Lucas Smolcic Larson – RioOnWatch
Cerro Corá é uma pequena favela localizada no topo do bairro do Cosme Velho na Zona Sul do Rio, e abaixo do morro do Corcovado. Em 2010 o censo registrou lá apenas 708 pessoas e 200 moradias. Mas o tamanho do Cerro Corá não impediu que os moradores fossem bem-sucedidos na luta pelo desenvolvimento da comunidade. Com esse objetivo em mente, um grupo de moradores e colaboradores de outras partes da cidade se juntaram para formar o Cerro Corá Moradores em Movimento.
Em 2013, eles começaram um projeto de museu chamado Memórias do Cerro Corá seguindo uma tendência em favelas do Rio. Em 2014, o grupo ocupou a Associação de Moradores, que estava fora de funcionamento, e construíram e fundaram uma biblioteca comunitária no local. Naquele ano, a Agência de Notícias das Favelas fez uma matéria sobre essas iniciativas que foi traduzida para o inglês no RioOnWatch. Porém, três anos se passaram e o grupo continua ativo. Em 2016, foi criado o Pré-Vestibular Popular Cerro Corá. Pré-Vestibulares são ainda mais críticos para moradores de favela, que de forma geral são limitados à educação pública inadequada ou de baixa qualidade e, em consequência, encontram-se excluídos de universidades.
O RioOnWatch visitou o Cerro Corá para conversar com Ricardo Rodrigues, um membro fundador do Moradores em Movimento e saber mais a respeito dos projetos do grupo. Depois de passar por um aglomerado de turistas esperando para pegar o bondinho até o Cristo Redentor, e subir a rua íngreme de mototáxi até o Cerro Corá, Ricardo mostrou o caminho até o prédio da Associação de Moradores.
“Sou nascido e criado no Vidigal mesmo. Mas eu moro aqui desde 2001”, ele diz, explicando que sempre teve família no Cerro Corá. Nos últimos cinco anos, Ricardo trabalhou no SESI/SENAI, uma rede de treinamento industrial e de serviços sociais, recrutando moradores de favelas para os cursos oferecidos. “Meu escritório é no morro.”
Ele conta como o Moradores em Movimento se formou. Um grupo composto principalmente por jovens se reunia pelas vielas do Cerro Corá para discutir soluções para os problemas da comunidade. O grupo viu que, como são fortemente estigmatizadas, as favelas precisavam estar sempre exigindo seu “direito de memória” e ter orgulho de suas origens.
“O fato de saber nossa história é muito importante para saber aonde você está, quem foram os nossos heróis. O sentimento de patriotismo que o brasileiro tem, de defender a bandeira, aquela palhaçada toda… A gente não consegue se identificar com os nomes da rua aí [no asfalto]: Delfim Moreira, Vargas”, explica Ricardo. Estes ícones brancos da história brasileira significam pouco para as favelas predominantemente afro-brasileiras, como Cerro Corá, muitas vezes esquecidas pelos políticos e menosprezadas no discurso popular.
Conhecendo melhor seu passado, membros do Moradores em Movimento descobriram que durante o século 19, Cerro Corá havia sido uma fazenda administrada por antigos escravos que ainda trabalhavam sem pagamento e viviam nos locais das senzalas. Em 1909, as fazendas foram demolidas e a madeira foi usada para construir casas para vários daqueles trabalhadores afro-brasileiros e suas famílias.
Compartilhar essa história significava afirmar a negritude e a escravidão africana nas raízes da comunidade. “Nem existe o ‘resgate’ da memória por que a memória não está sequestrada”, diz Ricardo, “Mas existe afirmação dela, do poder que ela tem. Quando você diz para a criança negra que a África é super importante, que a favela é super importante”.
Conforme a tradição da ‘nova’ museologia ou museologia ‘social’, o museu do grupo, “Memórias do Cerro Corá”, não possui estrutura física com exibições fixas. Em vez disso, ela toma a forma de diferentes ações de pesquisa histórica, valorização e compartilhamento.
A maior parte da estrutura do Cerró Corá foi formada depois de 1964, quando trabalhadores vieram construir o Túnel Rebouças, uma das principais vias de tráfego do Rio, que passa diretamente embaixo da favela. Durante esse período, uma igreja católica local comprou as terras da região, o que permitiu que até hoje muitos moradores tenham a propriedade de suas casas. Isso foi feito para proteger o Cerro Corá da onda de remoções que ameaçavam as favelas durante a ditadura.
O grupo Moradores em Movimento recolheu e escaneou fotos de moradores para uma exibição em 2013. Ricardo explica que a existência de recursos digitais significa que o privilégio da memória histórica finalmente se estendeu às favelas, excluídas da história oficial e com acesso limitado a câmeras e equipamentos de gravação.
Ao conhecerem seu passado, os organizadores do Moradores em Movimento também se preocuparam com o futuro. As conversas entre eles normalmente giram em torno da geração de oportunidades para as crianças. “A ideia da biblioteca [comunitária] surge por causa da gente ver o poder do tráfico evoluindo, a sedução do tráfico sendo muito maior que qualquer bem: como a escola. Era uma forma da gente tentar frear isso aí”, disse Ricardo.
O grupo fez parceria com o Conexão Leitura, uma ONG que ajuda na instalação de bibliotecas comunitárias. Eles coletaram doações de livros, desenvolveram um sistema de catalogação e abriram um espaço de “lazer literário” no prédio da Associação de Moradores.
O Pré-Vestibular era, logicamente, o próximo passo para expandir as oportunidades na educação no Cerro Corá, onde não há escolas por causa de seu tamanho limitado. Os professores do curso são voluntários, alguns do Moradores em Movimento e outros vindos de fora da comunidade. Para pagar a taxa de inscrição das provas, o grupo utiliza uma variedade de técnicas de arrecadação de fundos. Eles sortearam uma cesta de alimentos, organizaram um financiamento coletivo online, e começaram a vender camisetas da “favela carioca” com o desenho feito pelo Ricardo.
Jeferson Dias, que também faz parte do Moradores em Movimento e foi aluno no primeiro ano do cursinho, em 2016, foi aprovado na UERJ. Ele disse ao Brasil de Fato, “A realidade de um aluno de escola pública, pobre e morador de favela é muito diferente de quem tem acesso aos melhores colégios. Por isso, é um trabalho de conscientização que o cursinho faz também. As pessoas se sentem mais independentes com as aulas”.
Desde de 2017, seis moradores do Cerro Corá entraram na UERJ graças ao curso. Ricardo é um deles. Ele quer estudar artes visuais, seguindo seu interesse pelo grafite e pela pintura.
Infelizmente, a UERJ fechou suas portas em julho de 2017 e os professores entraram em greve em outubro. A crise financeira no estado do Rio de Janeiro deixou professores universitários sem salários e 30.000 estudantes sem aulas. O fechamento afetou ainda mais os estudantes pobres e de favela visto que a UERJ é uma instituição pública frequentada por muitos estudantes das classes trabalhadoras. Com o fim da greve em janeiro, a universidade só agora retorna às aulas, mas restam dúvidas a respeito do impacto desse fechamento nos alunos.
Apesar desse contratempo, o Pré-Vestibular Popular Cerro Corá segue em frente. “O fato de nós termos alunos com 50% do pé dentro da UERJ é legal, porque no futuro a gente poderá ter professores. Ter crianças se espelhando nos professores que são vizinhos delas. Eu acho que isso já é um plano de futuro bem sólido… É diferente das crianças se espelhando no vizinho que é pedreiro, que é vigilante noturno… do que a criança que se espelha no vizinho que é juiz, que é professor, que é médico, que é engenheiro”.
Ricardo conta que o Cerro Corá Moradores em Movimento é composto atualmente apenas por nove membros regulares, incluindo ele mesmo. Mas se o sucesso anterior for algum indicativo para o que o futuro lhes reserva, esse pequeno grupo continuará a causar impacto significativo na comunidade.
“A gente é favelado”, ele afirma. “A gente é favelado e vive em comunidade. O mal que acontece para você, acontece para mim. Se falta água para você, falta água para mim. Então isso é bem comum, ou mal comum, mas não pode ser morador e se depreciar”. Autoafirmação, orgulho e progresso marcam as conquistas do Cerro Corá Moradores em Movimento.
*Cerro Corá Moiradores em Movimento é um dos mais de 100 projetos comunitários mapeados pela Comunidades Catalisadoras (ComCat)–a organização que publica o RioOnWatch–como parte do nosso programa paralelo ‘Rede Favela Sustentável‘ lançado em 2017 para reconhecer, apoiar, fortalecer e expandir as qualidades sustentáveis e movimentos comunitários inerentes às favelas do Rio de Janeiro. Siga a Rede Favela Sustentável no Facebook.