Combate ao crime não autoriza violações de direitos individuais

Ao autorizar “varreduras” de madrugada pelas comunidades, com papéis de autorização coletiva, a Justiça incentiva o abuso de autoridade. A Defensoria do Ceará faz levantamento sobre o uso de mandatos coletivos no Estado

Por Mariana Lobo, no El País

Uma senhora liga aos prantos: teve a sua casa invadida em plena madrugada de uma sexta-feira de outubro de 2017 no bairro Edson Queiroz, em Fortaleza. Ela iria trabalhar na manhã seguinte, mas os xingamentos que recebeu, o portão tombado no chão e a bagunça que ficou na casa não a deixaram concluir seus planos. Ficou com o susto, a humilhação e a despesa do conserto. Não fez Boletim de Ocorrência. Afinal, a casa foi invadida pela própria Polícia com anuência da Justiça por meio de um mandado de busca e apreensão por zona.

“Meu lar é o meu reino!”. A expressão popular reflete o que está escrito na Carta Magna de 1988: a casa, que nos termos de preceito constitucional é “asilo inviolável do indivíduo” (art. 5º, XI, da CF). Um lar é inviolável, qualquer que seja o bairro, mesmo aquele com um dos piores índices de Desenvolvimento Humano de Fortaleza, seja em condomínio de luxo seja barraco na periferia. Só se pode adentrar no domicílio sob flagrante delito, por motivo de socorro ou por determinação judicial que deve estar em conformidade com os preceitos constitucionais. Portanto, as chamadas “varreduras” são claramente inconstitucionais, ilícitas, ilegais e discriminatórias, pois porquanto notícias deem conta de que líderes de facções habitam condomínios de luxo, parte-se do princípio que por ser pobre é ser “suspeito em potencial” ou estar-se-ia envolvido em criminalidade.

Ao adentrar de madrugada pelas comunidades, batendo o pé nos portões, com papéis de autorização coletiva, a Justiça tem incentivado o abuso de autoridade, estigmatizado os moradores das periferias, autorizado a violação de domicílios e de vidas e, o pior, passando por cima de conquistas caras à sociedade, que são as garantias e os direitos individuais.

Recentemente, o juiz Luís Carlos Vallois fez um levantamento prévio sobre o resultado de algumas destas operações e verificou que apenas um caso analisado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e pelo Supremo Tribunal Federal citou os “mandados coletivos”. Nele, o “acórdão que relaxou o flagrante justamente porque tal mandado era um indício da fragilidade de provas”. Ou seja, há um custo público que se revela ineficaz, e, mais grave, desrespeita os direitos fundamentais ali envolvidos: ou seja, além de não funcionar ao seu intento, agrava problemas. Conclui o juiz: “Com o mandado de busca e apreensão coletivo, apesar de sua ilegalidade patente, mas sendo expedido pelo Judiciário, estabelece-se um estado de sítio naquela comunidade pobre objeto do mandado, e nenhuma violação poderá ser reclamada, nenhuma violação será registrada”.

Tais atos configuram sim um estado de exceção que assistimos estupefatos diariamente com a criminalização da pobreza e a supressão de garantias constitucionais. Ainda que estejamos vivendo um momento delicado em termos de criminalidade, o Estado não pode afastar a incidência da Constituição Federal e dos direitos ali assegurados a todos os cidadãos. Nada pode ser usado em justificativa apenas da preservação da “ordem pública”, pois quem garante a ordem são as leis.

Nestes temos, é importante destacar que a Defensoria Pública do Estado do Ceará criou um grupo de trabalho que está fazendo o primeiro levantamento de quantos mandados coletivos de busca e apreensão tramitam ou tramitaram no Tribunal de Justiça cearense, nos últimos 24 meses, e qual a eficácia de cada uma destas ações em comparação ao trauma social que geraram. Este relatório preliminar pretende listar a dimensão do que estamos tratando. Em outubro de 2017, por exemplo, quando a casa de uma doméstica foi invadida, a notícia saiu na imprensa e, sem questionamento algum, destacou que seis pessoas foram presas (sem tipificar nenhum de seus crimes), 20g de maconha apreendidas e uma arma de fogo, malgrado a operação tenha envolvido 300 policiais e adentrado mais de 300 casas.

Este tipo de resultado por si só já mostra a ineficácia destas operações, mas queremos ir além, pois é papel de instituições garantistas como a Defensoria indicar que o combate ao crime organizado não autoriza violações de direitos constitucionais em nenhuma ordem, em detrimento do dever constitucional do Estado que deve operacionalizar uma eficiente política de segurança pública que inclua ao invés de só excluir, que transforme ao invés de apenas punir. Mais políticas sociais. Mais justiça.

Mariana Lobo é defensora pública geral do Estado do Ceará.

Moradora do bairro do Pirambu, em Fortaleza, ao lado de pichação do PCC. Foto: Marília Camelo

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