais oportunidades com a universalização do ensino básico nos anos 90 e com a recente expansão e democratização do ensino superior, que passou a contar com políticas como a de cotas raciais e sociais, o ProUni e o FIES. A isso se soma anos de esforço de seus próprios pais para fazer com que seus filhos estudassem e seguissem por caminhos diferentes.
“Eu corro atrás das coisas”
“Se me dizem que tem curso gratuito de tal coisa, eu vou lá e trago para eles. Eu converso muito sobre a importância de estudar. Não é porque eu trabalho de doméstica, que é um trabalho digno como qualquer outro… Sempre digo: ‘Vocês estão vendo o que eu faço, que eu trabalho, que eu corro atrás das coisas'”, conta Edilene. Sua filha Julia, de 16 anos, quer ser fisioterapeuta, mas por enquanto está conciliando o primeiro ano do ensino médio com um curso técnico de gestão empresarial. Já Eduardo, de 12 anos, “um dos melhores alunos de sua turma”, segundo a mãe, quer ser arquiteto. “Ele adora ler. Às vezes me levanto de madrugada para ir no banheiro e vejo ele lá lendo. Sempre falo. ‘Queira Deus, meu filho, que você continue assim'”. Giovana e Alícia, de 4 anos, acabam de passar da creche para a escola, mas a última, que nasceu com microcefalia e paralisia cerebral, requer cuidados especiais e uma flexibilidade de horário que apenas o emprego como diarista podia dar. Algo que inclusive parece ser tendência em todo o país: segundo o IPEA, as empregadas que ganham por diária eram 18,3% em 1995; em 2015, 31,7%.
Foi com apenas 13 anos que Edilene começou a trabalhar em uma casa de família, quando ainda morava na Paraíba. Com 19, migrou para São Paulo e ainda continuou nesta área por um tempo. Mas logo depois passou a trabalhar como camareira no Hospital das Clínicas e, em seguida, como cuidadora em clínica de repouso. Sonhava em terminar o curso de técnica de enfermagem, mas sua última gravidez interrompeu seus planos. Por causa de um erro médico, Edilene não ficou sabendo através de seu ultrassom que ia ser mãe de gêmeas. Só depois que Giovana nasceu, de parto normal, descobriram que tinha mais outra menina em sua barriga. Alícia nasceu duas horas depois de sua irmã e com falta de oxigenação no cérebro. “Quando o médico deu o diagnóstico, fiquei um ano desempregada, com o aluguel atrasado, mas correndo atrás das coisas, de tratamento”, conta.
Hoje, Edilene trabalha em uma casa nas terças e sextas-feiras entre oito da manhã e quatro da tarde e deixa Alícia em uma creche. Às segundas, quartas e quintas, sai de sua casa no Jaraguá em uma van do programa Atende, da Prefeitura de São Paulo, para levá-la nas sessões de fisioterapia. E depois prefere ela mesmo ficar cuidando dela em casa. Ganha 1080 reais por mês e só não é registrada, ela diz, porque também recebe para sua filha uma pensão de 954 reais do INSS — que chegou a ter sido negada em uma primeira tentativa — que lhe impede ter carteira assinada. Também embolsa 400 reais de pensão do pai dos seus dois filhos mais velhos. O bolsa família de pouco mais de 300 reais foi cortado sob a justificativa de que não podia acumular dois benefícios, segundo diz. Também foi cortado o leite que a Prefeitura antes mandava pelos correios até sua casa.
“Eu corro atrás das coisas. Se me falam que eu tenho direito a algo, eu vou. Não tem essa de ter vergonha porque eu tenho uma filha especial. Se o médico diz que ela tem que fazer exame em tal lugar, eu vou. Nem que eu acorde às 2 ou 3 horas da manhã. Já aconteceu inclusive de eu sair de madrugada com ela doente e uma vizinha ter que me levar ao médico às 4h30”, conta ela. “Tem mãe que tem vergonha de ter um filho assim. Eu saio com a minha, no domingo a gente vai pra churrasco, a gente sai pro parque. É filho igual, não tem que ter vergonha. Foi uma coisa que Deus me deu. Especial não é ela, especial é eu que cuido dela”, argumenta.
“Os pais tem que dizer para os filhos: ‘vamos'”
A vida de Gildete também está centrada em cuidar dos filhos. E, principalmente, incentivá-los a estudar e a buscar seu caminho. “Os pais não têm que mostrar o dedo e dizer ‘vai’. Tem que segurar no dedinho e dizer ‘vamos’. Isso faz toda a diferença. Eles ficam mais animados e tem mais coragem”, conta.
Enquanto o filho Gabriel, de 18 anos, ainda está fazendo curso técnico em Administração no SENAC e pensando sobre o que gostaria de estudar na universidade, Dara, de 21, se prepara para se mudar para Curitibanos, no interior de Santa Catarina, para fazer faculdade. A primeira da família. “No dia 26 começam as aulas. É muito difícil porque a gente é muito ligada, mas aí eu penso que já está na hora mesmo. Há 15 dias atrás eu só chorava, mas nessa semana eu comecei a pesquisar a cidade, como como a gente ia lidar com isso, com os custos… Aí eu já estou mais tranquila. Estou muito feliz porque ela merece, sempre estudou e trabalhou”, conta orgulhosa.
Ao chegar em São Paulo com 17 anos, após deixar a casa dos pais no interior da Bahia, Gildete chegou a trabalhar por alguns meses como babá. Mas logo depois, quando completou 18, conseguiu um emprego no balcão de vendas da rodoviária Tietê. Depois, em uma agência de viagens e como gerente de uma loja de café. Foi quando conheceu seu marido, que trabalhava na rua como camelô. “Mudamos para Francisco Morato em uma casa com muito espaço e montamos nossa fábrica de bolsas. Trabalhamos com isso durante uns 10 anos, foi quando a rua 25 de Março estava em alta”, conta. Mas há nove anos seu marido ficou doente e o casal precisou fechar a fábrica. “Ele ficou três anos assim, então eu precisava fazer algo. Com as crianças pequenas, meu irmão falou que o único jeito rápido era trabalhar como diarista. Porque você faz hoje e ganha hoje”, argumenta.
Seu trabalho como diarista não lhe dá apenas uma renda mensal — de cerca de 2.200 reais, que soma a de seu marido, hoje marceneiro — como também satisfação pessoal. “Chegar em uma casa super bagunçada e sair deixando aquele aroma, a casa toda em ordem, é isso muito muito bom. Fico feliz com a diferença que podemos fazer”, explica. O único problema é o tempo que leva para chegar ao trabalho. Geralmente ela sai entre sete e sete meia da manhã, pega dois ônibus, um trem e um metro. Demora três horas até chegar ao centro de São Paulo. E isso caso não haja imprevistos, como a chuva que para os trens. “Vem sempre muito cheio, não dá pra sentar. Isso que é o desgastante. Gasto mais tempo me movendo que trabalhando. Na volta são mais três horas. O trem fica lotadíssimo, se você tirar o pé do lugar não coloca no chão de novo. Mas acho que nosso corpo acostuma”, garante. “Por isso hoje não trabalho nas quartas-feiras, tirei esse dia para descansar e cuidar da minha casa”.
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Edilene Pereira, de 41 anos. Foro: Toni Pires